Por: Patrick G. de Paula, do Rio de Janeiro, RJ
A vitória de Donald Trump nas eleições americanas é certamente um fato a ser lamentado pela esquerda socialista. É inegável que a vitória de sua campanha machista, racista e divulgadora de todo tipo de preconceito, da degradação humana expressa em seu comportamento misógino e discriminatório contra os imigrantes e, em especial, sua descarada defesa do “liberalismo dos 1%” e suas relações umbilicais com grupos racistas de supremacia branca terão conseqüências nefastas que serão sentidas como uma onda em todo o mundo. O reconhecimento deste fato é requisito para sua necessária confrontação.
Mas, ainda que este seja um aspecto fundamental do posicionamento da população estadunidense no dia da eleição, reduzir o significado da vitória de Trump a isto, como tem feito a maior parte da esquerda de orientação reformista em todo o mundo, é ter do evento uma acepção unilateral. Há outros aspectos, talvez tão importantes quanto este, presentes na vitória do ‘magnata’, que devem ser considerados.
O que a imprensa e mesmo setores de esquerda chamam de “isolacionismo” de Trump, suas propostas de fim do NAFTA, suspensão das negociações em torno aos acordos de comércio do pacífico (TPP), redução ou retirada do financiamento da OTAN e não-intervenção em conflitos como os da Síria e da Ucrânia, entre outras, tudo isto expressa algo que talvez assuste muito mais a burguesia americana e mundial, sua imprensa e o establishment político, incluindo aí a esquerda reformista e “pró-globalização” internacional. Independente da capacidade (e real disposição) do futuro governo Trump de efetivamente realizar estas propostas, a vitória deste tipo de posição numa eleição presidencial dos EUA é um fato de grandes proporções históricas.
Trump é um oportunista que recorreu a este discurso em favor de um retreat comercial e geopolítico dos EUA e em defesa de “empregos americanos” como forma de atrair o eleitor da classe trabalhadora, em especial de regiões industriais que mais tem sofrido com a saída de empresas para o México e para a China. Trump ameaçou a GM com uma elevação de impostos para carros fabricados no México, e fez o mesmo com a Apple em relação aos equipamentos fabricados na Ásia. O acordo que ele propunha para o eleitor da classe trabalhadora era muito simples: “Deixe-nos (o 1% mais ricos) enriquecer ainda mais cortando impostos para os milionários, cortando gastos e liberalizando ainda mais as finanças, e, em troca, farei com que as empresas voltem a produzir aqui trazendo de volta os empregos industriais que vocês perderam”.
Não era um grande acordo o proposto por Trump (ainda mais levando em conta todo o lixo conservador nele embutido). Mas, ele pareceu ao eleitor americano, em especial dos estados industriais da região do chamado cinturão da ferrugem – Michigan, Ohio, Pennsylvania e Wisconsin – melhor do que o que era oferecido por Clinton: A continuação e aprofundamento sem alterações do projeto imperialista que marcou a política americana nas últimas décadas. Nestes estados, tradicionalmente democratas, foi onde se deu fundamentalmente a derrota de Clinton e a vitória de Trump (ou o Rust Belt Brexit, exatamente como previa Michael Moore).
O ponto aqui é que há uma racionalidade no comportamento do eleitor da classe trabalhadora (inclusive de parte dos apoiadores de Bernie Sanders) que votaram em Trump. Eles não foram necessariamente enganados ou seduzidos por um discurso proto-fascista. Diante da situação a eles imposta pelo sistema bipartidário, escolheram a opção que parecia lhes apresentar alguma vantagem material – a volta, ilusória ou não, dos empregos industriais estáveis, bem remunerados e com todos os benefícios -, contra outra que não lhes apresentava nada (representada na máxima de que a América já é grande da campanha democrata, ou seja, de mera continuidade). Este tipo de escolha pode escandalizar a centro-esquerda, mas não deveria surpreender quem busca entender a realidade desde uma perspectiva materialista.
Pesam nisso tudo as insuficiências gritantes das “concessões” da era Obama, como o caso do seguro-saúde que não é sequer um sistema de saúde pública ou da inexistência de uma política de salário mínimo nacional que força grande parte dos trabalhadores a ter no mínimo dois ou tres empregos para sobreviver, bem como as conseqüências da crise iniciada em 2007-2008 do ponto de vista do aumento da pobreza e da desigualdade. Mas os elementos fundamentais, os pré-supostos de toda a crise que vive atualmente o “1º mundo” capitalista (EUA e Europa Ocidental em especial) e que tende a ser capitalizada pela extrema-direita que recorre ao discurso “isolacionista” são o declínio relativo destas potências em comparação, em especial, com a China, que já é o principal parceiro comercial de boa parte dos países da Ásia, África e América Latina (e inclusive de alguns países europeus), e a radicalização decorrente da crise aberta em 2008. Na Europa, a grande razão pela qual a esquerda é incapaz de capitalizar os efeitos da crise e do declínio econômico é bem simples: Ela defende as mesmas políticas de liberalização que a centro-direita. Nos EUA, uma possível alternativa da esquerda reformista representada na candidatura de Sanders foi suprimida pela direção do partido democratai.
A Inglaterra dominou a economia mundial durante mais de um século, e durante todo este tempo o discurso do Free Trade sempre foi parte fundamental de sua política internacional. O protecionismo, por outro lado, sempre foi o refúgio do capitalismo atrasado, da “proteção à indústria nascente”, do subdesenvolvimento.
Toda a “globalização” do pós 2ª guerra dependeu da promoção da liberalização comercial pelos EUA e de sua garantia institucional, política e militar para se sustentar. Por isso, é preciso notar que pode haver um significado geopolítico e histórico relevante no resultado da eleição americana. Se Trump cumprir a “sua parte do acordo” e sua a vitória vier a significar de fato o fim do NAFTA, do TPP e de novos acordos comerciais, recuos na OMC, redução da importância da OTAN, entre outros fatores, então a votação de ontem significará um passo decisivo para o fim da ordem internacional do pós-guerra.
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Quando Lênin escreveu sua polêmica contra a noção de super-imperialismo de Karl Kautsky, seu objetivo era denunciar, como uma ilusão reacionária, a visão da possibilidade de um desenvolvimento capitalista pacífico que resultaria numa ordem mundial estável e sem grandes conflitos.
A concepção de Kautsky era de que o capitalismo poderia chegar pacificamente a esta ordem internacional estável mediante a emergência de uma potência hegemônica de modo a evitar a necessidade de guerras imperialistas e expansões violentasii. O centro da auto-ilusão que esta concepção difundia residia na afirmação de que “do ponto de vista econômico” não necessariamente o capitalismo precisaria apresentar os conflitos observados no início do século XX. Lênin corretamente apontava que a contradição necessariamente existente entre os níveis de desenvolvimento das potências capitalistas por um lado, e suas esferas de influência por outro, resultaria inevitavelmente em grandes conflitos inter-imperialistas, o que apontava para toda uma época de guerras e revoluções.
Após a restauração do capitalismo nos países do leste europeu nos anos 1980-90 surgiram alguns modismos relacionados a este tema. Além da conhecida tese do “fim da história”, tornou-se lugar-comum, inclusive em meios “de esquerda”, a idéia de que a visão de Lênin estava ultrapassada e que Kautsky não estaria tão errado como a esquerda socialista havia apontado até então. A prova disso seria a existência de um mundo “unipolar”, de uma ordem internacional pós-guerra fria na qual a estabilidade estaria garantida por uma única potência hegemônica “super-imperialista”, os EUA.
Em primeiro lugar, há um cinismo indisfarçável neste tipo de opinião. Se é verdade que o capitalismo observou uma grande estabilidade (relativa aos períodos anteriores) durante a última parte do século XX, também é preciso reconhecer que isso só ocorreu ao preço de uma devastação e destruição humana sem precedentes na 2ª Guerra Mundial e do papel do estalinismo como co-garantidor dessa ordem até 1990.
Mas a “unipolaridade” e o “superimperialismo” americano não duraram nem sequer 30 anos. O crescimento econômico e da influência da China e a crise geraram as primeiras mudanças importantes na ordem internacional. Agora o declínio relativo da economia americana gerou as condições para que uma posição política contrária ao papel de superpotência imperialista garantidora da ordem internacional fosse, pela primeira vez desde a guerra e do estabelecimento desta ordem, vitoriosa em uma eleição presidencial estadunidense.
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Mesmo sem exagerar a importância deste resultado (as posições defendidas por Trump podem neutralizadas pelo establishment republicano, por exemplo), nem pintá-lo em cores mais bonitas do que ele realmente apresenta. Todo militante socialista precisa notar que o desmoronamento desta ordem internacional, ou ao menos um enfraquecimento relevante dela, é um momento importante e necessário para o tipo de transformação que uma política socialista e internacionalista pretende produzir. Neste caso, assim como os malefícios, as possíveis vantagens produzidas pelas contradições dos movimentos da política burguesa, ainda que por caminhos tortuosos, precisam ser identificadas. Estamos novamente em um momento no qual a contradição fundamental entre os níveis de desenvolvimento das principais potências do mundo e suas respectivas áreas de influência geram grandes conflitos e transformações, abrindo espaços para a atuação do socialismo revolucionário.
De todo modo, não deixa de ser curioso que um possível momento importante do desmoronamento desta ordem internacional, a vitória eleitoral de uma posição que expressa de alguma forma uma retirada (ou redução) dos EUA do papel de seu principal garantidor, seja comemorada sob o Slogan Make América Great Again, ainda mais com bonés made in China.
i É bom lembrar que, conforme demonstram os emails vazados da DNC, apenas mediante uma intervenção da direção do partido democrata o senador Bernie Sanders foi derrotado nas prévias. A crise do imperialismo estadunidense é tal que houve durante um certo momento um risco real de que as duas candidaturas presidenciais, tanto do lado democrata quando do republicano, expressassem uma posição protecionista e de recuo no papel dos EUA na sustentação da ordem internacional, ou seja, no mínimo uma alteração substancial de seu projeto imperialista.
ii Ainda que não seja possível desenvolver o tema aqui, é importante notar que também constituía um fundamento da visão de Kautsky a idéia de que os monopólios, ou melhor, a fase monopolista do capitalismo, significaria o fim da operação da lei do valor. Neste erro teórico, Kautsky foi acompanhado pela maior parte do marxismo reformista do século XX e, inclusive, pelo estalinismo do pós-guerra.
Foto: Trump delivering a speech in August 2016|wikipedia
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