Elber Almeida |
Em seu livro, “Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos Malês 1835”, o historiador João José Reis apresenta detalhes da revolta liderada por africanos que tomou as ruas de Salvador no dia 25 de janeiro de 1835. A revolta entrou para a história da resistência do povo Brasileiro, negro, que escreveu com sangue estas páginas.
Uma cidade com maioria absoluta negra (71,2%) e grande parte africana (33,6%), sendo parte de um recôncavo baiano circundado por quilombos e terreiros, permanentes e intermitentes. Uma cidade em que a rivalidade entre brasileiros e portugueses gerou ondas de linchamentos, os “mata-marotos”. Uma cidade com revoltas de liberais federalistas, aquartelamentos e levantes de soldados da guarda nacional e do exército, como os famosos levantes de 1832-33 e a Sabinada de 1937. Essa era a Salvador da primeira metade do século XIX.
A população negra estava dividida em africanos e brasileiros, escravizados e libertos. Dentre os africanos haviam dezenas de nações. Dentre elas, uma que exerceu protagonismo na revolta Malê: os Iorubás. Além desta havia os Haussás, Jejes e Tapas como principais grupos vindos da Costa Leste. Outro grande grupo era o dos Bantos, vindo da região mais ao sul da África, onde hoje existem países como Angola e Congo.
As classes sociais estavam em uma complexa e intricada rede da sociedade imperial brasileira. Talvez seja possível dizer que havia uma aristocracia constituída pelos senhores de engenho e também por comerciantes e mercadores brasileiros e portugueses, além de uma nascente burguesia urbana escravocrata brasileira, que exerceu influência nas revoltas federalistas. Um incipiente proletariado urbano, empregados do comércio e das forças armadas, e lumpemproletariado que eram constituídos por brancos e principalmente negros livres. Além, é claro, da numerosa classe dos trabalhadores escravizados, constituídos por negros africanos e brasileiros, quase metade da população de Salvador segundo estimativa da época. Como as classes sociais são fenômenos complexos e suas definições são controversas, esta análise é provisória.
A sociedade baiana, como um todo, era quase que completamente dividida entre donos e não donos de escravos. Esse foi o elemento que levou João José Reis a concluir que um dos motivos que levou as derrotadas africanas e de escravizados no Brasil foi o consenso social em torno do escravismo. Segundo este mesmo autor, é possível que 40% de todo o povo livre na época da rebelião de salvador fosse proprietário de escravos.
Quem eram os Malês?
A Revolta dos Malês foi protagonizada por um certo setor da população negra que residia na Bahia da época: os negros Africanos, em especial os Malês que correspondiam aos africanos islamizados. Os Malês exerciam influência em boa parte da população africana e negra da Bahia, não apenas entre os praticantes do Islã. Muito de sua cultura está até hoje presente na população do estado, como é o caso do uso de abadás.
Os negros de Salvador tinham uma vida não tão confinada quanto a dos negros do interior, ou por alguns serem libertos, ou por serem os chamados “escravos de ganho” que passavam boa parte do dia longe de seus senhores. Na obra aqui citada é possível observar que este fato deu a possibilidade de os negros, até mesmo os escravizados, conseguirem organizar sua vida com uma muito pequena autonomia frente o branco escravista, pequena mas suficiente para permitir encontros festivos e religiosos – Malês ou do Candomblé – que serviram como formas de organização, e mobilização. Alguns negros chegavam a ter pequenas moradias, ou quartos alugados, onde guardavam pertences pessoais, artefatos culturais, e até mesmo armas brancas, utilizadas pelos africanos na Revolta dos Malês.
Os Malês, especialmente seus mestres, os Alufás, utilizam destas possibilidades para organizarem estudos do Alcorão e encontros religiosos de outras espécies. Nestas ocasiões, muitos africanos eram alfabetizados por Alufás que já vieram com este saber da África. Autoridades baianas não gostariam de admitir, mas a realidade é que esta população africana eram em média mais alfabetizada do que a brasileira livre. Também nestes momentos eram organizadas as conspirações. Era numa ceia em que se encontraram os conspiradores na madrugada de 1835.
A maioria esmagadora dos Malês era das nações da Costa Leste, dentre elas os Iorubás, Haussás, Jejes e Tapas. Tais nações muitas vezes eram rivais na África, mas no processo de separação e destruição de suas identidades quando eram escravizados, os africanos terminaram por ter como fonte de unidade a identidade africana. Além disso, é de ressaltar-se que essas eram nações guerreiras, que já conheciam a guerra a escravização de povos inimigos, ou de si mesmas, antes de terem membros comercializados pelo Atlântico.
Os principais Alufás eram escravizados, alguns livres. Este fato devia-se também à característica do Islã, de poder adaptar-se à lideranças não aristocráticas. Havia uma liderança de destaque da revolta, Luíza Mahin [1], que não é citada como existente no livro de João José Reis, mas exerceu um importante protagonismo na revolta, sendo organizadora e até hoje referenciada. Era quituteira, e em seu trabalho distribuía mensagens em árabe.
Além dos Malês, vários africanos não islamizados participaram da revolta. Estes continuavam exercendo as religiões de seus povos, mas colocavam-se ao lado dos Malês na medida em que a identidade africana e, principalmente, o fato de pertencerem às mesmas classes sociais uniam-nos.
A insurreição
A madrugada de 25 de janeiro de 1835 foi marcada pela tentativa das forças repressivas da província da Bahia de prenderem os líderes da conspiração e impedir seu acontecimento. No momento em que invadiram o sobrado em que os preparativos finais eram feitos, foram surpreendidos por um golpe dos Malês que derrotaram o grupo de soldados e juízes de paz saindo pela cidade de Salvador enfrentando a guarda nacional, a polícia, o exército e incitando outros africanos à revolta.
A revolta foi precipitada pelo fato de ter sido denunciada. A tática dos Malês parecia ser a de ir pelas ruas da cidade incitando mais africanos e chegar aos engenhos do restante do Recôncavo Baiano, para assim chamar mais africanos para a insurreição e tomar o poder, instaurando um governo Malê. É difícil concluir o que seria tal governo, mas há indícios suficientes para imaginar que na imaginação de seus líderes seria algum tipo de Califado, com direção africana e que não necessariamente aboliria a escravidão. Mas como a insurreição falhou o governo não chegou a estar perto de ser constituído, haveria aqui uma boa dose de especulação.
As tropas da guarda nacional e do exército, munidas de armas de fogo e prevenidas pelo alarme gerado pela descoberta prévia da conspiração, derrotaram a insurreição em questão de horas, e os africanos não puderem reagir por muito tempo munidos com suas armas brancas.
Muitos foram presos e julgados. Alguns fuzilados em praça pública. Não foram enforcados, como sugestão inicial das autoridades, provavelmente por não haver quem quisesse ser carrasco de figuras de tão poderoso levante, o primeiro que iniciou na própria cidade de Salvador. Outra grande parte foi deportada para a África, como recomendação do governo central. Segundo João José Reis, a repressão a esta revolta encerrou um ciclo de revoltas africanas na Bahia.
Essa revolta que durou menos de um dia entrou na história e até hoje é citada. Não à toa, afinal mobilizou um número muito representativo de negros em um curtíssimo espaço de tempo[2] além de ter sido a primeira que teve como epicentro a cidade de Salvador, capital da província. Outro fator determinante foi o caráter conspiratório, não espontâneo, do levante, com planos comprovados de tomada do poder e criação de um novo estado independente do Império do Brasil.
Uma revolta de raça e classe
A Revolta dos Malês se deu num período de crescente penúria econômica dos trabalhadores escravizados e assalariados da Bahia. Após a guerra da independência, o Brasil passou por dificuldades na balança comercial, ao ter de concorrer no comércio internacional dom o açúcar produzido nas antilhas, o que afetou especialmente a regional que tradicionalmente produzia cana-de-açúcar no país: o nordeste. Era o início do fim de um ciclo econômico. Além disso, em 1831 havia iniciado a proibição do tráfico negreiro promovida pela Inglaterra, o que elevou o preço da mão-de-obra escrava e possivelmente aumentou o nível de exploração nos engenhos e cidades.
Era um momento de crescente revolta do povo pobre, seja escravizado ou “livre”, com a quilombagem enfrentando a repressão na zona rural do recôncavo e ocorrência de manifestações populares espontâneas com certa frequência nas cidades, além de revoltas de soldados do exército, polícia e da guarda nacional, que em sua imensa maioria eram negros. Também estes últimos se revoltavam.
Nesse contexto, ser negro era sinônimo de ser parte das classes sociais exploradas e pobres: escravos ou assalariados urbanos. Não havia uma burguesia negra em formação, o que reflete-se até os dias atuais em que não produziu-se um setor negro na burguesia brasileira. Mesmo assim, a unidade dos explorados na revolta foi dificultada por fatores como a existência de divisões entre as nações e povos, promovidas pelas classes exploradoras que sempre temeram a unidade dos negros no Brasil, o que significaria em grande medida a unidade dos explorados. Os grupos Bantos, por exemplo, praticamente não participaram do levante, embora tenham sido protagonistas de outras resistências históricas, como a do Quilombo dos Palmares. Os negros nascidos no Brasil, também não participam na Revolta dos Malês.
Com uma clara desvantagem numérica proveniente destas divisões, um armamento bem inferior e condições organizativas precárias, os Malês foram derrotados. O temor da haitinização do Brasil carregado pelas elites conseguiu mobilizar boa parte da sociedade contra o levante. Se apoiando no racismo, a aristocracia do Império e a burguesia nascente dividiram os explorados, derrotando-os. Após o ocorrido, foram inúmeros casos de linchamentos de negros em Salvador, e nestes não havia distinções entre africanos e brasileiros, Iorubás e Bantos, Malês ou praticantes do candomblé.
Os escravistas aprenderam a lição. Foi implantado em Salvador um mecanismo de controle do trabalho, com capatazes e inspetores que dividiam-se na tarefa de inspecionar o trabalho dos “escravos de ganho” e delatar aqueles que faltassem ao trabalho, ou realizassem atividades suspeitas. O que transformou, nas palavras de João José Reis, Salvador num imenso engenho urbano.
Anos antes da revolta dos Malês, ocorreu a Revolução Haitiana de 1804, liderada por negros e que proclamou uma república no país[3]. Aquela revolução conseguiu instaurar uma unidade dos explorados do país, quase que correspondendo aos negros, e pôde ser vitoriosa por diversos fatores. A burguesia francesa que havia acabado de fazer sua revolução e destronar o imperador não conseguiu enxergar a ameaça que representaria a formação de uma burguesia negra ascendente – designada como “mulata”, termo pejorativo utilizado para dividir a população negra e referente a um tom de pele mais claro resultante das relações sexuais, muitas vezes estupros, entre negros e brancos – que acabou, após aliar-se com a burguesia branca em muitas regiões e períodos da revolução, unindo-se ao restante da população negra numa revolução anti-colonial contra a República Francesa. Ao contrário, as classes dominantes brasileiras muito souberam administrar o racismo, e utilizaram-no de fato para consolidar seu projeto de estado-nação unificado que esmagou tantas revoltas dos oprimidos e explorados.
E as ceias?
Submetidos a cotidianos de trabalhos exaustivos, os negros escravizados não tinham facilidades para descansarem, sociabilizarem, o que dizer então de organizar uma insurreição! Muito disto se deu através dos banquetes ocorridos em aposentos de Malês libertos, como já citado. Nestas ocasiões, provavelmente misturava-se a alegria do encontro entre oprimidos que pouco desfrutavam da companhia dos seus, com a própria organização de sua libertação.
Este aspecto vale ser melhor trabalhado. Vemos algo parecido com relação ao papel dos terreiros de Umbanda, Candomblé, rodas de capoeira, jongo etc, na organização de negros há séculos. Vemos isso também no atual movimento Hip-Hop e nas batalhas de rap: participantes em boa parte moradores da periferia, jovens e muitos negros reunindo-se, no pouco tempo que possuem neste cotidiano de duplas e triplas jornadas de trabalho e estudo, nas ruas para manifestarem suas insatisfações enquanto também encontrarem amigos.
Não tão ascéticas e assépticas como os modelos de assembleias que estão idealizados nas mentes de muitos revolucionários, estes organismos podem gestar desde o que é chamado de contra-cultura até as revoluções. Não só moldes como os dos soviets europeus e os cordões industriais latino-americanos são formas de organização possíveis. O revolucionário peruano Hugo Blanco chegou a considerar a célula do comunismo primitivo americano, “Ayllu”, como uma possível forma básica do “governo-operário-camponês”[4]. As Ayllu eram muito diferentes dos banquetes, mas também dos soviets. O apego às formas é típico da ciência política burguesa, uma perspectiva materialista-histórica, transformadora, precisa encontrar os germes progressivos nos mais variados fenômenos.
Referências
REIS, J. J.. Rebelião escrava no Brasil: a historia do levante dos malês (1835). 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
Notas
[1] Ver: PALMEIRA, F. S. Reflexões sobre identidade étnica nos discursos da literatura afro-brasileira. Contraponto. Disponível em
<http://200.229.32.55/index.php/contraponto/article/view/4603/pdf> (Acesso em: 07/01/2016).
[2] J.J. Reis estimou em 65500 a população de Salvador no ano da Revolta dos Malês, deste 33,6% africana, sendo algo em torno de 600 o número possível de insurretos (ao menos identificados pelo Estado, dentre mortos e punidos). Nestas proporções, isso representaria uma insurreição com mais de 24500 pessoas nessa cidade.
[3] A esse respeito é possível consultar o artigo de Filipe Augusto, disponível em: http://blog.esquerdaonline.com/?p=6305.
[4] Ver a obra “Terra ou Morte”, de Hugo Blanco.1979, ed. Versus.
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