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CULTURA

Rondesp-Tropa de Elite Bahia: criminalização da pobreza e culto ao genocídio na tela do cinema

Por: Luiz Gama, de Salvador, BA

A sala de cinema de um grande Shopping Center de Salvador estava praticamente vazia. Além de mim, somente 12 outras pessoas, todas negras e das quais apenas duas eram mulheres, aguardavam o início da exibição do filme. A partir dos sussurros das conversas que se pautavam pela expectativa do filme que estava prestes a começar, posso arriscar sem muita margem de erro uma conclusão de que eram policiais. Estavam ansiosos por ver na tela do cinema o filme que ‘falava de suas vidas’. De ouvidos atentos, pude ouvir um senhor que três fileiras atrás de mim falava à sua companheira: “Todo mundo da corporação deveria ver esse filme. Tem que valorizar nosso trabalho”.

Quando começou a sessão, veio a tela a seguinte mensagem: “Este filme é uma homenagem aos policiais militares da Bahia. Heróis na defesa da Segurança Pública”. É com essa mensagem que é dado ponto de partida para exibição do filme Rondesp, tropa de elite Bahia. A escolha do diretor, produtor e protagonista da película, Mário Santana, conhecido como Dragão Marinho, traduz exatamente a mensagem que o filme pretende passar. Ao contrário de sua obra inspiradora, o Tropa de Elite do diretor José Padilha, o filme baiano não se propõe a apresentar nenhuma reflexão crítica sobre a questão da Segurança Pública e o papel da polícia. Pelo contrário, se satisfaz com a apologia à violência policial, com a reafirmação do culto à militarização e à figura do policial como um herói que trava todos os dias uma guerra.

Rondesp, Tropa de Elite Bahia, foi produzido ao longo de dois anos pela produtora de Dragão Marinho, a Sima Hollywod filmes. A produtora declarou que toda produção do filme custou R$ 80 mil reais, dos quais R$ 70 mil foram em materiais cedidos pela Polícia Militar. A combinação entre os limites técnicos da produção com um elenco formado sem atores profissionais resultou numa obra bastante limitada. Dialógos ruins, textos artificiais, interpretações forçadas, em resumo, um filme esteticamente ruim e com altas doses de amadorismo. Porém, não é exatamente aí que mora o problema dessa obra. O que há de mais grave é a ideologia que ela se propõe a reproduzir. Vamos à história.

Logo no primeiro ato, somos lançados em meio a uma ação da guarnição da Rondesp (Rondas Especiais), liderada pelo Sargento Lopes, especializada em técnicas de infiltração, identificação e eliminação. Em seguida, é introduzido o grande antagonista da história, um traficante conhecido como Carioca, que veio para a Bahia após fugir em 2010 da invasão do Bope no Complexo do Alemão. Após chegar à Bahia, Carioca da início a uma luta por território. Somos levados a acompanhar cenas e mais cenas de execução de rivais que são ‘desovados’ pelos soldados de Carioca em Simões Filho. Essa é a única explicação dada pelo filme ao fato real de Simões Filho estar na lista das cidades mais violentas do país. Não demora muito até os caminhos de Carioca e do Sargento Lopes se cruzarem.

Numa operação que resulta num confronto, o Sargento, que é interpretado pelo diretor do filme Dragão Marinho, atinge e mata o irmão mais novo de Carioca. Esse evento desperta a ira do traficante e desemboca no grande marco dramático do filme, que é a vingança de Carioca, que executa, após uma emboscada, a família do Sargento. Daí para frente tem início uma verdadeira caçada, que serve para nos mostrar o significado da mensagem que vem no subtítulo do filme: “Bater de frente com a Rondesp é suicídio”. No roteiro da caçada, bairros que passam longe de fazer parte do circuito turístico de Salvador. A passagem do Sargento Lopes e de sua equipe por Pernambués, Retiro, Plataforma, Lobato, Cajazeiras, Sete Portas e Capelinha de São Caetano deixa sempre para trás um rastro de sangue. Todos esses são bairros considerados pela Secretaria de Segurança Pública como ‘bolsões de violência’, território no qual os ‘heróis’ travam guerra, que sempre termina em sangue e lágrimas derramadas por comunidades criminalizadas pela pobreza e pela cor da pele das pessoas que nelas vivem.

No caso do filme, cada morte fruto da ação policial é cuidadosamente justificada pelo diretor. Afinal, heróis não podem matar sem motivo, ou por mera vingança. A Rondesp da tela do cinema não mata, é ‘forçada’ a matar por conta da ação dos seus inimigos de guerra. Todos os negros assassinados no filme são alvejados após resistirem, ou melhor, após adotarem uma conduta que oferece risco ao policial, o agente da lei. O objetivo aqui é passar uma mensagem de apoio ao famigerado auto de resistência, um estatuto do tempo da ditadura militar que é recorrentemente utilizado pela polícia para justificar ações que terminam em mortes.

O recurso a esse tipo de expediente se tornou prática comum no cotidiano da ação policial. Não à toa, diversos movimentos, em especial o movimento negro, tem como pauta a abolição desse tipo de registro.Todos os anos, centenas de mortes deixam de ser investigadas, vidas que valem tão pouco que, para a justiça, são suficientes as histórias, quase sempre mal contadas, de ‘troca de tiros’, que resultam em perfurações pelas costas, nas mãos, atrás da cabeça. Como não recordar da chacina do Cabula? Na ocasião, a morte dos 12 jovens foi justificada como resultado de uma intensa troca de tiros. A ‘verdade’ da versão oficial se desmanchou no ar quando a perícia comprovou o que todos já sabiam. Os jovens da Vila Moisés foram mortos em condições que configuram crime de execução. Não teve confronto, houve extermínio.

Nem é preciso fazer mistério, a caçada só termina quando, finalmente, Carioca é morto pelo Sargento Lopes na derradeira cena do filme. Ao longo da narrativa, um personagem que vai ganhando destaque é Deraldo Damasceno. O ex-deputado e delegado da Polícia Civil interpreta a si mesmo e é responsável pelos discursos mais incisivos na defesa da visão de Segurança Pública promovida pelo filme. Na opinião do delegado, a solução para a criminalidade é o investimento no aparato policial e uma ação integrada entre as polícias Civil e Militar. Nada de novo. É com essa lógica que os governos, inclusive os dos petistas Jaques Wagner e Rui Costa, têm trabalhado ao longo dos anos. O volume enorme de dinheiro público investido em compra de armas, viaturas e construção de unidades prisionais é inversamente proporcional ao tamanho da tragédia das estatísticas. Entre 2000 e 2010, o número de mortes por arma de fogo cresceu 216% somente na Bahia.

É preciso falar também do papel que o filme atribui às mulheres. Sabemos que, nas comunidades, as mulheres negras são muitas vezes a linha de frente na resistência à violência policial. Mulheres que se organizam para evitar prisões arbitrárias, que com as denúncias desarticulam ações de grupos de extermínio, que agem nos bairros pobres e, por isso, acabam por se tornar alvo de todo tipo de ameaças. Porém, no filme Rondesp, a Tropa de elite Bahia não acontece dessa forma. Na visão do diretor, as mulheres só podem cumprir dois papéis, o do conformismo perante a violência, ou o da cumplicidade com o crime.

Em uma das cenas, uma senhora tenta evitar que uma jovem seja detida e, após ter o pedido negado pelo Sargento, passa imediatamente a repreender a jovem, culpando-a por ter escolhido andar ao lado de ‘más companhias’. Numa outra cena, uma mãe que chora debruçada sobre o corpo morto do filho, lamenta por todo o sacrifício para criá-lo e termina por culpá-lo pela própria morte, já que ele, segundo é considerado, escolheu andar no ‘caminho errado’. Em uma outra sequência, vemos uma mulher que tenta subornar, em vão, a guarnição da Rondesp para que o companheiro fosse solto do camburão. A atitude tem como resposta uma lição de moral dada pelo Sargento Lopes sobre a incorruptibilidade da PM baiana. Após um discurso sobre a dedicação moral dos policiais e a vocação natural para o combate, o Sargento Lopes dá voz de prisão à mulher por tentativa de suborno.

A narrativa do filme, mal produzida e com sérios limites artísticos, seria incompleta caso ficasse restrita a uma sucessão pura e simples de ações da força policial. Rondesp é um filme preenchido por um discurso que se pauta pela exaltação da polícia e pela bestialização do outro. Traficantes que de tão perversos quase não são humanos, e se não são humanos, suas vidas não têm valor. Logo, ceifá-las é, no máximo, um dano colateral no exercício da justiça e da defesa dos considerados ‘cidadãos de bem’.

Por isso, no roteiro não há espaço para vozes dissonantes. Para além do discurso policial, só existe o silêncio. O diretor pratica no filme aquilo que entre os historiadores se convencionou chamar de história única. Comece a debater a questão da Segurança Pública a partir da imagem do jovem negro com um fuzil, que é figura tarimbada nos programas policialescos que têm aos montes na televisão e você terá uma história única sobre o problema da violência. Mas, experimente começar a se perguntar de onde vem o fuzil. Se, nas favelas, não existem fábricas de armamentos, de onde vêm a cocaína e a maconha? Se na favela não se planta, para onde vai todo o lucro do narcotráfico? Se os conhecidos ‘chefes da boca’ não vivem em mansões, não possuem helicópteros, ou dinheiro guardado em contas secretas na Suíça? É ao fazer a si mesmo essas perguntas e colocá-las em debate que você verá a história única contada pelas Secretarias de Segurança Pública e abraçada pela direção do filme Rondesp se dissipar feito fumaça.

Genocídio tamanho G, de Governo do Estado
A experiência dos 80 minutos na sala de cinema assistindo ao filme para poder escrever essa resenha, só não foi mais desagradável do que a certeza de que aquilo que assisti na telona não acabou na hora que subiram os créditos. Os dados da Anistia Internacional, do mapa da violência e de diversos organismos que defendem os direitos humanos dão conta de uma verdadeira pandemia de violência. A escalada de violência, ao contrário do que pensam governos, comandos militares e a direção do filme Rondesp, não acontece apesar da ação policial, mas tem, na própria ação militarizada e violenta da polícia, um dos vetores fundamentais.

Em 2014, segundo o Mapa da Violência divulgado esse ano, o Brasil contabilizou 57 mil homicídios. Isso significa que, em média, seis pessoas morrem assassinadas a cada hora em todo o país. Na lista das dez cidades com maiores índices de morte no Brasil figuram quatro cidades baianas, todas elas da região metropolitana de Salvador. Mata São João vem em primeiro lugar, com 102 mortes para cada 100 mil habitantes. Simões Filho vem em oitavo lugar, com 91,4 mortes para cada 100 mil, seguida de Pojuca, em nono, com 87,3 e Lauro de Freitas em décimo lugar, com 85,9.

Outro levantamento fruto de uma parceria entre UNICEF, Observatório das favelas e Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República constatou que a Bahia é o segundo Estado mais letal para os jovens no Brasil, atrás apenas de Alagoas. Dentre as 20 cidades brasileiras mais letais para os jovens estão Itabuna, Camaçari, Vitória da Conquista e Feira de Santana, 4 das mais importantes cidades do interior baiano. Salvador também esta nessa lista com um IHA (Indice de homicídio na adolescência) de 8,32 jovens para cada grupo de 100 mil.

Assim como no filme, as vítimas da violência têm raça e classe. Em 2002, a Bahia teve um número de 924 assassinatos de jovens negros. Dez anos depois, em 2012, esse número saltou exponencialmente para 3.252 assassinatos, configurando um aumento assustador de 251%. São números de guerra, uma guerra que põe um alvo nas costas de todo jovem negro que é, na visão da polícia, presumivelmente culpado. Culpado pela raça, culpado por ser pobre. Muito embora no código penal brasileiro não haja pena de morte, tal sentença é aplicada todos os dias pelas polícias militar e civil, na periferia das grandes cidades brasileiras. Na prática, existe um verdadeiro tribunal de rua, através do qual policiais agem arbitrariamente como promotores, juízes e carrascos.

Esse ano, após muita luta e pressão, através do Diário Oficial o governo aboliu dos boletins de ocorrência, o uso do auto de resistência e de expressões como “resistência seguida de morte”. Tal medida só pode ser entendida dentro de um contexto de pressão e crescimento da luta negra contra a violência policial. Essa luta tem contribuído para pautar com mais ênfase uma posição crítica à guerra às drogas, que serve de justificativa para o genocídio da juventude negra, além da pressão para que a sociedade discuta a questão da desmilitarização da polícia, reivindicada até mesmo por organismos internacionais como a ONU, como uma medida fundamental para encarar o problema da violência.

O filme Rondesp – Tropa de Elite Bahia é incapaz de promover qualquer reflexão crítica, muito menos uma saída pela positiva para a questão da Segurança Pública. Pelo contrário, veio para reafirmar o ‘status quo’, para cobrar mais armas e mais investimento para a polícia travar sua guerra. Veio também como um culto aos seus heróis, homens negros de farda que também morrem e têm as vidas tratadas como algo tão descartável quanto a vida dos jovens que agrupamentos como a Rondesp tem como função matar. Embora debaixo da farda exista uma pele negra, os soldados de hoje assemelham-se aos capitães do mato do passado. Por isso, em honra à resistência dos nossos antepassados, jamais os consideraremos heróis. Nossos heróis não usam coturnos e distintivos, nossos heróis são os milhões de Amarildos e Claúdias espalhados pelas periferias do Brasil.