Em 2013 atearam fogo na lenha sob o caldeirão em que se concentra a sociedade brasileira. Passados três anos, reabasteceram a fornalha com madeira nova e passamos a vivenciar centenas de ocupações de escolas e universidades, greves de servidoras e servidores públicos, manifestações de rua contra as alterações legislativas que fazem retroagir em séculos os direitos conquistados pela classe trabalhadora desse país, muitos dos quais, é bom anotar, sequer ainda efetivados.
Estamos retroagindo ao século XVII, quando vigorava a chamada primeira geração de direitos humanos, em que o Estado só se dedicava às prestações negativas, ou seja, destinava-se apenas a assegurar a esfera de autonomia dos indivíduos, mais especificamente, sua “liberdade”. Acontece que a história demonstrou que conceder liberdade de modo igualitário a pessoas em situação econômica profundamente desigual, só gera espaço para a injustiça, visto que as oportunidades que são oferecidas aos membros de diferentes estratos sociais colocam o caráter hereditário da riqueza e da pobreza como um preceito tão natural quanto as leis de Newton.
Os dois parágrafos anteriores não trazem qualquer novidade. Na verdade, os que virão também não trarão. O objetivo aqui é denunciar uma realidade há muito conhecida pelo povo pobre desse país: a truculência com que o Estado, em sua face mais evidente, trata aquelas e aqueles que deveria proteger. Esse debate deve ser cotidiano, mas o invocamos episodicamente por considerá-lo especialmente importante nesse momento em que a sociedade civil se insurge contra o estado de coisas em vigor, em que a caldeira começa a se superaquecer e os conflitos sociais ultrapassam os muros das periferias.
A intensificação das lutas nos últimos anos nada mais é do que um levante de resistência contra o modelo de organização do capital pautado pela destruição da natureza, somada à intensificação do empobrecimento daquelas e daqueles que não se inserem entre os 1% de ricos da humanidade.
Esse movimento gera, contudo, outro de força contrária, materializado na criminalização das defensoras e defensores de direitos humanos, ou seja, na utilização de instrumentos jurídicos persecutórios contra pessoas e grupos que “atuam na luta pela eliminação efetiva de todas as violações de direitos e liberdades fundamentais dos povos e indivíduos”, bem como batalham pela ampliação dos “direitos individuais, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais que ainda não assumiram forma jurídica ou definição conceitual específica”.
Dentre esses instrumentos de criminalização, cita-se a polícia brasileira que, por força do art. 144 da Constituição de 1988, é dividida em civil e militar. Aquela tem um caráter investigativo, enquanto esta tem atribuições de policiamento ostensivo, ligadas à preservação da ordem pública. A formação e a estrutura da polícia, com características militares, fazem com que a instituição se paute pela lógica do enfrentamento a um inimigo permanente. Esse deveria ser o alvo das forças armadas e não da polícia, que teria que seguir como objetivo assegurar a cada brasileira e brasileiro o exercício de seus direitos.
O prólogo foi feito para que as colunistas, que há alguns anos vêm sendo açoitadas em seu direito à livre manifestação do pensamento por esse instrumento de repressão de que se fala, tragam um breve desabafo. Em 01 de novembro deste ano de 2016, enquanto participávamos de uma caravana ao longo da bacia do rio Doce, que buscou chamar a atenção da opinião pública para o crime cometido pela Samarco (Vale e BHP Billinton), os 365 dias de impunidade e a subserviência do estado brasileiro ao capital econômico internacional, pudemos, mais uma vez, sentir na pele esse processo de criminalização.
Estávamos, cerca de 200 ativistas de direitos humanos, em marcha no distrito de Belo Oriente, um pequeno povoado, com aproximadamente 10.000 habitantes, pertencente ao município de Cachoeira Escura/ MG. A ideia era denunciar as três empresas que destruíram o rio Doce, fonte de vida, de renda e de lazer para as comunidades localizadas ao longo dos cerca de 600 km afetados. Caminhamos do Centro às margens do rio, onde plantaríamos árvores como símbolos da resiliência do povo e da natureza e da esperança de dias melhores. Fomos impedidas de seguir o caminho que planejamos. A Vale parou seu trem na linha, frustrando nossa intenção de chegar ao rio pelo caminho mais curto. Além da interferência no roteiro, assustamo-nos com o aparato policial que nos acompanhou: além dos cães, enviaram o batalhão de choque, com algumas dezenas de soldados trajando armaduras e empunhando armas de grosso calibre.
A polícia militarizada endossa a brutalidade com que o Estado trata o povo, naturalizando a violência, tornando normal que, no exercício do direito à manifestação de pensamento, quando colocamos em cheque o poder econômico, sejamos tratadas e tratados como rivais a sermos duramente combatidas e combatidos.
Há uma grande onda, no cenário nacional e internacional, de perseguição daquelas e daqueles que se rebelam contra as injustiças. A ameaça que sofremos com a presença da polícia arregimentada para a guerra naquela manifestação que estava em total acordo com os direitos políticos assegurados aos membros de uma comunidade que se diz democrática, tinha o objetivo claro de intimidação e silenciamento. Em 05/11/2015 rompeu-se a barragem de Fundão, mas a cada dia em que o Estado coloca seu aparato repressor para calar as reivindicações populares, assistimos ao rompimento da ordem democrática, nos deparamos com a agonia de direitos básicos, como aquele que assegura a liberdade de manifestação do pensamento.
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