Por: Glailson Santos, de Belém, PA
Outubro chegou. No ano em que Belém comemora 400 anos de existência, respira-se a chegada de uma de minhas épocas favoritas, outubro, o mês rubro. É impossível ser paraense e ter crescido nas calorosas cercanias de Belém e não ser tocado pelo delicioso aroma de maniva e tucupi pelas ruas da cidade, pela mudança na rotina que antecede a grande celebração da história e da cultura paraense, sendo ou não devoto da santa.
É impossível se reivindicar revolucionário e não sentir em outubro o eco dos aguerridos operários, soldados e camponeses que na distante e gelada Rússia tomaram nas mãos os próprios destinos, inspirados pela inédita experiência dos comunnard franceses e pelas ideias legadas pela destemida confraria de gênios renegados que foi a Liga dos Comunistas de Marx, Engels e tantos outros.
Outubro, para mim, é o momento em que a celebração e o orgulho de nossas raízes indígenas, quilombolas e cabanas misturam-se à consciência histórica e internacionalista de que nós, os revolucionários, somos hoje os herdeiros de uma longa tradição de rebeldes inquietos e destemidos que, em todo o mundo e pelo menos ao longo dos últimos 145 anos, sem que nos contentemos em lutar apenas por nossa própria sobrevivência cotidiana, temos ousado buscar construir um mundo livre de toda a forma de opressão e exploração.
Um sonho grande demais para caber nas urnas, algo pelo qual vale a pena deixar a cama todas as manhãs. Como ateu e comunista, o Círio tem, para mim, um significado que vai muito além da catarse religiosa. Ele é a celebração da história e da cultura de um povo historicamente oprimido e explorado que, apesar de tudo, não perde a disposição para lutar e celebrar.
É o passeio com as crianças ao ITA, a iconoclastia do Auto do Círio pelas ruas da Cidade Velha, a tradicional Festa da Chiquita celebrando todas as formas de amor e desafiando a moralidade hipócrita das carolas de plantão, o Arrastão do Pavulagem subindo a Avenida Presidente Vargas rumo à praça da República, o almoço de domingo em volta das iguarias típicas de nossa terra, na companhia de nossos entes queridos.
Mas, é também o espectro dos rebeldes tupinambás, dos insubmissos quilombolas e dos revolucionários cabanos que resistem e insistem em rondar os poderosos, como na luta estudantil pela meia passagem que há pouco mais de duas décadas incendiava as ruas da capital paraense. Ou como nos ventos de junho que, ainda mais recentemente, sopraram sobre nossa Cidade Morena, trazendo uma brisa fresca que persiste em um ambiente por muito tempo estagnado.
No Círio, Belém é tomada por milhões de trabalhadores vindos do Interior do estado e de vários outros lugares do Brasil e do mundo. Uma massa de mulheres e homens, em maioria humildes ribeirinhos e camponeses, mas também operários, trabalhadores que entregam o sangue e as vidas para extrair as riquezas de nosso solo, construir os lares suntuosos da elite paraense e mover os grandes projetos que o capital internacional usa para nos saquear.
O que os leva a tomarem as ruas de Belém aos milhões, como uma inundação, uma verdadeira pororoca de corpos, histórias, sonhos e expectativas? A miséria, o desespero e a aparente impotência diante de uma realidade cada dia mais brutal, cruel e impiedosa. É isso que os anima a buscarem nas promessas à santa e nas orações fervorosas uma saída individual para os problemas que afligem a todos nós. Mas, ainda assim, quase sempre cegos pelos véus da ideologia dominante, a classe trabalhadora busca instintivamente a união, confluindo como uma grande piracema anual às ruas de Belém, unidos por um sentimento de fraternidade, promovendo um espetáculo imponente e memorável diante do qual é impossível não se admirar.
O que essa massa de oprimidos e explorados unidos e mobilizados não seria capaz de realizar livre das amarras ilusórias que os mantêm subjugados, clamando por um milagre, ou pela redenção no além-túmulo? Eu vejo o mar de corpos negros e caboclos que toma as ruas ensolaradas de Belém e lembro de nossos irmãos que marcharam sobre a gelada São Petersburgo em um outubro passado.
E sonho com o dia em que em nosso próprio outubro marchemos pelas ruas de Belém e de todo o mundo, aos milhões, de olhos desvelados, finalmente livres para construir na Terra o futuro que aqueles que detêm o poder, com lábios encharcados de malícia e hipocrisia, nos prometeram para o céu. Um Círio cheio de otimismo revolucionário para todos nós!
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