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TEORIA

Open Society: “sociedade aberta” para quem?

Marcus Correia |

 

I.

Um fenômeno intrigante do processo conhecido como globalização é a disseminação da participação de organizações não-governamentais (ONGs) e fundações privadas na política internacional. Com o enfraquecimento ainda maior das já precárias políticas públicas nos países periféricos, a partir, sobretudo, da hegemonia neoliberal dos anos 90, tais entidades apareceram como uma oportunidade de redenção de grupos sociais vulneráveis e como solução instantânea para problemas (e conflitos) sociais latentes.

Por trás de intenções aparentemente descompromissadas dessas entidades transnacionais e apesar da boa-fé de parte dos indivíduos envolvidos nas suas ações, existem questões ainda obscuras a serem exploradas acerca da atuação desses atores na política global. Tome-se como exemplo a segunda maior fundação privada, dita filantrópica, do mundo: a Open Society Foundations.

Criada pelo megainvestidor húngaro-americano George Soros, nos últimos anos, a Open Society Foundations direcionou seu holofote humanitário para a América Latina e, em particular, para o Brasil. Apenas em 2016, a fundação destinará cerca de US$ 34 milhões de dólares para projetos parceiros na América Latina [1]. Quando questionados, seus representantes procuram sempre ressaltar que os interesses empresariais de George Soros não interferem na política da entidade, cujos principais objetivos seriam a promoção da democracia, dos direitos humanos e a colaboração com iniciativas que desenvolvam novas formas de participação. Em 2014, a Open Society até mesmo abriu um escritório na cidade do Rio de Janeiro.

II.

Fundada, na sua configuração atual, em 1993, as primeiras ações do Open Society Institute (rebatizado de Open Society Foundations em 2011) ocorreram em países do Leste Europeu, do Cáucaso e da Ásia Central, onde não é possível dizer que por lá tenha tido uma atuação propriamente humanitária, muito pelo contrário. Na verdade, Soros iniciou suas atividades “filantrópicas” já em 1979, quando financiou com US$ 3 milhões anuais movimentos políticos e veículos de comunicação de dissidentes dos regimes do Bloco Soviético, a exemplo do Solidariedade, na Polônia.[2]

Nos anos 1990, na antiga Iugoslávia, por exemplo, por meio da Open Society, Soros destinou US$ 100 milhões de dólares para movimentos políticos como o OTPOR (Resistência), para assim auxiliar na derrubada do presidente Milosevic, ocorrida em 2000. Um dos interesses que estavam em jogo era a compra do complexo siderúrgico de Trepca, avaliado à época em US$ 5 BILHÕES de dólares, uma vez que a abertura do regime facilitaria sua privatização[3]. A Iugoslávia passou por uma sangrenta guerra civil, desintegrou-se e desapareceu do mapa.

Em 2003, Soros destinou US$ 42 milhões para apoiar organizações políticas na Geórgia, como o KMARA, igualmente para a derrubada do ex-ministro das Relações Exteriores da União Soviética e então presidente Eduard Shevardnadze. Com recursos da Open Society, mil ativistas obtiveram treinamento em técnicas de desestabilização com membros do antigo OTPOR iugoslavo e do Centre for Applied Non-Violent Actions and Strategies, localizado em Belgrado, para a desestabilização do governo. Shevardnadze renunciou em novembro de 2003.

Em 2005, as ações de George Soros intensificaram-se e estenderam-se à Ucrânia, ao Quirguistão e ao Azerbaijão. Neste último país, as ações para a derrubada do presidente Ilham Aliyev, sob a alegação de fraude nas eleições e a promoção de massivas manifestações da classe-média local foram, no entanto, frustradas. Tanto Open Society como demais ONGs e fundações européias e estadunidenses destinaram recursos financeiros para organizações e veículos de comunicação de oposição ao recém re-eleito presidente, que até hoje governa o país.

Na Ucrânia, enquanto a Soros financiava o movimento Vidroszhenya (Reviver), suas congêneres européias patrocinavam demais ações e organizações para levar à queda o presidente Leonid Kuchma, o que, de fato, ocorreu. Kuchma havia sido membro do Partido Comunista da União Soviética de 1960 até 1991. Já no Quirguistão, os recursos da Open Society, por intermédio da entidade local Sociedade Civil contra a Corrupção, contribuiram para o golpe de Estado ocorrido em março de 2005, que levou o presidente Askar Akayev a refugiar-se no Cazaquistão. As alegações foram as mesmas: supostas fraudes eleitorais e corrupção, seguidas por manifestações da classe-média, influenciadas pela mídia [4]

Esses são apenas alguns poucos exemplos que compõem o quadro das chamadas Revoluções Coloridas e que não se diferenciam muito da Primavera Árabe, no que respeita exclusivamente à intervenção encoberta estrangeira, realizada por meio de ONGs, fundações e dos serviços de inteligência das principais potências ocidentais, em parte dos setores descontentes com os governos de países do Norte da África e do Oriente Médio. Cabe destacar que é bastante provável que muitos ativistas e militantes dos países envolvidos nessas ações imperialistas sequer sabiam que os recursos dos movimentos de que participavam vinham de fora do país.

Com receio de tal intervenção “colorida”, a Rússia, em 2015, pediu investigação e baniu do seu território cerca de 12 ONGs e fundações estrangeiras, entre as quais a própria Open Society Foundations, sob a alegação de ameaça à ordem constitucional e à segurança nacional do país [5].

Não é possível desconsiderar ainda alguns dos indivíduos que, ao longo dos anos, foram sócios ou assessoraram Soros na suas ações financeiras e filatrópicas pelo mundo. No International Crisis Group, financiado pela Open Society, estavam ninguém menos que Zbigniew Brzezinski, conselheiro de segurança nacional da administração de Jimmy Carter, bem como o general estadunidense Wesley Clark, ex-comandante supremo da OTAN na Europa. No Carlyle Group, do qual Soros é sócio, estão o ex-secretário de Estado dos EUA de George Bush, pai, James Baker e o ex-secretário de Defesa de Ronald Reagan, Frank Carlucci [6]. Vale lembrar que, entre 1993 e 1999, o principal diretor de investimentos do Soros Fund Management LLC  foi o brasileiro Armínio Fraga, que, subsequentemente, ocupou o cargo de presidente do Banco Central do Brasil (1999-2002).

III.

O historiador e cientista político brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, no seu livro publicado em 2013 e intitulado A Segunda Guerra Fria: geopolítica e dimensão estratégica dos EUA, traz farta documentação a respeito do papel de fundações e ONGs internacionais, como a Open Society, a National Endowment for Democracy, a Freedom House, a Human Rights Watch, entre outras, como linhas auxiliares da política externa dos Estados Unidos na aplicação da chamada agenda de “exportação da democracia”. Embora o autor ressalve que tais entidades possam eventualmente atuar de modo autônomo em relação ao Departamento de Estado, ao Pentágono e aos órgãos de inteligência estadunidenses, ele afirma que as políticas são sempre convergentes. O livro traz dados interessantes sobre as ações da Open Society Foudations e que podem servir para uma discussão mais ampla sobre quais os reais interesses dessa entidade na sua atuação também no Brasil.

Existe fundamentalmente um padrão de atividade de movimentos de desestabilização, financiados por essas entidades transnacionais, cujo livro – Da Ditadura à Democracia – escrito pelo professor da University of Massachussets e diretor do Albert Einstein Institute, Gene Sharp, resume como uma espécie de manual popular daquilo que classifica como “revolução não-violenta”. É evidente que em cada país há particularidades que modificam sobremaneira o modo de agir imperialista. Entretanto, o intuito geral da agenda de “exportação da democracia” vem sendo o de subsidiar, com recursos e treinamento, a desestabilização e a mudança de regimes ou governos não-alinhados a uma política de abertura de mercados, de privatizações, de pilhagem de recursos naturais e de favorecimento à especulação cambial e financeira.

Para essas finalidades, as entidades buscam fomentar pautas políticas, encabeçadas por movimentos locais, que encontram, por sua vez, dificuldades de financiamento local. A pretexto de apoio descompromissado a demandas, quase sempre, legítimas da população, as ações dessas entidades transnacionais escondem interesses subreptícios. Tais conjuntos de interesses são tanto mais imediatos quanto estratégicos. No primeiro deles, encontram-se a ampliação de oportunidades de negócios a partir de demandas que levem a isso bem como oportunidades de especulação cambial e financeira a partir da promoção da desestabilização econômica do país. No segundo, a formação de uma hegemonia (neo)liberal e “democrática” a partir da mudança de regime ou governo, levando à quase impossibilidade de ascensão de opositores não-alinhados à política imperialista.

A não ser que se considere George Soros um humanista a serviço do bem-estar dos povos, enquanto sua atividade empresarial é predatória, não há razão para acreditar que, nas últimas décadas, ele tenha dispendido seguramente BILHÕES de dólares para ações “filantrópicas” da Open Society Foundations fora dos Estados Unidos, que não interesses econômicos e sociais espúrios.

Há, inclusive, uma política de confidencialidade de ações, explicitamente descrita no sítio eletrônico da instituição [7].

IV.

No Brasil, desde 2013, Soros ampliou ainda mais sua já antiga presença financeira e empresarial no país. Em dezembro de 2014, por exemplo, com a desvalorização das ações da Petrobrás no mercado financeiro, Soros investiu em grande compra de ações da companhia petrolífera [8], ao passo que um dos seus financiamentos “filantrópicos” no Brasil é voltado a entidades de combate à corrupção! O mesmo conflito de interesses ocorre com o apoio de Soros ao movimento de mídia dita alternativa, uma vez que ele tem investimentos também nessa área no Brasil, através dos grupos Sunrise e On Telecom [9].

Com o golpe ocorrido este ano no país, surgiram alguns artigos na mídia dita alternativa sobre financiadores estrangeiros de movimentos de direita, como o Movimento Brasil Livre, Vem Pra Rua etc.[10]. Ocorre que, nos últimos anos, esse financiamento estrangeiro não se restringe a movimentos de direita tampouco a entidades sem fins políticos explícitos. Parte significativa de ONGs, veículos de comunicação, entidades e pesquisadores identificados com a esquerda no Brasil vem recebendo volumosas somas de aportes financeiros dessa natureza e, em particular, da Open Society.

Não cabe arrolá-los nesse espaço, pois basta uma pesquisa rápida na rede mundial de computadores para saber quem são, ainda que nem todos tenham uma política de transparência dos financiadores. A pergunta que surge é a seguinte: Deve a esquerda brasileira receber recursos financeiros oriundos de fundações, ONGs, empresários e financistas das principais potências estrangeiras para lutas políticas no Brasil, considerando ainda o histórico desses ignóbeis filantropos?

NOTAS:

[1] Claudia Antunes (2015). O embaixador de Soros. Valor Econômico, 30 out. 2015. Em 2013, foram destinados US$ 28 milhões para a América Latina.

[2] George Soros: “The billionaire trader has become eastern Europe’s uncrowned king and the prophet of “the open society”. But open to what? by Neil Clark, New Statesman, June 2, 2003. Review by Karen Talbot. http://www.globalresearch.ca/articles/TAL307A.html

[3] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A segunda guerra fria: geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

[4] Assim como os dados sobre a Iugoslávia, sobre a Ucrânia, Azerbaijão e Quirguistão foram igualmente retirados de BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A segunda guerra fria: geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

[5]  Rodrigo Fernandez. Senado russo pede investigação de 12 ONGs internacionais. El Pais, 9 jul. 2015. http://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/08/internacional/1436359865_897102.html  ; Shaun Walker. Russia bans two Soros foundations from disbursing grants. The Guardian, 30 nov. 2015. https://www.theguardian.com/world/2015/nov/30/russia-bans-two-george-soros-foundations-from-giving-grants

[6] George Soros: “The billionaire trader has become eastern Europe’s uncrowned king and the prophet of “the open society”. But open to what? by Neil Clark, New Statesman, June 2, 2003. Review by Karen Talbot. http://www.globalresearch.ca/articles/TAL307A.html

[7] https://www.opensocietyfoundations.org/about/policies/confidentiality

[8] Altamiro Silva Júnior. Megainvestidor George Soros compra mais ações da Petrobrás. O Estado de S. Paulo, 19 dez. 2014. http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,megainvestidor-george-soros-compra-mais-acoes-da-petrobras,1609845

[9] Nelson de Sá. Quem paga a conta? http://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/_ed762_quem_paga_a_conta/

[10] Alguns exemplos são: Marina Amaral (2015) – A nova roupa da direita http://apublica.org/2015/06/a-nova-roupa-da-direita/ ; Pedro Marin (2016) – Golpe no Brasil: a conexão internacional http://outraspalavras.net/brasil/golpe-no-brasil-a-conexao-internacional/