Por: Pedro Rosa, de Porto Alegre, RS
Espalha-se pelo país a luta contra as medidas antipopulares do governo Temer. As mudanças no Ensino Médio e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC ) 55, antigamente 241, estão mobilizando milhares de estudantes a ocuparem seus locais de estudo em resistência. Além disso, a ameaça das reformas trabalhista e previdenciária já põe em alerta as centrais sindicais. Constrói-se um novo movimento de esquerda, impulsionado pelas lutas secundaristas do último ano, pela revitalização do movimento estudantil universitário e pelas greves e paralisações de servidores públicos.
Mas é importante para a construção do movimento estudar o outro lado da moeda e saber o que impulsiona as medidas que Temer e sua base aliada aplicam com tanto afinco. Também devemos estudar o que desmobiliza aqueles afetados que não estão, ainda, protestando.
Neoliberalismo é um termo, no mínimo, controverso. Seus ideólogos tendem a dizer que ele não existe, e alguns setores da esquerda argumentam que problematizar apenas o neoliberalismo mantém incólume a sua base, o próprio capitalismo. No entanto, talvez seja um termo adequado para definir o método ideológico hoje dominante – método pelo qual as pessoas entendem o mundo, o reproduzem em seu discurso, e, muitas vezes inconscientemente, atuam para modificá-lo.
Este método tem sua base material na reação das elites aos levantes de 1968 e à crise do petróleo de 1973, e se intensifica com a queda dos estados operários do leste europeu. Entre estes acontecimentos e o presente, as taxas de filiação sindical caíram vertiginosamente no mundo inteiro. Essa diminuição da representação política da classe trabalhadora tem como consequência a ascensão da apatia política e até de um sentimento antipolítico. Uma evidência disso é o aumento das abstenções eleitorais em países onde o voto não é compulsório e o crescimento de votos brancos e nulos onde é. A política se torna, na visão de uma maioria, um jogo de poder ao invés de um espaço de representação.
r = 0,906. Contando apenas eleições parlamentares intercalares, por porcentagem de comparecimento de eleitores registrados. Fontes: OCDE e IDEA.
Enquanto decresce a confiança na política, as pessoas passam a procurar representação – e procurar exercer a sua capacidade transformadora da realidade – em instituições alternativas, como Organizações Não-Governamentais (ONGs) e empresas privadas. Em relação às últimas, a consciência de classe despenca; até a crise de 2008 e o movimento Occupy, falar do “1%” era monopólio de teóricos da conspiração. Cresce, portanto, o discurso meritocrático; se empresários e banqueiros são apolíticos, “pessoas normais” em relação ao jogo de poder estatal, se começaram “sem nada” – é comum no setor de tecnologia o “mito da garagem” – então menos separaria um trabalhador de um burguês do que de um político. O capital adquire vantagem na contradição capital-trabalho pela negação da mesma.
Trabalhar – na forma alienada e individualizada, com a alcunha sintomática de “contribuição” a uma empresa – e empreender tornam-se as vias mais aceitas para a aplicação da capacidade transformadora, em detrimento de tentativas reais de transformação social. Por causa disso é tão comum que ativistas políticos recebam dos seus críticos o imperativo “vá trabalhar!”, mesmo que militem por causas trabalhistas. O fechamento das vias políticas organizadas para a classe trabalhadora acaba por transformar a própria atividade política em algo quase herético – ainda tolerável apenas a cada dois anos, em uma data especial.
Dentro da esfera política, o método ideológico neoliberal também é dominante, mas de outras formas e por outros motivos. Dentro de repúblicas de voto popular, como o Brasil, o sucesso político normalmente depende da conquista de uma parcela significativa do eleitorado. Mas o que fazer quando este torna-se apático ou averso à política? Campanhas radicais, tanto da esquerda quanto da direita, perdem espaço. Torna-se mais importante a identificação pessoal e a construção de uma imagem vendável que, por sua vez, dependem da capacidade comunicativa do candidato e, consequentemente, do financiamento a que ele tem acesso.
Os políticos, assim como os trabalhadores, deixam de ser agentes e se tornam inteiramente sujeitos aos interesses do capital. Embora a servidão dos dois grupos seja coagida e aplicada de formas bastante distintas, há um elemento em comum: a adoção do método ideológico neoliberal. Quando um político fala de empresários como “criadores de empregos”, ele legitimamente acredita no que está dizendo, assim como o trabalhador que dá graças ao seu patrão por não estar desempregado.
Dessa forma, é possível fazer progresso na tarefa de abordar e compreender as medidas do governo Temer. A MP de reforma do ensino médio não busca mais do que hegemonizar este método ideológico dentro da educação. A remoção da obrigatoriedade – que é, efetivamente, um mandato de morte – de sociologia, filosofia, artes, educação física e do ensino de espanhol não é impulsionado por uma rejeição a essas disciplinas, e sim por estas serem “desnecessárias” frente aos estudos técnicos e profissionalizantes que a MP enfatiza. A capacidade transformadora deve ser direcionada ao trabalho alienante, e não à reflexão política ou à expressão artística. A PEC 55, por outro lado, busca transformar o próprio Estado em nada mais do que uma máquina esquelética, esvaziando a política do papel de controlar gastos orçamentários e direcionando o gasto público inteiramente ao pagamento da dívida.
No Equador, uma auditoria descobriu que cerca de 70% do valor da dívida do país era ilegal. No Brasil, a auditoria nunca foi feita, a despeito de ser prevista na Constituição de 1988. Muito provavelmente, a dívida pública é pouco mais do que um desvio massivo de verbas para os detentores do capital. Mas a negação da contradição capital-trabalho abafa o chamado e entrava a construção de movimentos com fim de auditá-la. A visão burguesa prevalece: a auditoria é um calote, e os proprietários de títulos da dívida, dignos de grande simpatia, são vítimas de uma artimanha insidiosamente, inextricavelmente, política.
Felizmente, a visão burguesa sobre a sociedade não tem monopólio – e a sua hegemonia tem enfraquecido na última década. O fenômeno das ocupações traz consigo a oportunidade para a construção de espaços livres do método ideológico neoliberal, e representa a ascensão de uma nova geração organizada e contestatória – e, principalmente, sem medo de assumir posições, criar visões e participar de atividades políticas. Frente às reformas que o governo Temer tentou, tenta e continuará tentando passar, na sua servidão incondicional aos interesses do capital, essas lutas têm valor inestimável na tarefa de construir um polo de resistência da classe trabalhadora que vá além da lógica neoliberal.
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