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MOVIMENTO

Empreendedorismo: apontamentos para uma importante discussão entre a esquerda

Por: Thomas Vidal, do Rio de Janeiro, RJ e Caio Bender, de Blumenau, SC

Numa simples ida a qualquer livraria é possível achar uma sessão cheia de livros sobre empreendedorismo, com títulos e conteúdo que mais parecem de auto-ajuda. Isso é um reflexo da onda de empreendedorismo de palco que invadiu o Brasil nos últimos anos. Onde se encontravam livros de Administração de empresas com várias fórmulas e teorias, hoje se encontram finos livros. Afinal, pessoas de sucesso não possuem muito tempo para ler, certo? São livros com frases de incentivo, ou genéricas. Troca-se o ensino de fluxo de caixa, o entendimento de organizações, o plano de marketing, por um simples e vazio “acredite em você mesmo, você é especial e sua ideia é única no mundo, por isso terá sucesso”. Por que?

Segundo o dicionário, encontrado no Google, empreendedorismo significa “Empreender, resolver um problema, ou situação complicada. É um termo muito usado no âmbito empresarial e muitas vezes está relacionado com a criação de empresas ou produtos novos. Empreender é também agregar valor, saber identificar oportunidades e transformá-las em um negócio lucrativo”. Empreendedor, então, na teoria, é alguém que começa um novo negócio, transforma sua ideia em um meio de ganhar dinheiro e adquirir sustento.

A busca por independência dos horários ruins, chefes abusivos, salários muito baixos e falta de realização profissional e até mesmo o desemprego levam, muitas vezes, as pessoas a buscarem os próprios meios de sustento, sendo os próprios chefes. Abrir o próprio negócio, seja ele pequeno ou médio, não é nenhuma novidade, então por que o conceito de empreendedorismo tem chamado tanta atenção, gerando novas figuras que se colocam como as “caras do sucesso”? Como é possível que o estudo sério de administração de organizações e técnicas de mercado está sendo substituído por um empreendedorismo de palco, mais preocupado em performances dinâmicas do que com conteúdo?

Importante frisar que esse texto tem o objetivo de reafirmar a posição dos autores de que não há saída eficaz contra as mazelas da sociedade por dentro do capitalismo, apenas uma revolução socialista será capaz disso e principalmente acumular para uma crítica pela esquerda ao empreendedorismo, tentando precisar algumas caracterizações para saber enfrentá-lo quanto uma ideologia contrarrevolucionária. Não é um texto que visa dar respostas definitivas de caracterizações, ou de solução dos problemas, mas de acumular para esse debate que é importante para a disputa de sociedade.

Empreendedorismo de palco

Basicamente, o empreendedor de palco é um sujeito que se diz empreendedor, com um discurso quase nada técnico e muito mais de autoajuda, cuja proposta é te ensinar a empreender. É basicamente um cara animado, proativo, que te cobra uma grana absurda para dizer “Não desista nunca dos seus sonhos, siga em frente, seja ousado, criativo, cativante, trabalhe duro e você terá sucesso”. O que esses ‘profetas do empreendedorismo’ fazem é dar uma resposta mágica e fácil para um problema social, transformando-o em uma questão puramente individual. Mudar de vida e enriquecer nesse sistema só precisa de seu próprio esforço.

Para comprovar tal situação e tentar criar uma lógica, transforma as raras exceções de ‘sucesso empreendedor’ de pessoas pobres e oprimidas em uma lei, a lei do “só depende de você”. O que o empreendedor de palco ignora é que o empreendedor de verdade precisará se debruçar sobre seu negócio quase 24h por dia. Que ele provavelmente não conseguirá conciliar com outro emprego e outra fonte de renda, que a necessidade de qualificação é constante, que os custos são altos, que não basta trabalhar duro, tem que ter uma boa rede de contatos, capital e muita sorte também.

Após esse parágrafo, algumas pessoas poderão argumentar com um exemplo “conhecido” de algum trabalhador pobre que com pouco investimento e muita dedicação hoje é dono de seu próprio negócio. Esses casos são exceções à regra. Algumas pessoas realmente conseguem superar as barreiras e vencer. Mas, são quantos casos em milhares? Minha vizinha fuma cigarro desde os seus 12 anos de idade, hoje tem quase 70 e nunca teve câncer, logo, cigarro não faz mal, não é? É a mesma ideia, uma exceção tentando ditar a regra.

Outra questão ignorada é a correlação de forças entre as multinacionais atuantes no mercado e os pequenos negócios de empreendedores iniciantes. As grandes corporações controlam quase a totalidade do mercado, deixam apenas uma margem estratégica para evitar problemas de monopólio, criando assim uma falsa sensação de liberdade do mercado e focando suas atenções nos ramos mais lucrativos. As pequenas empresas brigariam por essa fatia minúscula de mercado, qualquer uma que ultrapasse essa barreira será esmagada, ou engolida pela concorrente gigante. Aqueles com sorte e posicionados em um ramo possível, como o de aplicativos para celular, teriam seus empreendimentos comprados pelas grandes empresas.

Entretanto, o empreendedorismo de palco possui uma qualidade que é uma das maiores responsáveis por seu sucesso: a auto promoção. São sempre figuras jovens, sorridentes, com histórias de sucesso através de seu brilhantismo individual. Seu discurso é uma apologia à falsa meritocracia da sociedade. Seu marketing é tão eficiente que eles acreditam neles mesmos como exemplos de sucesso por puro mérito próprio.

Quem é o jovem empreendedor?

Vemos a fomentação, principalmente em universidades, de que os jovens devem ser donos de seus próprios negócios para serem pessoas de sucesso, principalmente em cursos de administração e engenharia. Vende-se a ideia de que os empreendedores são os pioneiros dos avanços econômicos, científicos e sociais da sociedade, como desbravadores modernos, mas a realidade é distante do discurso teórico.

Temos uma juventude muito frustrada com a realidade em que vivemos, ao mesmo tempo em que é extremamente incentivada a empreender, mas sem os recursos necessários. Em geral, a população brasileira é pobre. Empreender é um risco muito grande para a maioria das pessoas pelo simples fato de “se der errado, já era”.

O jovem de classe média é o único que tem a chance de experimentar e errar sem medo de dar errado, pois sabe que a família pode lhe dar todo o apoio necessário para uma eventual queda, ou sucesso. É ele que pode colocar o discurso do empreendedor de palco em prática e ver que dá errado, mas aprender com os erros e seguir em frente. O privilégio de errar não pertence ao pobre.

Os grandes empreendedores de palco são os mesmos que dizem para trabalhar com o que gosta, para ir atrás de seus sonhos. Para quem eles estão dizendo isso? Certamente não é para uma mãe de três filhos que precisa alimentá-los. Certamente não é para uma LGBT da periferia que possui como alternativa quase sempre o serviço de telemarketing, atendimento em fast foods, ou até mesmo a prostituição. Certamente não é para um jovem negro pobre, pois a preocupação dele está em ser parado pela polícia simplesmente por ser negro.

Não, o público alvo onde essas ideias do empreendedorismo de palco estão encontrando eco teórico é no jovem branco de classe média, aquele que está na faculdade, que em muitos casos faz o curso de Engenharia, Economia ou Administração e que deveria ser aquele a estar estudando e produzindo teorias sérias sobre administração de organizações.

Isto não significa que o empreendedorismo, e conseqüentemente a meritocracia, não tenha inserção na classe trabalhadora e nem nos mais pobres. Pelo contrário, essa ideologia muitas vezes pode parecer a única saída para a situação dos mais pobres aos seus olhos. A mídia e as instituições como escola e Igreja vivem bombardeando os trabalhadores com a ideologia meritocrática.

Com isso, podemos avaliar que essa cultura empreendedora, que é transmitida como uma ‘religião’, é ilusória e em nada agrega às pessoas. Ao invés de promover mais igualdade, é criada uma geração frustrada e ainda mais alienada de como funcionam os meios de produção e o impacto disso na sociedade.

Será o empreendedorismo a saída para a desigualdade no capitalismo?

Mas, será que o empreendedorismo pode ser uma alternativa ao capitalismo? E se as milhares de pequenas empresas tomassem o lugar das grandes corporações, a renda estaria mais distribuída e mais gente teria dinheiro, não é?

Não, não é.

Nós vivemos em um planeta com mais de sete bilhões de pessoas, precisamos de grande capacidade de produção para produzir bens para todos. As pequenas empresas não possuem capacidade produtiva para atender a grande massa, no máximo conseguem atender suas comunidades. Praticamente a totalidade dos novos empreendimentos precisa focar sua estratégia em diferenciação de produto, deixando a produção em larga escala e diferenciação no preço, produção de grande quantidade por um custo menor, para as empresas grandes e multinacionais.

Mesmo que as grandes empresas acabem abraçando essas pequenas empresas e trabalhando em conjunto, podendo também comprá-las, quem estará ditando as regras? As grandes corporações, não as nanicas. Assim, a troca de poder econômico na sociedade não se dará através do empreendedorismo. Não teremos uma nova classe burguesa para substituir a antiga. A burguesia, como classe, se constitui por famílias donas dos meios de produção há muitas gerações.

Nem haverá uma substituição da velha burguesia por uma nova burguesia e nem haverá um novo proletariado capaz de herdar o poder econômico através do empreendedorismo. Isso se dá pelo simples motivo da meritocracia na sociedade capitalista ser falsa. Apenas raríssimas exceções de sucesso de empreendedores das classes pobres ocorrerão, e mesmo que isso ocorra, esta pessoa não será mais um proletário pelo seu posicionamento sócio-econômico na sociedade. Enquanto classe, o proletariado não poderá ascender dentro do capitalismo. Não será o empreendedorismo que dará poder à classe trabalhadora, ele apenas pode dar raríssimas saídas individuais.

Um exemplo prático recente no Rio de Janeiro

Os empreendedores de palco falam para um público cada vez maior. São milhares de pessoas que compram seus livros, ouvem suas palestras, leem seus textos. O que aconteceria se toda essa gente tentasse de fato empreender e colocar em ação a premissa do empreendedorismo?

É possível pensarmos em um exemplo prático real que nos mostra o que aconteceria em situações de múltiplos empreendedores atuando no mesmo ramo. Nos últimos dois anos, o conceito de Food Truck entrou com força no Brasil, em especial nas capitais. No início, poucas pessoas possuíam um veículo capaz de ser um Food Truck, e assim o Food Truck era algo quase exclusivo de poucas pessoas.

Inclusive, os primeiros Food Trucks a chegarem nas principais capitais tinham como donos chefes de cozinha, donos de restaurantes. Eles possuíam, além do capital financeiro para investir sem correr riscos de falência, um abundante capital cultural em forma de conhecimento de gastronomia, do mercado, contato de fornecedores, contatos para promover eventos fomentando suas vendas.

Essa exclusividade e notoriedade dos donos fizeram com que a estratégia “gourmet” dos Food Trucks fosse possível. Assim, os Food Trucks focam na diferenciação dos produtos, não sendo apenas como os já existentes ‘Trailers’ que cobravam um preço geralmente barato e serviam uma comida parecida com a dos outros.

Os Food Trucks, então, se diversificaram em vários tipos de alimentos, não só de hambúrgueres como no início. Existem agora Food Trucks de comida japonesa, de churros, salgados, pizzas, massas, risotos, cervejas, entre outros. Também se deu um aumento da quantidade de Food Trucks existentes. O aumento da quantidade e o aumento de variedade são relacionados entre si. Hoje em dia os Food Trucks já são empreendimentos mais popularizados, o preço para adquirir um veículo diminuiu, o que abriu possibilidades para mais gente.

Quem possuía mais capital pôde investir no primeiro momento, quem possuía menos pôde investir apenas depois, e quem não possui condições fica à margem desse processo. Isso é uma questão básica, a simples ideia de uma novidade não se materializa sem capital para investimento em tal ideia. Quem possui o capital, ou a capacidade de obtê-lo através de empréstimo, em menos tempo, possui uma vantagem impossível de se ignorar.

Neste caso prático, essa vantagem fez toda a diferença. Os primeiros a abrirem seus Food Trucks tiveram vantagem e conseguiram obter altas taxas de retorno de capital. Quem investiu mais tarde encontrou um mercado saturado, a oferta de Food Trucks aumentou exponencialmente, enquanto a demanda por esse mercado diminuiu, pois não se trata mais de uma novidade. Os preços dos Food Trucks tiveram que se adequar à realidade, muitos estão com estilo muito menos ‘gourmet’ do que os criados inicialmente.

O resultado é que muitos dos que investiram em Food Truck no último ano estão com problemas para ter o retorno do investimento inicial de capital. A tendência é que isso se aprofunde e muitos donos de Food Trucks abandonem seus empreendimentos com dívidas. Quem lucrou nisso tudo? Provavelmente alguns poucos donos de Food Trucks conseguiram um grande retorno de capital percentual. Entretanto, quem de fato não obteve prejuízo em toda essa história foram as empresas que produziram e criaram os veículos usados por Food Trucks, essas grandes empresas nunca perdem, o sistema as protege.

Assim, podemos ver que a vontade de empreender em si não é algo ruim, uma pessoa pode empreender e tentar “virar patrão”, fugir da exploração, a questão é que além de estatisticamente a probabilidade de sucesso ser bem pequena, pois não basta apenas “ser ousado, criativo, cativante e trabalhar duro”, como dizem os “profetas” do empreendedorismo de palco, o mercado funciona de tal modo que dá essa possibilidade a pouquíssima gente.

O fenômeno empreendedorismo só poderá ser plenamente executado pelas classes médias, mas principalmente as altas, que possuem todo o conforto e segurança da renda de suas famílias. O empreendedorismo é um discurso cheio da ideologia meritocrática. Ignora a herança que possuem os ricos, propositalmente ignora as opressões que existem, como a lgbtfobia, o racismo e o machismo, ignora as classes sociais e a exploração. Cria uma ideia falsa, pois no capitalismo é impossível existir essa igualdade, pois os indivíduos são tratados e já partem de pontos desiguais.

O empreendedorismo é apenas uma saída do sistema por dentro do sistema, ele não tem a menor chance de mudar a forma como nos relacionamos com os meios de produção e, consequentemente, não nos libertará da desigualdade do capitalismo.

Foto: Ascom Parnaíba

Marcado como:
Capitalismo