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Olavo Bilac, Bia Doria e o desprezo

Por Yuri Lueska, de São Bernardo do Campo(SP)

No domingo, dia 9 de outubro, foi publicada na Folha de São Paulo uma reportagem com a futura primeira Dama de São Paulo, Bia Doria. Para os que leram, sem sombra de dúvida, o tratamento que esta despensa ao povo paulistano, em especial seus empregados, e para com a própria cidade, causa um certo asco. Mas não só, uma certa inocência, desprezo ou apatia da primeira dama chama atenção. Num certo trecho da reportagem, quando tocada a questão do Parque Augusta, lemos:

“Também não se aventura pelo centro e desconhece a briga pela criação do parque Augusta, lembrando sua “boa relação com a Cyrela”, uma das construtoras donas do terreno. “Onde é isso? Não conheço. Imagina quem tem filhos no centro. Vão passear onde? Vou falar para o João que lá tem que ser parque.”

Mas o desprezo manifestado na entrevista não diz respeito apenas aos problemas da cidade, diz respeito também aos seus empregados:

“Imagina como eu ficaria feliz se chegasse uma arrumadeira já sabendo fazer as coisas. Pouquíssimas delas sabem, a não ser as que já passaram por várias casas, mas aí elas vêm cheias de manias.”

Nenhum veículo é isento de parcialidade, inclusive a Folha de São Paulo. Sem sombra de dúvida o teclado de Silas Martí, autor da reportagem, tende a influenciar tal reportagem, que, inquestionavelmente, nos leva a concluir o pouco conhecimento que supostamente Bia Doria teria da cidade que seu marido irá governar. Isto não é um defeito de Martí, mas simplesmente uma característica da linguagem: a própria mensagem contém em si algo de seu emissor. Francamente, tenho nenhum interesse na vida desta senhora, e não venho aqui “investigar” se esta reportagem é fiel à ela e à sua vida. Todavia, para além disto, acredito que esta reportagem diz muito sobre nossa elite, a gênese de sua estrutura interpretativa, ou seja, como olha nosso país e o povo brasileiro.

Há um pouco mais de um século, em novembro de 1904, uma insurgência popular tomou as ruas do Rio de Janeiro. Tornou-se conhecida por revolta da vacina. Tal revolta tornou nítida duas cidades antagônicas. Uma era o Rio de Janeiro que buscava se “europeizar” a partir das reformas promovidas pelo prefeito Pereira Passos. A outra cidade era o remanescente do então extinto cortiço Cabeça de Porco: a cidade da “turbe”. Enquanto uma redigia decretos e mais decretos como aquele que proibia andar descalço na Rua do Ouvidor, a outra compartilhava uma lógica e um uso muito distante da esperada por um Haussmann tropical. Uma era a cidade branca, a outra, a cidade negra. A revolta da Vacina feriu àqueles que queria construir a civilização nos trópicos, e um dos indignados era Bilac. Numa coluna à flor dos acontecimentos, após afirmar que no Brasil não havia “povo”, esbravejou:

“E não sei bem para que servirá dar avenidas, árvores, jardins, palácios a esta cidade,- se não derem aos homens rudes os meios de saber o que é civilização, o que é higiene, o que é dignidade humana. Dir-me-ão que, em todos países da terra, há rebeliões e motins. Haverá; mas não há um só pais civilizado em que a rebelião se manifeste com a grosseira brutalidade e a estupida organização com que se manifestou aqui.”

A revolta de Olavo Bilac, assim como o desprezo de Bia Doria, só pode ser compreendida se entendermos sob qual lógica o pensamento da elite do nosso país formou-se. O tráfico de almas, que tragicamente perdurou até o século XIX, é uma marca constitutiva na nossa sociedade.  O império brasileiro era visto sob olhos europeus como um laboratório de raças. Já nossa elite, que mesquinhamente preferia as ruas de Paris as de Salvador, assim como hoje prefere as ciclovias da Europa ou de Cingapura do que as de São Paulo, remoía-se em não ser europeia. Por volta de 1870, uma série de intelectuais brasileiros aderiram ao darwinismo social: assim alçaram o mestiço como o caminho para o embranquecimento do povo brasileiro, que inevitavelmente levaria à civilização.

Uma vez no poder, com a proclamação da república, esta intelligentzia que nunca percebeu o quão repulsivo era o darwinismo social, percebeu que também era ineficaz. O povo brasileiro, sua classe trabalhadora, não foi receptiva com o projeto de europeização. Por um simples motivo: essa não era sua demanda.  Essa elite, desinteressada em compreender quais eram as demandas das trabalhadoras e trabalhadores do nosso país, optou, na voz de Bilac, em negar o estatuto de povo para a imensa maioria dos brasileiros.

Um desprezo e um ódio absoluto para com o povo brasileiro é a marca da nossa elite. É evidente que toda classe privilegiada compartilha de um ódio para com a imensa maioria da população, em todos países, em todo canto do globo. Mas é também evidente que o desprezo para com o povo, e consequentemente para com o espaço público destoa no nosso país inclusive quando comparado com muitos países da América Latina. Trata-se de um país que a burguesia nunca conseguiu admitir seu povo: ou não se reivindica brasileira, ou reivindica que os brasileiros não são povo. Por isso os condomínios fechados, que mais parecem bunkers do que residência. Por isso andam de metrô em Paris, mas não em São Paulo. Por isso o medo que compartilham dos populares. Por isso o desprezo pelo público. E inclusive por isso o ódio ao Partido dos Trabalhadores, que mesmo tendo governado durante 13 anos para esta classe social, tinha na sua cabeça um ex-metalúrgico: portanto não se trata de economia, trata-se de ódio.

Não acredito que Bia Dória, quando chorou no advento da posse de Lula à presidente, se remeta à esta arqueologia que descrevi alhures. Tão pouco também concordo que aqueles que brindavam champanhe na varanda da FIESP berrando ódio ao PT e a Lula saibam disso. Na verdade, eram seus antepassados sussurrando no seu ouvido: não é o povo que merecemos, não é a cidade que moramos…

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