Sobre palavras e intenções: o mito do sujeito consciente

Por Renato Fernandes

Muitos homens, incluindo aqueles socialistas como eu, já se depararam na seguinte situação: ser acusado de machismo por alguma prática e ter como primeira reação responder “eu não fui machista”. Na maioria das vezes, a reflexão acaba por aí, ou no máximo, num pedido de “desculpas” sem entender muito bem o porquê. Raras são as vezes que chegamos a compreender como o próprio machismo atravessa nossa prática cotidiana e, mais raras ainda, as autocríticas sobre isso.

A ideologia liberal, surgida no início do capitalismo, pressupõe um sujeito consciente de si e dos seus atos. Um sujeito que reflete sobre as opções que tem e que escolhe a partir de um cálculo do que é melhor. No início, alguns desses teóricos simplesmente defendiam que existia algo “invisível” que harmonizaria todas essas escolhas individuais. Outros teóricos, admitiam que essa escolha é sempre “egoísta”, mas defendiam que era necessário essa liberdade dos indivíduos como forma de progresso humano.

O marxismo sempre foi contra essa ideia do “sujeito livre”, consciente de si. Para o marxismo isso é um mito. O sujeito é fruto das relações sociais que estão estruturadas em cada sociedade. No interior dessas relações, os sujeitos são determinados e determinantes, são passivos e ativos, são sujeitos e objetos. A revolução proletária, para Marx do 18 Brumário, será mais “consciente”, “planejada”, do que as revoluções anteriores; mas ela será, inteiramente determinada pelas contradições das próprias sociedades que elas nascem. Inclusive na sua “consciência”. É partindo dessa compreensão que devemos refletir sobre os “lugares de fala”, sobre “a fala” e “a intenção”.

É muito comum, principalmente em tempos de reorganização da esquerda e de redes sociais, numa polêmica entre militantes lermos (ou escutarmos) a ideia de que “não tive intenção” de dizer/fazer isso. Aqui é que começa o primeiro problema para uma interpretação materialista. A intenção de um homem com determinada experiência na luta contra o machismo, muitas vezes pode não ser praticar o machismo. Mas ele pratica. Assim como a LGBTfobia ou o racismo. Pois o problema não está na intenção. Não importa para mim se Dória ou Temer acreditam (ou não) que estão fazendo o melhor para a sociedade, isto é, não me importa a intenção subjetiva deles. Importa o que eles praticam e como essa prática se articula a uma sociedade contraditória e estruturada. Pois, em relação as nossas práticas e aos nossos discursos (que também são um tipo de prática), somos ao mesmo tempo sujeitos e objetos, criadores e produtores. Somos determinados por uma sociedade capitalista, machista, LGBTfóbica, racista… e (re)produzimos essas práticas. Não existe o sujeito livre e consciente, puro mito liberal, que cria seu discurso livremente. Anos de desenvolvimento da teoria psicanalítica podem comprovar o peso e a força do inconsciente na ação dos indivíduos. É nesse sentido que não podemos reduzir uma prática discursiva a intenção consciente dos indivíduos.

Como qualquer prática, incluindo a atividade produtiva, um discurso, quando pronunciado, se transforma num produto. Ganha uma materialidade objetiva. Sai fora de nosso controle. Se materializa em um livro, em outros indivíduos quando duma assembleia ou numa conversa. Ganha a força de algo externo a nós. Sua amplitude vai depender justamente da reprodução e de sua transformação em práticas políticas, culturais, etc. Marx já nos alertava que a força da crítica poderia se converter em força material1. Ele também nos recorda que é pela própria ideologia que tomamos consciência da sociedade, isto é, que construímos nossas representações mentais e nossas posições sobre as contradições e conflitos que estruturam cada sociedade2. A fraqueza das forças socialistas, num momento como os que estamos vivendo, cobram seu preço.

Nesse sentido, referindo-se as polêmicas que temos, enquanto homens ou enquanto militantes de esquerda que combatem o machismo, o racismo, a LGBTfobia e também qualquer tipo de opressão e exploração, nos parece necessário minimizar o papel das intenções no debate das diferenças. O problema não é o que os indivíduos ou organizações “queriam” expressar. Eles poderiam ter as melhores intenções. A questão se concretiza no que eles expressaram, praticaram. E isso deve valer para interpretar a hierarquia de um texto: faz diferença começar com uma autocrítica ou com uma defesa frente a uma polêmica. Faz diferença começar por escutar o outro e assumir primeiramente que reproduzimos as práticas opressivas desses sistema do que começar por negar a possibilidade do erro. Não controlamos todas nossas palavras, nem controlamos todos nossos atos. Somos sujeitos e objetos das contradições sociais dessa sociedade e tomar posição, tal como defendia Gramsci, deve significar, primeiramente, se colocar ao lado de qualquer (re)produção das opressões socialmente estruturadas.

É nesse sentido que devemos localizar a autocrítica. Há uma tradição, em parte da esquerda, na qual a autocrítica aparece como justificação de uma nova adaptação burocrática e como eliminação dos adversários políticos. A partir de 1928, com as autocríticas de Bukharin, Tomski e Rikov, mas também com as autocríticas de militantes considerados “trotskistas” no Partido Bolchevique, como Smilga, Preobrajenski e Radek, se institucionalizou uma autocrítica que era justamente a negação das ideias contrárias às do aparelho do partido bolchevique3. Essa prática da autocrítica, ao contrário de ser marxista, é apenas uma maneira de adaptação ao aparelho burocrático monolítico, na qual as diferenças são negadas e abafadas em prol dos vencedores.

A autocrítica marxista é totalmente diferente dessa concepção burocrática e formal. Da concepção de pedir “desculpas” e não buscar as raízes dos problemas. Ela é a autocrítica das revoluções proletárias do 18 Brumário4. É também a autocrítica de Rosa Luxemburg:

O proletariado moderno se comporta de outra maneira ao sair das grandes provas históricas. Seus erros são tão gigantescos quanto suas tarefas. Não há esquema pré-estabelecido, válido de uma vez por todas, não há um guia infalível a lhe mostrar o caminho a percorrer. Não há outro mestre que não a experiência histórica. O penoso caminho de sua libertação não é pavimentado apenas com sofrimentos imensos mas também de inumeráveis erros. Seu objetivo, sua libertação, ele atingirá se souber aprender com seus próprios erros. Para o movimento proletário a autocrítica, uma autocrítica sem piedade, cruel, indo ao fundo das coisas, é o ar, a luz sem o qual não pode viver.5

Essa autocrítica, tomada da ideia de que caminhamos sobre “inumeráveis erros” e que é necessário ser radical, ir a raiz, ao “fundo das coisas”, é a única que poderá formar camaradas revolucionários. Camaradas que devem ultrapassar a “formalidade” das intenções para construir novas relações de confiança. Nesse sentido, a humildade, a paciência, a alteridade fazem parte da prática revolucionária. A autoproclamação vai no sentido contrário dessa prática marxista, pois ela sempre fecha a possibilidade de assumirmos os erros. Temos que ter consciência que vamos errar e que vamos capitular as pressões e contradições impostas a sociedade. Não há nenhum problema em assumir isso. Somos frutos de uma sociedade em decadência, mesmo que queiramos superá-la.

Porém devemos ter a coragem e a ousadia de não sermos formais com nossos erros. É necessário ser radical com eles. Não adianta pedir “desculpas”. É necessário assumir uma postura ativa, que considere que os erros farão parte da nossa atividade e é preciso sempre estar aberto para as críticas e as reflexões. Será da radicalidade prática dessa autocrítica que construiremos o novo. Ou que superaremos as opressões, a exploração e o peso que carregamos delas nas nossas práticas. Somente nessa autocrítica radical, marxista e coletiva, que poderemos superar as formalidades no combate as opressões e superar também o mito de que dominamos plenamente nossas práticas e discursos.

1 “mas a teoria também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens” (https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm)

2 “as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, ideológicas, em que os homens ganham consciência deste conflito e o resolvem” (https://www.marxists.org/portugues/marx/1859/01/prefacio.htm)

3 https://www.marxists.org/francais/broue/works/1963/00/broue_pbolch_12.htm

4 “as revoluções proletárias, como as do século XIX, se criticam constantemente a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que toma impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam: Hic Rhodus, hic salta! Aqui está Rodes, salta aqui!” (https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap01.htm)

5 https://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1915/junius/cap01.htm