Por: Francisco da Silva, de Porto Alegre, RS.
Desde semana passada quando os servidores públicos do Rio de Janeiro se mobilizaram contra os ataques do Governador Pezão, mas sobretudo após a quebra de disciplina de dois membros da polícia militar carioca surgiram na esquerda vários debates: qual a estratégia dos revolucionários perante as forças armadas? A estratégia é a mesma para as forças policias? As forças armadas do século 21 autorizam a vigência da estratégia clássica dos revolucionários? Qual é o sentido atual e concreto dos dois policiais terem quebrado a disciplina e se juntado aos manifestantes, mais favorável à burguesia ou mais favorável ao proletariado? Qual a política dos revolucionários perante a complexa situação do Rio de Janeiro em que os policiais lutam junto com o restante dos servidores contra os ataques do Pezão, embora cantem palavras de ordem de apoio à Bolsonaro e a intervenção militar?
São todas questões complexas, mas decisivas para aqueles que lutam em defesa dos interesses da classe trabalhadora. Esse pequeno texto porém tem o objetivo de discutir uma outra polêmica: qual a natureza de classe dos policiais militares? Em que pese tenha visto nas distintas publicações das organizações da esquerda várias diferenças sobre os debates antes citados, me pareceu que houve uma conclusão comum: os policias não são membros da classe trabalhadora. Eu até agora formulei uma outra opinião.
Classe social definida por função social?
O camarada Henrique Canary defendeu recentemente em sua coluna aqui no Esquerda Online que os policiais não são membros da classe trabalhadora já que “Sua função é absolutamente específica e não está ligada ao processo produtivo, nem mesmo indiretamente: são agentes da repressão. Esta é sua função social específica. Os agentes da repressão não são parte da oposição capital-trabalho. Ou pelo menos não o são desde um ponto do vista do trabalho. Ao contrário: são agentes do capital para a opressão do trabalho. Sua condição se assemelha muito mais a de mercenários que venderam a sua alma do que trabalhadores que vendem sua força de trabalho”.
Posição semelhante teve a companheira Simone Ishibashi do MRT em seu artigo no Esquerda Diário “A polícia não pode ser considerada parte da classe trabalhadora. O fato de serem assalariados, e pagos pelo Estado, mesmo empregador do conjunto do funcionalismo público não os igualam aos trabalhadores da Saúde e da Educação, por exemplo. Isso porque a função da polícia é proteger a propriedade privada, os capitalistas e sua ordem, através do uso da violência contra os trabalhadores, a juventude, e o povo, sobretudo os pobres e negros”.
A primeira observação que necessita ser colocada é, se os policiais não são membros da classe trabalhadora são membros de qual classe? Burgueses? Pequeno Burgueses? A chamada nova classe média, formada por técnicos e profissionais liberais? Lúmpens-proletários? São uma nova classe social? Outra?
Depois, há de se questionar o critério para definição de classe. Pelo que pude compreender, os camaradas que dizem que os policiais não são membros da classe trabalhadora sustentam isso pela função social que os policiais cumprem. Mas se a natureza de classe é definida pela função social, como definir os servidores do judiciário por exemplo? Sua função também é a de proteger o Estado burguês e a propriedade privada. O seu trabalho são a confecção de ordens de reintegrações de posse, encarceramento dos negros, etc. São a carne e o osso que realizam as deliberações dos magistrados que ali na frente, em último caso serão executadas pela polícia.
E os diagramadores de grandes jornais? Sua função é facilitar graficamente as peças de propaganda da burguesia. E os agentes fiscais país afora? Sua função é recolher impostos, principalmente dos pobres e da classe trabalhadora. Também são duas funções essenciais à manutenção da ordem e a violência não modifica o caráter de classe de uma ou de outra categoria.
Os camaradas estão corretos ao afirmar que a condição de assalariado é insuficiente para determinar a natureza de classe, mas creio que se equivocam ao determinar a natureza de classe dos polícias pela função social que exercem. Penso que as lições de Leon Trotsky, autor que compartilhamos todos, nos dão algumas pistas.
O caráter de classe da burocracia stalinista nas ideias de Leon Trotsky
Trotsky respondendo a pergunta sobre se a burocracia é uma classe dirigente afirma “As classes são definidas pelo seu lugar na economia nacional e, antes de mais nada, pela sua relação com os meios de produção (…) Pela sua função de reguladora e intermediária, pelo seu desejo de manter a hierarquia social, pela exploração para fins próprios do aparelho de Estado, a burocracia soviética assemelha-se a qualquer outra e sobretudo à do fascismo (…) [mas a burocracia] não criou uma base social para sua dominação, sob a forma de condições particulares de propriedade. É obrigada a defender a propriedade do Estado, fonte do seu poder e das suas receitas” (página 172, Leon Trotsky, A Revolução Traída – Global Editora).
Nos debates com os anti defensistas do SWP norte-americano Trotsky rejeita a ideia da burocracia ser uma nova classe exploradora, apesar de representarem interesses característicos da burguesia no seio do Estado em que o proletariado é a classe dirigente (página 245 e ss, Leon Trotsky, Em Defesa do Marxismo – Editora Sundermann). Isto é, apesar de sua função social ser contra revolucionária e mesmo realizando uma enorme guerra civil preventiva contra o proletariado nos anos 20-30, ainda assim eram uma camada ultra privilegiada das classes não possuidoras. É porque as classes sociais se definem por economia e não por política.
Porque se a definição de classe se dá por sua função social, se levamos isso até as últimas consequências deveríamos revisar a condição de classe da burocracia soviética, o que mudaria toda a estratégia dos revolucionários perante a antiga URSS. Eu não sou fetichista, tudo que a realidade nos autorizar revisar revisemos, mas não estou convencido de ser este o caso.
O caráter de classe do exército czarista e Kerenkista
Trotsky falando sobre a situação do exército depois de fevereiro e antes de outubro de 1917 na Rússia afirma “A disciplina repousava em sua maior parte em duas fundações: a cavalaria privilegiada, composta de camponeses ricos, e a artilharia ou no setor técnico em geral, com uma alta porcentagem de operários e intelectuais. Os cossacos donos de terra resistiram mais que todos, temendo uma revolução agrária em que a maioria deles iria perder e não ganhar” (página 247, Leon Trotsky, História da revolução Russa – Editora Sundermann). Em outro momento na mesma obra Trotsky fala que “o primeiro corpo que se desintegrou foi a infantaria camponesa. A artilharia, composta em maior parte de operários industriais, distingue-se no geral por uma capacidade muito maior de assimilação das ideias revolucionárias” (página 37).
E teríamos uma infinidade de citações para comprovar que no pensamento de Leon Trotsky, no caso russo, em geral os soldados pertenciam às classes sociais não possuidoras, proletários e principalmente camponeses pobres. Aqui jamais ocorreu a Trotsky definir o caráter de classe dos soldados e dos comandantes por sua função social, pois isso eliminaria os antagonismos de classe no seio das próprias forças armadas já que tanto os soldados como os altos oficiais teriam a mesma função social de reprimir e ser o “cão de guarda da burguesia”. E jamais ocorreu isso a Trotsky porque afinal “um exército é sempre uma cópia da sociedade que ele serve – com a diferença que ele dá às relações sociais um caráter concentrado, levando suas características positivas e negativas ao extremo” (página 242).
A natureza de classe do exército vermelho
“O exército da ditadura do proletariado deve ter, segundo o programa do partido, ‘um nítido caráter de classe, compor-se exclusivamente de proletários e de camponeses pertencentes aos grupos pobres semiproletários da população dos campos'” (página 149, Leon Trotsky, A Revolução Traída – Global Editora).
É a partir dessa noção que Trotsky criticou a política stalinista de enfraquecimento das milícias operárias bem como da elevação dos rendimentos dos soldados acima do nível médio das massas trabalhadoras, justamente preocupado em não elevar as condições de vida dos soldados acima das massas.
Os soldados da PM são a ala mais reacionária da classe trabalhadora
Os policiais são justamente odiados. Afinal são os genocidas do povo negro. Os braços da repressão aos movimentos sociais. E as milícias que aterrorizam a vida dos pobres. Mas não se faz política, e muito menos teoria, por vingança.
Os soldados da PM são membros da classe trabalhadora. Me parece que à condição de assalariado é preciso equilibrar com as condições de existência. Recebem salário e tem condições de existência muito semelhantes ao do proletariado brasileiro. Vivem na periferia como os trabalhadores. Sofrem com péssimos serviços públicos como os trabalhadores. Comem e compram nos mesmos lugares que os trabalhadores e aí por diante. Sua condição de existência é a mesma que os trabalhadores. Sua condição de assalariado é a mesma que os trabalhadores. Tem o mesmo tipo de patrão que os trabalhadores do serviço público. O problema é que pertencem à instituição burguesa mais reacionária da sociedade brasileira e por ela tem sua consciência condicionada. E a própria natureza de sua atividade é reacionária, já que são a força de coerção do estado burguês sobre as massas trabalhadoras. Mas não creio que isso nos autoriza a retirá-los da esfera da classe trabalhadora.
Diferente do que disse o camarada Henrique, não são mercenários que venderam sua alma. São trabalhadores que querem sair da iniciativa privada e ter mais estabilidade no serviço público. Se pudessem seriam bancários ou servidores do INSS, pois trabalhariam menos e ganhariam mais. Mas conseguiram apenas passar no concurso pra PM.
Então os revolucionários devem construir trabalho entre os soldados das forças armadas e da polícia?
Sim, evidentemente. E isso não significa se orientar por uma estratégia putchnista de infiltrar ou ganhar membros em postos chave das forças armadas como criticou Ishibashi lembrando a crítica de Trotsky à social democracia alemã, mas ganhar as massas dos soldados para romperem a disciplina e se aliarem aos trabalhadores. Só que isso só é possível quando a correlação de forças permitir, claro.
E de qualquer forma, o centro da estratégia revolucionária se baseia em dominar no reino da indústria e sejamos sinceros a esquerda revolucionária brasileira ainda mal conseguiu sair do cubículo do movimento estudantil universitário e do servidores públicos.
A instituição Polícia Militar, Exército, Marinha, etc não estão em disputa. Assim como as demais instituições burguesas deve ser destruída. E para destruí-las precisamos nos guiar para tentar quebrá-las por dentro e por fora.
Defender os interesses históricos da classe trabalhadora
Concluir que os soldados da PM são da classe trabalhadora não nos autoriza concluir que devemos sempre defender suas mobilizações. Aliás, isto serve para qualquer ala da classe trabalhadora. Muitas vezes os trabalhadores são transitoriamente ganhos pela burguesia para se mobilizarem contra seus próprios interesses. Isso já ocorreu centenas de vezes. Uma parte dos mineiros do Chile se mobilizaram contra Allende pela direita. No Brasil pré impeachmeant a maior parte da classe trabalhadora foi contra Dilma mas sendo dirigida pela FIESP. Recentemente na Ucrânia as massas estavam dispostas à uma guerra civil para entrar na zona do euro. Aliás, hoje mesmo, é bom que se saiba, uma ala considerável da classe operária embora não se mobilize ativamente para lutar pelas ideias de Bolsonaro, o defende e interage com ele nas redes sociais. Ou seja, ás vezes a pressão da burguesia é tal que consegue arrastar junto consigo enormes parcelas da classe trabalhadora.
Esse objetivismo político de apoiar qualquer coisa que seja contra um governo burguês, característica distinta de uma corrente do trotskismo, só pode nos levar a mais erros. Apoiamos a luta dos policiais se isso ajuda na luta em defesa dos interesses históricos da classe trabalhadora. Mas saber para qual lado pende a luta dos policiais só a análise concreta da situação concreta pode nos dizer.
Foto: Alexandre Carvalho /A2img em fotospublicas.com
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