Maria Parks, de Goiás
Nesta quinta – feira, foi publicado em um jornal de cunho conservador uma notícia cuja manchete é: “Professor da UFG é expulso da universidade por secundaristas e faz desabafo”. Devemos levar em conta a linha editorial do jornal? Obviamente. Devemos levantar a suspeita de que este professor também talvez tenha um perfil conservador e, muitas vezes, contrário às ocupações, favorável à PEC? Podemos. Note-se o emprego das palavras “suspeita” e “talvez”, afinal, não dá para taxar todos de conservadores ou até mesmo reaças de antemão. Isto é um ponto relevante no debate que pretendo suscitar.
Em seu relato, o professor conta que chegou ao prédio onde trabalha há 25 anos e foi solicitado sua identificação com documentos. Ele se recusou a fazer isso e pediu que a ocupante que estava na portaria também se identificasse, já que não a conhecia. Ela se recusou. Ele entrou no prédio para orientar três alunos que, segundo ele, estava marcada há 3 meses. Logo após o início da orientação, um grupo grande de ocupantes se aproximou e pediu que eles se retirassem. Houve certa resistência e depois saíram aos gritos, continuando a orientação no estacionamento da universidade.
Resumidamente, este é o relato do professor. Se há incongruências ou exageros, possivelmente sim, não dá para saber. Mas, trabalhando com esse parágrafo que resume o relato, podemos desenvolver reflexões com algumas variáveis.
Setores do movimento estudantil, de técnicos e professores sempre lutaram há vários anos contra a implementação de catracas nas universidades, justamente por serem prédios públicos e que devem estar abertos à comunidade. O argumento da livre circulação foi, inclusive, levantado pelo professor. A questão da segurança nas ocupações precisa, de fato, ser levada em conta e é compreendida por quem está participando do movimento. Devemos nos perguntar se há essa compreensão por quem não está familiarizado com a dinâmica das ocupações. Pode-se apontar aí, quem sabe, até mesmo um conflito geracional.
Vivemos há décadas sob a ideia de que não devemos nos preocupar com segurança, que é possível militar sem ter que cobrir rostos, evitar fotos, não divulgar ações. O conflito entre as gerações de lutadores está expresso quando os que se forjaram na militância na década de 1980, pós-ditadura, cresceram e se formaram achando que, por vivermos agora em uma democracia, não seria mais necessário se esconder para militar. Pelo contrário. Com as multidões voltando às praças, todos queriam mais era que suas organizações e demandas aparecessem. Mas o que vimos acontecer foi apenas a reforma da institucionalidade autoritária que nunca deixou de coibir movimentos sociais.
Especialmente nos últimos anos, a repressão tem sido maior. Ou pelo menos mais noticiada devido à internet? Isso já é um tema para outro debate. As novas gerações de militantes têm tido a preocupação com segurança do movimento, o que é bom, mas que gera alguns desconfortos, como o caso do professor, incompreensões e são passíveis de questionamentos. Um deles é: qual o limite entre a segurança e a expansão do movimento? Se queremos aglutinar mais pessoas para a luta, qual o papel desta preocupação excessiva com segurança neste contexto?
Se não quisermos usar o exemplo do professor mencionado acima, sob a suspeita de que esse pode ser reaça, podem ser dados três exemplos recentes. No início do ano, em outra ocupação de escola, desta vez estadual, no primeiro dia de ocupação de uma delas, militantes do MST que foram até lá prestar seu apoio e levar alimentos produzidos em assentamentos foram impedidos de entrarem na referida escola por “questões de segurança”. O MST. Com produtos oriundos de assentamentos de Reforma Agrária. O MST que, com todas as divergências que devem ser apontadas com o movimento, sabe muito bem o que é repressão e o que é preocupação séria com segurança.
Essa semana uma militante havia marcado uma reunião política de sua categoria em uma unidade da universidade que está ocupada. Achou que seria tranquilo, afinal, sua reunião era para tratar sobre a greve de uma categoria da própria universidade que, em tese, está junto com os ocupantes na mesma luta. Sua entrada foi permitida, mas sua identificação envolvia além da apresentação de documento, a indicação do nome de três pessoas que ela conhecia lá dentro. Tal identificação nunca fora solicitada nem mesmo pelos trabalhadores da segurança daquela unidade, reconhecidamente um local onde acontecem várias reuniões da esquerda na cidade. Vale lembrar que, por ser este um local utilizado livremente por diversas organizações para suas reuniões, não foram poucas as vezes em que a gestão daquela unidade tentou acabar com estes encontros, alegando “problemas administrativos” devido à quantidade de reuniões.
Essa restrição nunca foi obedecida pelos movimentos que continuaram a realizar suas atividades lá. Seria uma incongruência que agora, justamente quando a unidade é ocupada, essas reuniões comecem a ser restritas. O policiamento do movimento nunca conseguido pela gestão burocrática será, enfim, alcançada pela própria esquerda?
Um ex-professor de um instituto que está ocupado foi até o local a convite dos ocupantes para realizar uma atividade, no caso, uma aula. Entrou identificando-se, subiu para a sala, começou sua aula e em determinado momento desta saiu para beber água. No momento em que estava no bebedouro da instituição, durante o horário de sua atividade, previamente marcada e aprovada em assembleia, foi abordado por um grupo de ocupantes que não o conhecia, encararam-no com desconfiança e o constrangeram pedindo novamente sua identificação. Talvez tenha tido aí um problema de comunicação entre os que estavam na portaria e os que circulavam pelo prédio sem saber da atividade. Talvez. Mas não deixa de ser também um indício de que, sob a preocupação excessiva com segurança, pode-se afastar colaboradores ativos do movimento.
Há exemplos no que diz respeito também à segurança da informação em meios eletrônicos e que já foram relatados em tom de discordância e lamentação: uma jovem mãe, estudante universitária desistiu de acompanhar as reuniões de um determinado movimento porque toda vez que chegava nestas era impelida a desligar seu celular e retirar a bateria. Ela pedia que não fosse feito isso, porque tinha filho pequeno e que não podia ficar sem celular por tanto tempo, devido às preocupações da maternidade. Em nenhuma das vezes sua demanda foi compreendida e continuavam a ressaltar a importância do desligamento dos celulares para a segurança, que ela compreendia, mas que a colocava em uma situação de contradição entre a segurança do movimento e a segurança do próprio filho que estava com outra pessoa e que precisava estar em contato. O resultado disso foi o afastamento dessa mulher da militância sem que o movimento chegasse a um meio termo sobre a situação.
Outro movimento tinha como princípio a preocupação com segurança e por isso apenas utilizava para comunicação interna aplicativos criptografados para celular e servidores de e-mail alternativos. Isso funcionava bem enquanto todos que estavam na organização eram oriundos de setores médios da sociedade, com pleno acesso aos computadores pessoais e conhecimento mínimo de tecnologias. Quando o movimento começou a se expandir e ampliar sua base para um bairro periférico onde essas prerrogativas não eram cumpridas, acabou-se por restringir o acesso à informação do próprio movimento. Os novos militantes que acessavam a internet em computadores públicos ou não tinham conhecimento sobre criptografia e demais itens necessários para a compreensão dos meios seguros de comunicação ficavam sem receber a informação.
Ao final de tantos casos, fica a impressão de que, a continuar com esses meios, a esquerda que agora desponta nesses novos militantes ficará restrita a estes e falará para si. As aproximações se tornam difíceis e geram até desistência. O argumento da segurança do movimento precisa encontrar uma mediação com a expansão deste, caso contrário, se configurará como organizações fechadas, quase como grupos de amigos onde, para participar, deve ser reconhecido com carteirinha de “pessoa de confiança”. Aos que lutam tanto contra burocratização do movimento, estes casos não nos indicam um princípio de burocratização?
Estas reflexões pretendem abrir um diálogo franco entre as esquerdas, que precisam urgentemente recuperar sua tradição de críticas e autocríticas internas. E que esse debate seja feito de forma aberta, sem gerar rusgas, afinal, o que temos visto ultimamente é, além de todos os relatos acima, a completa exclusão e até escrachos de quem se arrisca a apresentar críticas a esses movimentos. Se a esquerda quer se reinventar, o caminho não é por aí.
* O EO publicou o texto para debate, mas não concorda com seu conteúdo.
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