Por: Carolina Freitas, de São Paulo, SP
“…as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes; […] A classe que dispõe de meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, o que faz com que sejam a ela submetidas, ao mesmo tempo, as ideias daqueles que não possuem os meios de produção espiritual”. Marx e Engels, em A Ideologia Alemã.
“Nossas autoridades não buscam a culpa na população, mas, conforme consta na lei, são atraídas pela culpa e precisam nos enviar – a nós, guardas. Esta é a lei”, diz o policial. K. alega ignorar essa lei. “O senhor irá senti-la”. Franz Kafka, em O Processo.
A Câmara dos Deputados discute nessa semana projeto de lei nascido do Pacote das ’10 Medidas Contra a Corrupção’, elaborado pelo Ministério Público Federal e encaminhado ao Congresso como iniciativa popular, com dois milhões de assinaturas.
O procurador-coordenador da Operação Lava Jato, Deltan Dellagnol, esteve nesta terça-feira (22) em sessão da Comissão Especial da Câmara em que o projeto é discutido para pressionar os parlamentares. O responsável pela relatoria da Comissão Especial na Câmara é Onyx Lorenzoni, do DEM (RS). A partir de negociações com os partidos no Congresso, Lorenzoni apresenta a terceira versão do projeto, que consiste em 12 pontos, adaptados da proposta original do MPF.
Neste texto, recupero alguns aspectos do projeto patrocinado pelo MPF para caracterizarmos o seu sentido global, a partir da versão que está sendo discutida hoje.
As dez medidas originais são resumidas a partir da (i) Prevenção à corrupção, transparência e proteção à fonte de informação; (ii) Criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos; (iii) Aumento das penas e crime hediondo para a corrupção de altos valores; (iv) Eficiência dos recursos no processo penal; (v) Celeridade nas ações de improbidade administrativa; (vi) Reforma no sistema de prescrição penal; (vii) Ajuste nas nulidades; (viii) Responsabilização dos partidos políticos e criminalização do caixa 2; (ix) Prisão preventiva para assegurar a devolução do dinheiro desviado; (x) Recuperação do lucro derivado do crime.
A nova versão mantém a definição do caixa dois de partidos políticos como crime (hoje é uma infração não apresentar a contabilidade das doações para eleição exigida pela legislação eleitoral, mas não é especificada na legislação criminal), mas retira a prisão preventiva do político ou doador até a devolução do dinheiro irregular, e afasta do projeto a incorporação da recente decisão do STF de validar cumprimento de prisão depois de julgamento em segunda instância.
Foi retirada também a proposta feita por parlamentares, na versão anterior, de definição de crimes de responsabilidade praticados por juízes e promotores. As conversas de Delton Dellagnol e da cúpula do MPF nos últimos dias com Lorenzoni tem a ver com este aspecto, que já tinha sido motivo da reclamação corporativa de associações de juízes em notas públicas.
Segundo o procurador, a identificação de quebra de decoro por juízes, procuradores e promotores, além da possibilidade da abertura de processo por parte dos investigados contra os acusadores e julgadores, vem como contraofensiva de políticos contrários à Operação Lava Jato. O relator da Comissão colaborou com o discurso pró-Operação, dizendo que não pode “abrir margem” para questionamentos “a quem faz um trabalho que a sociedade brasileira aplaude de pé”ii, se justificando sobre a exclusão.
Alguns aspectos do pacote:
“Teste da integridade”
O projeto propõe o “teste de integridade”: a autorização a órgãos de fiscalização e controle para provocar situações com funcionários públicos, simulando a oferta de vantagens ilícitas, para avaliar sua reação diante da oferta. O projeto diz explicitamente que os testes podem ou não ser aleatórios, ou seja, para que o teste, em sigilo, seja aplicado, não é preciso que o funcionário tenha qualquer conduta suspeita em investigação anterior.
A medida parece uma versão moderna dos “testes da mentira”, feitos com polígrafos. Inspirada no sistema britânico, que desde os anos 90 adota algo parecido, é uma expressão de uma postura mais fechada e criminalizante do sistema: o pressuposto deixa de ser o da inocência e passa a ser o de que qualquer trabalhador do Estado potencialmente, por sua vinculação profissional, cometa crimes. A versão do projeto apresentada hoje retira a absurda previsão inicial de que bastaria apenas a prova da simulação para julgar o agente, sem qualquer outra evidência.
“Recursos Protelatórios”
O projeto, ao apresentar a necessidade de aperfeiçoamento do sistema recursal penal para todos os tipos de crime, autoriza os tribunais a declararem, de ofício (ou seja, sem ouvir as partes), o trânsito em julgado do processo (o que impossibilita recursos e abre a fase de execução da punição) quando considerarem que a utilização de instância superior pela parte acusada é feita para atrasar a condenação e a efetivação da pena. A medida é tão agressiva contra a população julgada por crimes pelo Estado que afetariam cerca de 41% dos réus assistidos pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro e 64% dos assistidos pela Defensoria de São Paulo que têm, em fase de recurso, suas sentenças alteradas pelo reconhecimento de alguma injustiçaiii.
“Ajustes na Prescrição Penal”
A medida visa aumentar os prazos prescricionais (superveniente e retroativo) inscritos no Código Penal atual. Em outras palavras, busca alargar o prazo para que o Estado possa executar a punição por crimes em geral, não apenas nos casos de corrupção. De novo, o pacote aparentemente ético e bem intencionado do MPF mostra sua verdadeira vocação: inviabilizar garantias para a população brasileira julgada nos tribunais penais, alterando a legislação para aprisionar mais. Longe de combater a corrupção como primeira importância, o pacote instrumentaliza o aumento da população carcerária brasileira, hoje cerca de 720 mil pessoas, na larga maioria, negros e pobres.
“Ajustes na Prova Ilícita”
O não reconhecimento de prova obtida de maneira ilícita no Brasil é parte das garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988. O projeto de lei busca atropelar o respeito a esses direitos para legitimar provas a todo custo. Isto significa potencializar uma realidade de violações que já existe contra o povo negro e pobre e os movimentos sociais: ouvir testemunhas sem a presença de advogados, instalar grampos telefônicos ilegais etc. Novamente, mais uma mudança radical que não visa com nenhuma particularidade a corrupção, mas sim todo o sistema penal e processual penal.
A necessidade de combater a farsa da corrupção e a tragédia da repressão sistêmica ao povo negro e pobre
O Pacote a ser votado, portanto, simboliza o avanço sistêmico da militarização e da prisionalização, a partir do aumento do poder policial e judiciário, contra toda a população que senta no banco dos réus. Diminuem-se os direitos do povo frente ao Estado em nome de uma redenção ofertada numa lista, num combo mágico de 10 medidas.
Lançado e propagandeado como “a salvação do país”, espírito que Deltan Dellagnol espalhou em suas inúmeras palestras ao redor do Brasil para a coleta de assinaturas do projeto (com destaque, nas igrejas evangélicas), as medidas são, em relação à corrupção, um sintoma da queda de braço que está sendo feita entre parlamentares envolvidos em esquemas de caixa 2 e figuras bonapartistas como o juiz Sérgio Moro e o próprio promotor.
Mas resumir o processo de aprovação das medidas meramente ao tema da corrupção, além de ser insuficiente, é ilusório. As reformas legais atingirão, em grande monta, todo o sistema penal, porque abarcam as partes gerais, para todos os crimes, dos códigos atuais. Por trás de um power point grotesco, da afirmação “não tenho provas mas tenho convicção” (versão atual da teoria do domínio dos fatos, usada em 2012 no julgamento do STF sobre o mensalão) e da peregrinação efusiva contra a corrupção, Dellagnol é personagem aliado no espetáculo que alimenta os movimentos MBL e Vem pra Rua, que organizou uma passeata no dia 20 de novembro, confrontando, no mesmo horário e local, a Marcha da Consciência Negra em São Paulo, com faixas exigindo a aprovação das medidas.
Alguns companheiros e organizações afirmam que o avanço e o fechamento do regime que vem se delineando nos últimos meses não tem significado para a esquerda, porque o povo negro e pobre sente há muito tempo as violações agora legitimadas em letra de lei. Considerar a disputa superestrutural entre partidos políticos e instituições do Estado como algo alheio à criminalização material e ideológica da pobreza, assim como considerar a repressão aos segmentos mais oprimidos da classe como distinta da criminalização aos movimentos sociais, é cada vez menos defensável. É achar que a repressão do Estado não está ligada aos planos econômicos do imperialismo para o Brasil e a sua garantia especulativa. Enquanto isso, a realidade vai nos dando mostras contundentes sobre a natureza da Operação Lava Jato e suas consequências. O encontro nas ruas entre as pautas dos movimentos da população oprimida e as pautas dos movimentos da direita deverá ser cada vez menos fortuito.
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