Por: Saymon de Oliveira Justo, mestre em História pela UNESP
A Revolução de Outubro de 1917 transformou praticamente todas as esferas da sociedade russa. A propriedade privada foi violentamente atacada, a economia passou a obedecer a uma nova lógica. As antigas relações sociais foram subvertidas, o que era certo se tornou errado e vice versa. E nesse novo mundo que estava sendo criado, a produção artística também não escapou incólume.
Já nos primeiros anos da Revolução, muitos bolcheviques renegavam todo e qualquer resquício do passado imperial. Como Comissário da Guerra, Trotsky travou uma encarniçada luta no seio do próprio Partido contra seus camaradas que queriam expurgar do Exército Vermelho os oficiais formados nas academias do Czar. O mesmo Comissário perdeu parte do seu capital político em rusgas com setores do bolchevismo que pretendiam eliminar sumariamente toda ‘arte burguesa’ e não menos sumariamente, forjar uma suposta ‘arte proletária’.
Conforme Stalin e seus partidários ascendiam no Partido e no governo soviético, essa perspectiva de banir todas as ‘conquistas’ das antigas gerações como velharias burguesas ganhou força. Se no final da década de 1920 a coletivização forçada do campo e a criação dos Kolkhoz (fazendas coletivas) representam a insanidade do regime em eliminar a pequena agricultura individual, anos antes os Kommunalkas objetivavam também o fim do modelo burguês de convivência. Os Kommunalkas eram apartamentos coletivos, onde várias famílias compartilhavam cozinha, sala, banheiro, enfim, constituía uma tentativa de eliminar o individualismo e a privacidade familiar, valores tidos como nocivos à nova sociedade.
A arte proletária também deveria banir o individualismo, assim, os novos poetas eram ‘incentivados’ a louvarem o amor ao Partido, ao camarada Stalin e ao coletivismo. O antigo lirismo do homem por sua amada, ou vice-versa, passa a ser visto em princípio como fraqueza pequeno-burguesa e posteriormente como uma “arte inimiga” da nova sociedade e seus valores, podendo mesmo o artista ser enquadrado na categoria penal de “inimigo do povo”. Nesse contexto, o regime soviético patrocinava cineastas, pintores, escultores, romancistas e poetas, transformando-os em soldados da nova cultura proletária, ou melhor, panfletistas do regime soviético.
Konstantin Simonov nasceu no seio da antiga intelligentsia russa e para apagar essa ‘mácula’ em seu passado e ser aceito na sociedade soviética, ainda jovem Simonov rejeitou uma possível formação acadêmica e se matriculou em uma Escola de Aprendizes de Fábrica, as FZU, onde aprendeu o ofício de torneiro. Estudando durante o dia, Simonov trabalhava a noite montando cartuchos para rifles e a confiar em suas memórias, realmente se empolgou com o ‘espírito da Revolução’. Com a prisão do padrasto, Simonov trabalhou ainda mais para construir e fortalecer uma identidade proletária, pois só assim poderia camuflar suas origens burguesas e não terminar em algum preso em algum Gulag como inimigo do povo.
Na década de 1930 estava sendo construído o Canal do Mar Branco, uma obra que ligaria este ao Mar Báltico. Nessa obra foi empregada literalmente mão de obra dos prisioneiros dos gulags, que morreram aos milhares escavando o canal com as próprias mãos. Foi por esses tempos que Simonov escreveu alguns poemas sobre o caráter redentor do trabalho na vida dos prisioneiros políticos. Não se sabe exatamente como, mas esses poemas foram parar nas mãos dos agentes da OGPU (polícia política) e esse foi o início da carreira de Simonov como “poeta proletário”.
Konstantin Simonov foi um típico poeta a serviço do Partido e do Estado soviético deformado pelo estalinismo. Recebia incentivos, regalias e orientações para se enquadrar no Realismo Socialista e promover as conquistas e façanhas do regime. Tido por muitos como um poeta medíocre, Simonov conseguiu sobreviver e se destacar no mundo soviético em boa parte pelos serviços líricos que prestava ao regime. Com a invasão da União Soviética pela Alemanha nazista em 1941, Konstantin Simonov foi mandado ao front como uma espécie de correspondente de guerra e além de trabalhar contra o derrotismo, deveria escrever para levantar o moral dos ‘soldados vermelhos’. Apaixonado pela atriz de cinema Valentina Serova, Simonov escreveu ‘Espere por Mim’, talvez seu mais belo poema.
Mas, a verdadeira importância de ‘Espere por Mim’ é o rompimento que representa com o ‘Realismo Socialista’, trazendo novamente a dignidade àquele amor romântico entre duas pessoas. Soldados compilavam o poema e repassavam aos camaradas; recitavam nas trincheiras e mandavam em cartas às suas amadas. Finalmente Simonov se tornava Poeta, sentindo as dores do homem comum, traduzindo-as em poesia e a elevando à dignidade lírica.
ESPERE POR MIM
Espere por mim, que eu voltarei,
Mas tens de esperar muito
Espere quando a chuva amarela
Tristeza trouxer,
Espere quando a neve vier,
Espere quando fizer calor,
Espere quando os outros não esperarem,
Esquecidos do passado.
Espere, quando dos países distantes
Cartas não chegarem,
Espere, quando até se cansarem
Aqueles que juntos esperam.
Espere por mim, que eu voltarei,
Não perdoes àqueles
Que encontram palavras para dizer
Que é tempo de esquecer.
E se crêem, filho e mãe,
Que já não vivo,
Se os meus amigos, cansados de esperar,
Se sentam à lareira
E bebem vinho amargo
Para me recordarem…
Espere. E com eles
Não te apresses a beber.
Espere por mim, que eu voltarei
A despeito da morte.
Quem não me esperou,
Que diga: ‘Teve sorte!’
Não compreendem os que não esperavam
Como no meio do fogo
A tua espera
Me salvou.
Como sobrevivi, saberemos
Só tu e eu, –
É porque me soubeste esperar
Como ninguém mais
Konstantin Simnov
Foto: Valentina Serova e Konstantin Simonov
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