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TEORIA

É preciso uma Frente Única no Brasil?

Juary Chagas|

 

Participando da mesa que debateu conjuntura na última reunião da Coordenação estadual da CSP-Conlutas/RN, um tema se revelou polêmico na discussão: se a tática de Frente Única é ou não correta para a atual conjuntura brasileira e com quem é possível realizar essa importante tática, diante da necessária resistência aos ataques do Governo Temer e dos patrões.

Uma análise teórica e histórica é fundamental. Por outro lado, é uma exigência extrair dessa análise as lições que ajudem, concretamente, numa intervenção justa à luz dos processos atuais.

 

O que é a tática de Frente Única

Durante a década de 1930, o nazi-fascismo avançava na Europa. Na Alemanha, o partido nazista ganhava peso e influência ideológica de massas, até o momento em que passou a confrontar-se fisicamente com as organizações da classe trabalhadora.

Diante desta situação, o revolucionário comunista Leon Trotsky percebia o perigo que rondava, a ameaça de retrocesso histórico que significaria o ascenso fascista e declarou: “na luta contra o fascismo, estamos prontos para fazer acordos práticos de luta com o diabo e sua avó”. Esta declaração era a materialização de uma tática que originalmente foi pensada no quarto congresso da III Internacional Comunista: um chamado para que as organizações da classe trabalhadora (independente de suas diferenças estratégicas) se unissem em torno de um programa (parcial, mas um programa) comum, em base a tarefas específicas. No caso, o programa comum eram todas as tarefas concretas exigidas para a derrota do nazismo e de seus planos econômicos e políticos. E este programa poderia ser levado adiante com todas as organizações dos trabalhadores que assim quisessem, por mais traidoras e/ou burocráticas que fossem.

Mas, infelizmente o plano de Trotsky não se concretizou. Tanto a velha social-democracia alemã quanto o Partido Comunista, as principais organizações do movimento operário à época, se negaram a constituir a frente única e a contrarrevolução terminou triunfando. O retrocesso se abateu na Alemanha, mas, as lições sobre a necessidade da Frente Única naquele contexto mantiveram-se vivas.

 

Os critérios para a adoção da Frente Única e a esquerda brasileira

O impressionante reflexo político de Trotsky e o desdobramento reacionário do triunfo do nazismo diante da impossibilidade de construção dessa resistência popularizaram a tática de Frente Única no seio das organizações dos trabalhadores. E como toda tática que se populariza, torna-se objeto constante dos exageros, como os de tipo abusivo, que a transformam a Frente Única numa tábua de salvação que pode ser usada a qualquer momento e a serviço de um único projeto político.

Para citar exemplos disso na realidade brasileira, basta dizer que já há algum tempo (mais especificamente desde que o Governo Dilma, em seu segundo mandato, passou a ser rechaçado pela população), organizações importantes como o PT, a CUT, PCdoB, CTB, Consulta Popular e um amplo leque de organizações ligadas à defesa do governo petista chamaram à formação de uma “Frente Única” (depois se conformou enquanto Frente Brasil Popular) cujo objetivo era lutar contra o ajuste fiscal de Levy (à época, Ministro da Fazenda), se opor à tentativa de impeachment e, ao mesmo tempo, fazer a defesa do Governo do PT. Houve naquela circunstância, evidentemente, o mesmo erro abusivo em caráter oposto: pequenas organizações que chamaram a construção de uma Frente Única tendo como base a adesão a um programa revolucionário. No entanto, é também evidente que a maior responsabilidade por não ter se construído uma frente única que tivesse chance de impedir o golpe parlamentar foi das direções majoritárias.

O fato é que haviam elementos justos que poderiam unificar a maior parte dos movimentos sociais no Brasil frente a uma rearticulação da burguesia em torno da oposição de direita ao PT. A luta contra o ajuste fiscal e contra o impeachment (que não se tratava de um movimento independente dos trabalhadores para derrubar Dilma e colocar em seu lugar um governo de fato da classe trabalhadora, mas uma manobra reacionária), eram justíssimas. Contudo, ao conectar o programa que desprendia dessas tarefas a uma defesa da manutenção do projeto político do governo de conciliação de classes do PT, a conformação da Frente Única fracassou: as organizações dos trabalhadores ficaram divididas na luta concreta contra a rearticulação burguesa e uma situação mais desfavorável se abriu.

Essa interpretação abusiva da Frente Única, em que se subordina a sua construção a um projeto político unitário é errada não apenas porque limita a liberdade política das organizações, mas também porque na prática isto impede a unificação. Concretamente, no caso brasileiro, não havia unidade entre as várias organizações sobre se o governo do PT deveria ser politicamente defendido. Isto porque é fato que no seio da classe trabalhadora as organizações estão, do ponto de vista estratégico, irremediavelmente divididas em reformistas, centristas, revolucionárias, etc. e, por essa simples razão não há como uni-las em torno de um único tipo de projeto político.

A Frente Única não pode, portanto, silenciar as organizações, ao contrário. Por esta razão que Trotsky pensou essa tática como um acordo prático em torno de um programa de tarefas concretas reais, mas justamente no marco da diferença estratégica e do direito inseparável de divergir das organizações para as quais se dirige o chamado a se unir. Portanto, não só era possível e legítimo construir uma Frente Única que enfrentasse o impeachment sem que isso significasse defender do governo do PT, como na verdade esta era de fato a única forma possível que esta frente única se conformasse enquanto tal. Ao não romperem a relação de dependência e ao manterem apoio político ao governo do PT como um fator constitutivo (nem sempre em termos nominais, mas sempre em termos práticos), a proposta de Frente Única com o conjunto das organizações não se concretizou e isto terminou ajudando a burguesia brasileira na sua tarefa.

 

O dogmatismo na aplicação da Frente Única também pode cobrar seu preço

Assim como há os exageros abusivos na aplicação da Frente Única, há também os de tipo dogmático. Trata-se de um modo de interpretação igualmente nocivo, porque não capta os reais critérios que balizam a justeza da tática e, ao transformá-la num instrumento abstrato, pode criar obstáculos à sua utilização justamente nos momentos em que há essa necessidade.

Um primeiro aspecto sobre uma interpretação dogmática da Frente Única é a idéia autoproclamatória de que os organismos de frente única que nós construímos são sempre suficientes e, por isso, é relativamente comum nos deparamos com chamados formais para que as outras organizações façam um movimento de simples adesão as propostas dos organismos dos quais participamos.

Isto definitivamente não é assim. Trotsky faz inclusive uma distinção entre os organismos de frente única que se conformam em torno de um programa de tarefas de prazo mais longo (como por exemplo, os sindicatos e as centrais sindicais) com os organismos de Frente Única para um programa de luta imediata, porque compreende que há momentos a construção de novos organismos – sem necessariamente abrir mão dos que já existem – não só é possível como necessário.

Não é porque um sindicato ou uma central sindical já “há tempos” levantam a ideia unificar as organizações para travar uma luta justa que estas irão simplesmente aderir a essa ideia. A construção da tática de Frente Única exige audácia e também sensibilidade política. Às vezes, para superar a forças das organizações já existentes e unir os principais organismos dos trabalhadores em defesa de um programa de luta concreta se exige sínteses, criação de novos organismos, novos acordos para lutar. Muitas vezes a auto-proclamação que simplesmente afirma as organizações que construímos impede que se avance pra construção de outras frentes que são necessárias em determinado momento político.

Um segundo aspecto sobre uma interpretação dogmática da Frente Única é aquele que só admitem a utilização dessa tática em condições idênticas ou muito semelhantes às observadas historicamente quando do seu surgimento, como se a necessidade de uma Frente Única só se estabelecesse frente a uma situação de ascenso fascista ou abertamente contrarrevolucionária.

Este, definitivamente, não foi o critério de Trotsky. Basta, para compreender isto, perceber que a ideia da tática de Frente Única não surgiu de uma auto-iluminação, mas de uma análise concreta da situação concreta. Trotsky nunca afirmou que a tática de Frente Única se aplicaria apenas naquela situação e nem poderia fazer isto porque quando se deparou com o ascenso nazi-fascista, este era um fenômeno absolutamente novo. O critério de Trotsky, portanto, não foi o de “ter uma política para o fenômeno fascismo” enquanto tal, mas o de elaborar uma tática que respondesse uma situação em que a burguesia se rearticulava ativamente (tendo como materialização concreta o avanço nazi-fascista) num momento em que nenhuma organização sozinha poderia derrotar essa ofensiva. É o que, por exemplo, ao analisar concretamente a situação pós-impeachment e a iminência dos violentos ataques da burguesia e de Temer, justifica a tática de frente única na realidade brasileira atual.

Há, ainda, por fim, um terceiro aspecto dogmático interpretativo da Frente Única que não necessariamente é resultado de uma leitura estreita do conceito, mas de uma visão não dinâmica (e, portanto, não marxista) da realidade. A teoria não é uma receita, mas um guia que nos norteia perante uma situação concreta. É preciso, portanto, observar o movimento da realidade. E, com isso, atualizar para a situação presente as condições de utilização das táticas.

Por exemplo, até antes do impeachment, seria impensável construir uma Frente Única com as organizações dos trabalhadores que faziam parte do pacto de conciliação de classes do governo do PT. PT, CUT, PCdoB, UNE, etc. Estas não só prestavam apoio ao governo petista mas faziam parte dele e, exatamente por essa razão, não foram capazes de chamar a construção de uma frente única contra o impeachment que fosse verdadeiramente independente, a única maneira através da qual seria possível unificar ao máximo e construir uma onda de choque contra a rearticulação burguesa. A constituição de uma frente única naquela situação exigia, portanto, uma ruptura dessas organizações com o governo para uma posição de independência.

Entretanto, a realidade poucos meses depois é outra. A burguesia brasileira foi vitoriosa no seu plano. A desgraça da conciliação de classes petista abriu caminho para um novo governo também de natureza burguesa, mas sem o caráter anômalo e numa situação mais defensiva para os trabalhadores. As organizações da classe que antes eram parte do projeto de conciliação foram descartadas. Estão fora do Governo Temer. A relação com o governo, ainda que seja moderada e com objetivos políticos de conciliação futura, é de oposição. Não há mais a relação de dependência que impedia uma frente única como uma questão principista. Agora, com todas as contradições, ela é possível.

Sem atualizar essas definições da situação da luta de classes no Brasil é impossível uma análise justa que concretize políticas justas. Nesse momento em que a maior parte das principais organizações dos trabalhadores passa à oposição a Temer, cometer erros dogmáticos pode impedir a construção da resistência. E isto pode ter efeitos graves.

 

A Frente Única na atual situação brasileira é uma necessidade

A discussão da necessidade ou não da tática de Frente Única no Brasil passa necessariamente pela análise da mudança da situação política que se processou em 2016.

As grandes mobilizações de junho de 2013 abriram uma situação política mais favorável, com a classe trabalhadora (ainda que dispersa) estabelecendo uma ofensiva que impediu não somente os aumentos das tarifas de transporte, mas que colocou em pauta a conquista de direitos, tanto econômicos quanto políticos. No entanto, essa situação mudou na medida em que não foi possível transformar esse movimento em saldo organizativo, continuando o alto nível de mobilização.

A burguesia brasileira ocupou o vácuo político aberto pelo refluxo do movimento, combinado com a chegada da crise econômica e a justa insatisfação da população com o governo do PT. A classe dominante se unificou e se apoiou no judiciário, na Polícia Federal e nos grandes meios de comunicação para impulsionar grandes mobilizações reacionárias contra o Governo Dilma antes que movimentos progressivos o fizessem. Assim concretizaram o impeachment e, tomando a frente das ações, deram a Temer a tarefa de executar um conjunto de medidas que, em síntese, tem o objetivo de impor derrotas históricas a classe trabalhadora no patamar que estamos vendo atualmente, para impulsionar um novo ciclo de ascensão econômica.

Não se trata, evidentemente, de uma contrarrevolução ou uma situação que se assemelhe ao golpe militar de 1964. Esta narrativa é muito mais uma propaganda ideológica catastrófica para justificar a defesa do mal menor, ou seja, mais uma alternativa de conciliação de classes. No entanto, a situação atual não é a continuidade de junho de 2013. É regressiva, é mais defensiva e exige a construção de uma Frente Única para impedir os planos de Temer e da burguesia, uma vez que não há nenhuma organização do movimento de massas que possa realizar esta tarefa sozinha. Sem isso, por exemplo, é impossível falar de greve geral.

O conjunto da esquerda tem a responsabilidade de levar esta tarefa à frente, sem que isto signifique abrir mão dos seus objetivos estratégicos. É do sucesso dessa resistência que depende o destino da classe trabalhadora brasileira para as próximas décadas.

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