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A transfobia nossa de cada dia

Travesti Socialista

Travesti socialista que adora debates polêmicos, programação e encher o saco de quem discorda (sem gulags nem paredões pelo amor de Inanna). Faz debates sobre feminismo, diversidade de gênero, cultura e outros assuntos. Confira o canal no Youtube.

Por: Travesti Socialista, colunista do Esquerda Online

Transfobia não é coisa de Malafaia. Não se resume apenas a agressões físicas ou psicológicas, maus-tratos, tentativas de curar uma pessoa trans, negar o acesso à educação ou ao emprego. Tudo isso são formas mais visíveis de transfobia, mas temos que ir além. Entender que a transfobia é uma ideologia que é impregnada em toda a sociedade, ensinada desde a infância.

Ainda na barriga da mãe, nos é dado um gênero e um nome. Um gênero e um nome que não necessariamente vai corresponder a como vamos nos identificar quando crescermos. Isso é uma opressão a nós, mulheres que fomos designadas como homens antes de nascermos, aos homens que foram designados como mulheres, às pessoas que não se identificam nem com um e nem com outro gênero. A opressão que a gente sofre, portanto, começa aí: na ausência do direito de ter a nossa identidade.

Se compreendemos que o gênero é social, ou, como disse Simone de Beauvoir, “Ninguém nasce mulher, torna-se”, então percebemos que não é nada natural recebermos, desde antes do nascimento, um gênero. O fato de recebermos um gênero e um nome feminino ou masculino é a materialização mais concreta e óbvia da ideologia de que nós nascemos mulheres ou homens. Uma ideia que é falsa e é o pilar fundamental da transfobia.

Linguagem e transfobia
Na nossa língua, existem cinco classes de palavras que têm flexão de gênero: substantivos, adjetivos, artigos, pronomes e numerais. Isso significa que, na prática, é impossível sequer falar a respeito de uma pessoa sem designar-lhe um gênero.

Você talvez já passou pela experiência de conhecer uma pessoa e, ao tentar falar com ela, acabar engasgando, porque não sabe se a trata no feminino ou masculino. Outras vezes, tratamos com o gênero errado. Isso acontece porque já está profundamente arraigado no nosso costume que devemos julgar o gênero pela aparência. Nossa língua reforça isso, o que é um problema bem menor em outras línguas.

Em inglês, por exemplo, não há grande dificuldade de se falar sobre uma pessoa sem referenciar seu gênero. Isso é um tremendo alívio pras pessoas trans em geral, ainda mais para as de gênero não-binário, nem feminino nem masculino.

O debate básico sobre transfobia
A transfobia é uma ideologia, ou seja, um conjunto de ideias falsas a respeito da realidade. A transfobia prega, por exemplo, que pessoas trans são pessoas doentes, loucas, pecadoras, criminosas, naturalmente promíscuas, irresponsáveis, vagabundas, incapazes, estúpidas, aberrações da natureza, etc.

Essas ideias estão espalhadas pela sociedade e estão introjetadas no senso comum, na relações sociais, na cultura e na política. Mais do que isso: até mesmo no que fazemos no cotidiano. Como o ato de julgar o gênero de uma pessoa pela aparência.

Mas há também formas ainda mais sutis. Por exemplo, alguém fazer alguma comparação entre uma pessoa trans (por exemplo, Maria) a outra pessoa cis (digamos, Joana). Dizer que Maria é tão inteligente quanto Joana pode soar ofensivo. Ou dizer que é tão bonita quanto. Quem nunca ouviu alguém dizer “Fulana é tão feia que parece travesti”, ou então “Fulana é tão bonita que nem parece travesti?”

Também é muito comum (e como!) alguém estar discutindo um assunto qualquer com Maria, digamos, um assunto acerca do qual Maria estudou muito, e mesmo assim a outra pessoa tratar Maria como se ela fosse estúpida. Às vezes, essa subestimação é sutil.

Assim como nós costumamos considerar que todo homem sofre uma pressão muito grande da sociedade para ser machista, assim como toda pessoa branca é passível de ser racista, também é verdade que toda pessoa hétero e cis é passível de ser LGBTfóbica e toda pessoa cis é passível de ser transfóbica. Infelizmente, parece que até mesmo muitas pessoas dos movimentos negros, feministas e mesmo gays, lésbicas e bissexuais ainda reagem de forma defensiva e irrefletida quando se aponta que ela está sendo transfóbica por uma determinada atitude. Se isso é feito, não é raro ouvir dessas pessoas as mesmas respostas que elas tanto ouvem de seus próprios opressores: você está exagerando, ah, imagine que isso é transfobia, você está querendo chamar atenção, ganhar status, nossa, que ofensa você comparar travestis com as mulheres, com as pessoas negras e a opressão que elas sofrem, mas isso é uma acusação muito grave, tome cuidado com acusações desse tipo, isso é balanço atravessado, você nem discutiu com a pessoa e já vai acusando, etc, etc, etc.

Precisamos superar esse debate. É preciso que as pessoas cis da esquerda aprendam a minimamente ouvir e refletir sobre seus atos, estudar o assunto. Quem não fez um mínimo estudo sobre transfobia, um curso básico sobre transfobia, não pode agir como se tivesse uma capacidade natural de julgar o que é e o que não é transfobia. Precisamos dar um primeiro e minúsculo passo na formação teórica e compreensão prática sobre a transfobia, isso é urgente.

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opressão / transfobia