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BRASIL

Uber: entre o século 21 e o século 19

Por: Miguel de Paula*, do ABC paulista, SP

O debate sobre mobilidade urbana e a Uber tem sido um dos temas recorrentes em várias cidades pelo mundo, seja pela inovação, seja pela disputa com os taxistas. O objetivo deste artigo é debater como os socialistas devem se posicionar nesse debate. É fundamental que saibam responder aos fenômenos da atualidade e a Uber tem tudo a ver com mobilidade urbana e o direito às cidades, discussões centrais para os socialistas. Não tenho a pretensão de dar uma resposta acabada neste artigo, mas apenas de iniciar um debate.

A chegada do transporte ao século 21
É inegável que a Uber trouxe uma ideia original, que aliada à tecnologia do século 21 trouxe um novo conceito para a mobilidade urbana. Sua chegada, na prática democratizou o transporte nas grandes cidades, daí o apoio quase unânime dos trabalhadores e da população em geral.

A Uer possibilitou que um amplo setor da classe trabalhadora que antes não tinha condições de utilizar táxi, passasse a utilizar esse meio de transporte. Muitos que nunca utilizavam táxis, ou o faziam raramente, passaram a ter essa possibilidade ‘na palma da mão’, a um preço muito mais baixo.

No Brasil e em diversas cidades do mundo, o transporte, incluindo táxis, ônibus, vans, entre outras formas, é controlado por máfias, que são odiadas pelos trabalhadores. A Uber está quebrando a máfia dos taxistas, outro fator que colaborou no amplo apoio popular.

No entanto, para os socialistas não basta ficar na análise superficial dos fatos, nem muito menos se deixar levar pela ‘opinião pública’ em geral. É necessária uma análise mais profunda.

Os empresários, a mídia, os liberais aplaudem a Uber, pois oferece um serviço melhor que os táxis e com um preço menor. Mais que isso, a UBER desregulou o mercado e trouxe a tão aclamada ‘livre concorrência’. Aliás, já há outros aplicativos semelhantes, como 99, cabify, willgo, entre outros.

Para os trabalhadores, só o fato desses setores aplaudirem a Uber já é motivo de desconfiança.

Crise econômica e mobilidade urbana
As grandes cidades em todo o mundo vivem um verdadeiro caos na mobilidade urbana, particularmente nos países “atrasados”, mas com a crise mundial e corte de gastos públicos em todo o mundo, esse caos também está presente em muitas capitais de países imperialistas.

A crise econômica também tem provocado milhões de demissões por toda a parte, o que gera um exército de desempregados obrigados a trabalhar sob qualquer condição para garantir o sustento de suas famílias.
A Uber se aproveitou exatamente dessas duas “frestas”, seus criadores têm o mérito de as terem identificado bem e apresentado um negócio que se encaixe nelas. Mas, a Uber é muito mais que isso.

O que é a Uber?
Por trás do apoio popular e dos preços baixos se esconde a verdadeira UBER. Uma empresa capitalista que recebeu bilhões de investimento de grandes fundos como o Goldman e Sachs, de gigantes de tecnologia como Google e Microsoft e segue recebendo bilhões em investimentos.
O objetivo da UBER é obter a maior taxa de lucro possível para distribuir aos seus acionistas. Mas, estranhamente todas as notícias dão conta que a UBER vem tendo prejuízo nos últimos anos, a mais recente de um prejuízo de mais de U$ 1 BILHÃO só no primeiro semestre de 2016.
Mais estranho ainda é que a UBER segue recebendo bilhões em investimentos. Por que então a grande Burguesia Mundial segue investindo em uma empresa que vem tendo bilhões de prejuízo?
A explicação está na estratégia de negócios da UBER, selvagem e predatória (não que eu acredite em capitalismo humanitário!). Se aproveitando da ausência de qualquer lei ou regulamentação na maioria dos países, ou mesmo desrespeitando as leis onde elas existem.
Adota práticas como a redução da artificial das tarifas para “quebrar” os aplicativos concorrentes e os taxistas e uma longa lista de desrespeito de leis, normas, e até de práticas condenadas pela própria burguesia mundial que “regula o mercado” através da OMC, a UBER atua como qualquer outra empresa imperialista, apesar de sua aparência “amigável”.

“Concorrência” e “livre mercado”?
A ideia de um mercado desregulado e com livre concorrência, qualquer que seja, é uma grande mentira utilizada pelos capitalistas para enganar os trabalhadores. O que ocorre é exatamente o oposto. A economia mundial está cada vez mais concentrada em um número menor de capitalistas, basta investigar qualquer setor da economia para verificar isso. Ou mesmo os dados mais recentes que comprovam a maior concentração da riqueza em todo o mundo.

No caso da Uber, ela busca construir um monopólio mundial. Os concorrentes são, em geral, marginais, e onde tentam fazer frente a ela são suprimidos, ou minimizados pelas práticas desta. Em um mercado novo é possível que haja concorrência no curto prazo, algo cada vez menos provável pelo monopólio que a Uber já está consolidando na maior parte do mundo. Se em algum país outro aplicativo se destacar mais que a Uber, provavelmente será esmagado ou comprado por ela.

É essa estratégia monopolista que faz os grandes capitalistas investirem altos volumes na Uber, pela expectativa de altos lucros no futuro, após deter um monopólio mundial. Não à toa o preço de mercado da Uber já está acima da GM, Ford e outras gigantes.

Isso significa que mesmo os aparentes “benefícios” com a chegada da Uber em diversas cidades, logo serão suprimidos em prol dos lucros. Ou alguém tem dúvidas do que possa acontecer logo após a Uber derrotar de vez os táxis e demais concorrentes? Já há o exemplo do preço dinâmico e no México já há denúncias de que após eliminar os táxis, a Uber elevou os preços abusivamente.

O retorno ao século 19
Para além da estratégia monopolista, há outro elemento fundamental que garante um futuro promissor de realização de lucros para os proprietários da Uber: os seus trabalhadores, os motoristas. Pouco importa para nossa análise as declarações da empresa de que os motoristas não são funcionários, ou se a própria legislação trabalhista entende que são, ou não.

Os motoristas da Uber, para conseguir sustentar suas famílias precisam trabalhar 14h, 16h, ou até mesmo 18h por dia, sete dias por semana, sem férias, 13°, FGTS, horas extras, entre outros benefícios. Mesmo aqueles que o fazem para complementar a renda de outro trabalho, recebem muito menos quando estão trabalhando para a Uber, ainda mais se compararmos com “horas-extras” caso realizassem essa jornada no seu trabalho principal.

Imaginem se qualquer empresa com 50 mil funcionários tivesse essa prática? Seria um verdadeiro escândalo! Certamente haveria um rechaço generalizado dos trabalhadores. Nem mesmo o McDonalds, conhecido por superexplorar seus trabalhadores, têm essa jornada de trabalho sem direitos.

A Uber ilude seus motoristas, maquiando seus ganhos e dizendo que são donos do próprio negócio por serem os proprietários dos veículos. Na verdade, a Uber se livra do que seria seu principal custo, o veículo. Há diversos gastos implícitos que os motoristas não enxergam facilmente, como custo de manutenção do veículo, depreciação acelerada por conta do uso intenso, custo de eventuais acidentes, multas, entre outros. Os custos do veículo são altos, e quando colocados na ponta do lápis reduzem os ganhos dos motoristas a valores incrivelmente baixos, ainda mais comparados com a jornada de trabalho.

É justamente aí que reside outro grande potencial de lucros da Uber, na superexploração de seus trabalhadores. E a tendencia é piorar ainda mais. Em diversos países tem elevado o percentual que desconta dos motoristas, chegando a 30% do valor. Retrocede as relações de trabalho para padrões praticados no século 19, retirando de uma só vez todos os direitos com jornadas de trabalho extenuantes. Portanto, é um crime que os socialistas se calem sobre a Uber, ou a defendam sob qualquer aspecto.

E eu com isso?
Alguns trabalhadores podem pensar: trabalha para a Uber quem quer, isso não tem nada a ver comigo. Nada mais falso. Sempre que há um setor superexplorado da classe, este serve de pressão para a redução de salários e direitos do conjunto da classe. Como já vem acontecendo com as categorias que têm mais direitos, que vêm perdendo os direitos conquistados. Quem nunca ouviu a máxima “Se você está insatisfeito com este trabalho, tem outros lá fora que aceitariam”?

Significa que o ganho que um setor da classe tem hoje em mobilidade urbana lhe será cobrado em dobro em redução de salários e direitos, isso se é que já não está sendo cobrado. Por isso, a ideia de que a classe trabalhadora possa, de fato, beneficiar-se dos avanços tecnológicos e da ‘concorrência’ capitalista não passa de uma grande mentira. Esse mecanismo é uma das principais fortalezas do capitalismo para embriagar a classe trabalhadora.

Em defesa dos táxis?
Fazer uma análise correta da Uber não significa que os socialistas devem apoiar os táxis, ou fechar os olhos para os avanços tecnológicos. Os táxis sempre foram comandados por máfias nas grandes cidades, sendo de poucos donos (às vezes camuflados como cooperativas), que também superexploram outros trabalhadores cobrando diárias altíssimas. Aliás, nada impede que com o tempo aconteça o mesmo com a Uber, já que é permitido ao motorista utilizar carros de terceiros, quem garante que em algum tempo não terão poucos com uma frota de carros que cobram diárias de motoristas? Essa prática já vem ocorrendo, apesar de ainda não ser generalizada.

Portanto, não se trata de ignorar que a tecnologia pode contribuir para democratizar as cidades, facilitar o transporte. Não podemos simplesmente defender “Fim da Uber” e o retorno dos táxis retornando, como era antes.

Construir um Programa para a Uber e para a mobilidade urbana
É essencial que os socialistas avancem no debate sobre o programa que devem adotar em relação à Uber, que deve estar associado a um programa para a mobilidade urbana. Vou apenas apontar alguns itens para abrir a discussão, que certamente vão conter erros e imprecisões.

Devemos partir do programa geral para a mobilidade urbana, focado no transporte público de massas, em especial sobre trilhos estatal, passe livre, tarifa social. Mas, esse debate já está mais consolidado entre os socialistas, por isso não vamos aprofundá-lo neste artigo, nosso objetivo aqui é outro. É importante deixar claro que consideramos que uma política para o transporte tipo Uber é auxiliar a primeira. Consideramos que a política central para mobilidade urbana deve ser voltada para o transporte público de massa.

Para a UBER, em primeiro lugar temos que exigir garantia do vínculo empregatício de todos os seus motoristas, garantindo pagamento mínimo fixo, jornada de trabalho e todos os direitos trabalhistas. Essa reivindicação não deve ser confundida com uma jornada de trabalho fixa, pois é plenamente possível garantir todos os direitos trabalhistas com jornada de trabalho diferente das 44 horas semanais, como já ocorre em alguns setores inclusive.

Mas, não podemos parar por aí. Temos que que exigir que o estado tenha política para este novo tipo de mobilidade urbana. As Prefeituras poderiam criar e incentivar plataformas gratuitas de caronas, conectando pessoas que têm o mesmo destino, sem custos, reduzindo o número de carros nas ruas.

Poderiam ser criados aplicativos similares ao da Uber sem a cobrança das altas taxas dos motoristas, garantindo os direitos aos trabalhadores. Em todas as regulamentações que estão sendo aprovadas nos municípios e também no debate que será aberto no Congresso Nacional, garantir que seja exigido o pagamento de todos os direitos para poder operar no Brasil. Algo que é solenemente ignorado por todos.

Tudo isso, com a garantia que o estado comece a operar também nessa modalidade de transporte a preço de custo, sem a busca incessante pelo lucro, o que poderia garantir preços baixos sem gerar novas despesas, já que as despesas públicas em mobilidade urbana devem ser focadas no transporte de massa.

Neste marco, uma ‘Uber’ pública com caronas para quem vai ao mesmo destino e também possibilidade de pagar por “corridas”, voltada para o transporte da população e não para os lucros poderia fazer parte da política de mobilidade urbana. Sua modalidade pool (onde várias pessoas com destinos similares podem compartilhar o mesmo veículo), poderia integrar o sistema com carros 7, 10, 12 lugares nessa modalidade, tornando esse sistema um importante auxiliar ao transporte de massa, ou ao menos um intermediário até que se garanta o transporte coletivo com dignidade para todos.

* Com a discussão e colaboração de um dos núcleos do #MAIS ABC.

Foto: An UBER application is shown as cars drive by in Washington, DC. (Andrew Caballero-Reynolds/AFP/Getty Images)