Pular para o conteúdo
TEORIA

Greves policiais, genocídio negro e a extrema direita

Bruno de Matos Sá |

A calamidade pública que levou o Rio de Janeiro ao caos tem produzido distintas reações políticas. Entre trabalhadores do Estado, há uma crescente onda de mobilizações e greves, juntando dezenas de milhares, com reivindicações democráticas e econômicas básicas. O movimento, que tem contado com importante solidariedade da população local, apenas na semana passada organizou cinco dias de manifestações contra as políticas de austeridade. Em paralelo a esta mobilização, porém, outras forças têm entrado em cena. Organizações reacionárias da extrema-direita carioca, recorrendo a ações de massas em meio às próprias ações dos trabalhadores, têm copiado métodos e palavras de ordem do movimento social.

Dia 8 de novembro, em meio aos protestos dos trabalhadores cariocas, a extrema direita e sua base social – gritando “Uh, é Bolsonaro” – ocupou a Assembleia Legislativa do Rio em meio a um protesto dos servidores. Policiais da ativa e aposentados, além de agentes penitenciários e bombeiros, integravam a massa do protesto. Novamente presente entre os manifestantes na paralisação do funcionalismo no dia 17, a extrema direita interveio para expulsar a esquerda organizada da manifestação. Segundo o UOL

De cima de um carro de som alugado por policiais militares, no qual está estendida uma faixa que pede “intervenção militar já!”, um manifestante que falava ao microfone viu a chegar de pessoas que traziam bandeiras de centrais sindicais e do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado).

“Abaixem as bandeiras, isso aqui não é um movimento político. Não temos partido. Somos servidores estaduais reivindicando nossos direitos”, gritou.

Após a ordem, dezenas de manifestantes, em sua maioria integrantes de forças de segurança do Estado –PM, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros– se dirigiram ao local em que estavam os outros participantes do ato, dando início a um empurra-empurra e troca de xingamentos.

(…)

Questionados sobre a faixa pró-intervenção militar no carro de som, eles disseram que “todos aqui são a favor”. “Nós fomos trazidos à beira de um abismo”, disse um manifestante, que se identificou como sargento Firmino.

Alem da presença de grupos “pro-intervenção”, chamou a atenção no ato o choque entre distintas frações do aparato repressivo. No confronto, segundo reportagem do El Pais, “um bombeiro foi atingido por duas balas de borracha no braço e um policial militar que se manifestava foi atingido no nariz.” De baixo do subtítulo “Polícia contra Polícia” o jornal espanhol afirmou:

O protesto chegou a ser cercado pela Tropa de Choque que atirava balas de borracha e bombas de gás sob os gritos dos colegas policiais que pediam calma aos companheiros fardados. Vários agentes destacados no protesto disseram a este jornal que não queriam reagir, mas disseram ter sido atacados com pedras. Um outro policial afirmou que, se não estivesse trabalhando, seu lugar seria do lado dos colegas. Houve até quem desistisse de se manter na linha de frente. Um vídeo de Julio Trindade, publicado pelo jornal O Globo, mostra o momento em que dois integrantes da tropa de choque abandona a segurança e se junta aos manifestantes.

O enfrentamento entre os distintos setores da polícia, em meio a um covarde repressão a diversos trabalhadores mobilizados na cidade, levanta importantes questões para a esquerda anti-capitalista. A luz da luta de classes no período pós-crise econômica de 2007-08, é possível identificar alguns padrões internacionais na interação entre a polícia, a extrema direita e a classe trabalhadora. Eles depõem contra qualquer ilusão em setores supostamente progressivos do aparato repressivo.

Terrorismo de Estado

A compreensão do avanço da extrema direita e sua interação com o aparato policial, nos dias de hoje, talvez melhor se expresse politicamente na cidade de Atenas. O peso desproporcional da crise econômica mundial sobre a Grécia fez acelerar a decomposição política do velho centro social-democrata/conservador com o crescimento eleitoral do Syriza e do grupo fascista Aurora Dourada.

fcb881418be9093982111bed1ea70f99Originalmente uma organização que pertencia ao sub-mundo da extrema direita grega, o Aurora Dourada ganha uma parcela da massa apenas após a crise econômica de 2007-08 ser sentida diretamente pela população. Em 1996, na disputa pelo legislativo nacional, o partido teve apenas 4,537 votos, 0.1%. O resultado pífio se repetiu em 2009, com 19,636 votos, 0.3%.

Já em 2012, com o agravar da crise, a base eleitoral da organização fascista se multiplicou por mais de 20 vezes. Foram 440 mil votos, 7% das urnas. O resultado para o parlamento europeu foi ainda maior. Enquanto em 1994 o Aurora Dourada teve 7,242 votos (0.1%) e em 2009, 23,566 votos (0.5%), em 2014 o partido saltou para 536,913 votos, ou 9,4%.

A forma com que se organiza a votação nas eleições gregas permite identificar tendências oriundas do aparato estatal nas urnas e sua relação com os neo-nazistas. Isto se dá porque policiais, bombeiros e militares, assim como paramédicos e defesa civil, votam em sessões eleitorais específicas. Nas eleições de Junho de 2012, no distrito central de Atenas, a votação dos neo-nazistas foi de 7,8%, com grandes oscilações em diferentes locais de votação, alguns muito próximos uns dos outros. Chama atenção a flutuação de votos vindo do entorno do Diretório Geral Policial de Attica (GADA), onde votaram centenas de policiais. Afirma Barnaby Philips

Nos 13 postos de votação nas redondezas [da GADA], o Aurora Dourada teve mais de 20% dos votos, enquanto nas sessões eleitorais vizinhas “exclusivas para civis” o grupo recebeu 6% dos votos, ou seja, abaixo da media ateniense.

A relação do Aurora Dourada com o aparato policial vai muito para além das urnas. Segundo o jornal britânico The Guardian, rapazes do grupo vêm assumindo “o papel de agentes policiais nas ruas do país falido, com provas crescentes que os atenienses estão sendo abertamente encaminhados pela polícia para pedir ajuda do grupo neo-nazista”. Narra o diário

Vítima de um crime, um eloquente funcionário publico educado nos EUA, afirmou ao Guardian que sua família entrou em choque ao ser encaminhada para o partido quando sua mãe chamou a polícia após um incidente envolvendo imigrantes albaneses no prédio em que moram no centro.

A utilização de grupos fascistas pela polícia para solucionar conflitos com imigrantes foi reportado como comum na capital do país. Em termos concretos, a relação entre a extrema direita e a as forças repressivas, ao menos desde 2012, é tão intensa que sequer deixa de ser escondida ou até mesmo formalmente apartada do Estado. Segundo o jornal inglês, a relação com o aparato policial alavancou os neo-nazistas:

Paschos Mandravelis, um importante analista político, responsabiliza este crescimento à relação simbiótica entre a polícia e o Aurora Dourada. “os gregos não viraram extremistas da noite para o dia. Muito do apoio do partido vem da polícia, de jovens recrutas que são despolitizados e não sabem nada sobre a historia do nazismo ou de Hitler,” Afirmou. “Para eles, os apoiadores do Aurora Dourada são seus únicos aliados no front quando há choques entre a polícia e os ativistas de esquerda.

O que mais chama atenção na questão grega é a intensidade com que a politização das polícias se dá pela direita. Não há solidariedade entre policias mal pagos e trabalhadores gregos em movimento. Na realidade, o oposto é o verdadeiro. Quanto mais intensa a crise e a mobilização proletária independente, maior a incidência de colaboração entre a base da polícia e as expressões mais bárbaras de dominação burguesa. Enquanto a conjuntura política grega em muito se distancia da brasileira pela a intensidade da crise no país europeu, ela serve de alerta, pois indica possíveis tendências de polarização.

Torturadores

O crescimento eleitoral no Rio de Janeiro da família Bolsonaro, expresso na votação para vereador de Carlos, o filho mais novo do clã que teve 106,657 votos (3.65%), ganhando o primeiro lugar na Câmara, indica similaridades entre Rio e Atenas. Por mais que a relação entre o grupo de Bolsonaro e a polícia não se de mediada por um partido abertamente fascista, como é o caso grego, tal hipótese não pode ser descartada no futuro. A crescente intensidade da guerra do Estado contra a juventude trabalhadora, negra e periférica significa uma fonte permanente de militarização social e política sob a qual se alimenta setores da extrema direita.

703c55bfa0545420d2cc074291dfb4b1Melhor se compreende a relação entre a polícia e a juventude trabalhadora olhando o sistema prisional. Segundo números do Ministerio da Justiça do primeiro semestre de 2014, “o Brasil alcançou a marca de 607.700 presos, atrás apenas da Rússia (673.800), China (1,6 milhão) e Estados Unidos (2,2 milhões). Quando se compara o número de presos com o total da população, o Brasil também está em quarto lugar, atrás da Tailândia (3º), Rússia (2º) e Estados Unidos (1º).”. O Ministério afirmava, inclusive, que se o Brasil mantiver a taxa de encarceramento atual, em 2075 incríveis 10% da população estará encarcerada. Segundo o relatório, entre 2004 e 2014, o aumento no número de presos no país, em números absolutos, saltou de 336.400 para 607.700, um aumento de 80%.

A intensificação da guerra do Estado contra os trabalhadores jovens tem, também, recorte de gênero. A coleta de dados do Conselho Nacional de Justiça indica que o numero de mulheres encarceradas cresceu mais que a media nacional. Afirma o CNJ

A população carcerária feminina subiu de 5.601 para 37.380 detentas entre 2000 e 2014, um crescimento de 567% em 15 anos. (…) Na comparação com outros países, o Brasil apresenta a quinta maior população carcerária feminina do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos (205.400 detentas), China (103.766) Rússia (53.304) e Tailândia (44.751).

Este modelo de encarceramento em massa exige um aparato policial gigantesco. Segundo o IBGE, o Brasil tinha 425,2 mil policiais militares e 117,6 mil policiais civis em 2013. Junto a este meio milhão na ativa, há um número cada dia maior de agentes penitenciários, polícias da Guarda Civil Metropolitana e burocratas das secretarias de segurança publica estaduais e municipais, assim como uma quantidade desconhecida de profissionais da enorme industria privada de segurança que integram o bolo. Se somarmos a eles não só as centenas de milhares de aposentados do aparato, como também suas famílias nucleares, podemos afirmar a existência de uma massa, que facilmente supera a barreira do milhão de pessoas, que parasitam na repressão.

A interação entre esta massa policial e a juventude da classe trabalhadora consegue ser ainda mais violenta que a cultura policial do neo-nazismo grego. São raros os dados que revelam o sadismo da polícia brasileira, porém, a pesquisa realizada pelo projeto Tecer Justiça expõem um pouco do que é este cenário. Após a realização de survey e intervenção jurídica em dois presídios na cidade de São Paulo, o CDP I de Pinheiros – prisão construída para conter 520 presos, mas que à época do projeto possuía mais de 1.700 homens encarcerados (320% de superlotação) – e a Penitenciária Feminina de Santana (PFS). O projeto chegou à seguinte conclusão:

A violência relatada pelos entrevistados surpreendeu pela grande quantidade de casos. Nas prisões em flagrante realizadas pela Policia Militar, a imensa maioria dos homens (79,5%) e das mulheres (70,3) afirmou ter sofrido algum tipo de violência, o que também se constatou nas abordagens da Guarda Civil Metropolitana, cuja atuação violenta foi citada por 73,5% dos homens e 70,9% das mulheres. (…) A Polícia Civil, os entrevistados atribuíram um menor nível de agressões, que é, todavia, elevado e atingiu 59,2% dos homens e 64,6% das mulheres.

(…)

A pesquisa também procurou conhecer a relação anterior das pessoas entrevistadas com a polícia. Os resultados demonstraram que a trajetória dos homens que responderam ao questionário no CDP I de Pinheiros é marcada pela presença dos agentes do aparato repressivo do Estado, tanto na forma de abordagens como de agressões físicas e verbais (92,1% só para abordagem). Ainda que mais baixos, não são desprezíveis os dados de que 23,3% das mulheres foram muitas vezes agredidas verbalmente pela polícia e que 43,7% presenciaram muitas vezes alguém ser agredido por policial.

Merece destaque que a pesquisa foi realizada em condições pouco favoráveis para que os presos expusessem o tema da violência policial. Durante um período de coleta de dados no CDP I, “os profissionais do projeto permaneciam na mesma sala que o diretor de disciplina ocupava, o que implica os mesmos entraves descritos em relação à PFS, isto é, não havia possibilidade de confidencialidade das informações.” Mesmo que o problema metodológico tenha sido parcialmente sanado ao logo do processo, ele se expressa, inevitavelmente, no resultado estatístico final. Os dados abaixo, portanto, subestimam a violência cometida pela polícia contra jovens trabalhadores presos.

 Mulheres encarceradas no Presídio Feminino de Santana
quantas vezes você:nenhumaumaalgumasmuitas
foi abordada por um policial?

47,1%

15,3%

18,1%

19,4%

foi verbalmente agredida por um policial?

54,8%

11,6%

10,2%

23,3%

foi fisicamente agredida por um policial?

66,7%

13,2%

9,9%

10,2%

presenciou alguém ser agredido por policial?

35,6%

7,2%

13,5%

43,7%

teve sua casa revistada pela policia? 

74,3%

14,1%

5,3%

6,4%

Homens encarcerados no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros I
quantas vezes você: nenhumaumaalgumasmuitas
foi abordado por um policial?

7,9%

5,8%

28,4%

57,9%

foi verbalmente agredido por um policial?

19,6%

4,8%

19,0%

56,7%

foi fisicamente agredido por um policial?

29,6%

13,1%

21,7%

35,6%

Presenciou alguém ser agredido por policial?

15,3%

5,2%

14,3%

65,1%

Teve sua casa revistada pela policia? 

72,4%

14,5%

6,2%

6,9%

 

tipo de violência no momento da prisão Homens Mulheres
agressão verbal

65,6%

61,9%

agressão fisica

56%

36,4%

ameaça com arma

32,6%

20%

ameaça sem arma

26,8%

19,8%

outro tipo de violencia

7,2%

10,8%

Os dados escassos sobre tortura expõem uma pequena fresta do aparato policial e sua profunda degeneração moral. Infelizmente, não há, por razões óbvias, números sobre a relação entre a polícia e gangues como PCC paulista, o CV carioca, e os diversos outros agrupamentos criminosos do país. O mesmo se aplica, por exemplo, à simbiose entre policiais e milicianos no Rio. A ausência de pesquisas quantitativas sobre o tema, porém, não altera a realidade. Sob qualquer parâmetro, a polícia brasileira é o que há de mais similar em nossa sociedade a um lumpesinato institucionalizado.

Fora PM do mundo

Além da realidade concreta nacional, marcada por uma polícia com traços fascistas, as experiências internacionais de politização policial são tenebrosos. Quando a polícia, em protesto ou não, tem desobedecido o governo, ela o faz para fortalecer a extrema-direita, e não a esquerda.

e6b730460842ff3ed84da0874c6a3378Pode se especular que os dois integrantes da Tropa de Choque, gravados abandonando seus postos em meio à repressão, o fizeram em solidariedade à luta dos trabalhadores contra a austeridade. Porém, para isso, uma série de engrenagens objetivas e subjetivas da luta de classes precisariam estar se movendo de forma distinta da atualidade. É verdade que se a classe trabalhadora, enquanto classe, estivesse na ofensiva, ela conseguiria atrair a seu lado atores políticos inesperados. Porém é esta a realidade do Brasil?

Distante de qualquer coisa similar a uma situação pré-revolucionária, há no país uma ofensiva burguesa de ataques a direitos políticos e sociais sem precedentes nos últimos 20 anos. Pior, a classe dominante hoje intervém usando o próprio movimento de massas contra os trabalhadores, como foi o caso do golpe dado contra o governo de conciliação de classes encabeçado pelo PT.

Junto a mobilização de massas da classe média, há, de forma ainda mais sinistra, a crescente intervenção política da extrema direita. Curiosamente, no mesmo dia em que alguns policiais conclamavam por “Intervenção Militar – Já”, uma turba fascista em Brasília, sob os gritos de “volta, general”, invadiu o plenário do Congresso, interrompendo seus trabalhos. Enquanto não existem evidências que ligam ambas as ações, elas são uma coincidência alarmante. Principalmente se partirmos do pressuposto que ocorreu, ainda este ano, um golpe contra um governo eleito. Afinal, se a extrema direita vem conspirando contra o antigo governo federal desde 2014 e ganhou a principal batalha, porque ela deixaria agora de se organizar nacionalmente?

A crescente mobilização de grupos com traços fascistas expressa problemas novos para a esquerda anti-capitalista brasileira. Porém, ela tem sua raiz no mais antigo dos aparatos de repressão aos trabalhadores, que do capitão do mato aos batalhões especiais do BOPE, foi sempre seu inimigo mortal. É apenas no combate a ele que uma nova sociedade, sem tortura e encarceramento, poderá surgir.