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BRASIL

“Criança Feliz” de Marcela Temer: como garantir boa primeira infância sem garantir direito pleno de ser mãe?

Brasília- DF 05-10-2016 Presidente, Michel Temer e Primeira dama, Marcela Temer, durante Cerimônia de Lançamento do Programa Criança Feliz Palácio do Planalto Foto Lula Marques/Agência PT

Por: Letícia Pinho, de São Paulo, SP

Por que será que o papel das primeiras damas é sempre o de impulsionadoras de programas assistenciais ou projetos sociais? Esse é um questionamento feito por muitas de nós ao vermos, governo após governo, a mesma lógica se repetindo. O discurso feito por Marcela Temer, nessa quarta-feira, dia 5 de outubro, na ocasião do lançamento do programa ‘Criança Feliz’, faz com que reflitamos sobre um tema muito importante: o papel das mulheres na política e a construção social da maternidade.

Historicamente, as mulheres são apartadas do espaço da política. A nós foi relegado o espaço doméstico, do privado, das tarefas da reprodução da vida e dos cuidados. Aos homens foi reservado o espaço do público, da política, da produção, das tomadas de decisão e de poder. É uma construção social profunda e milenar que, apesar da nossa luta e de muitas transformações sociais, ainda é bastante presente. Uma composição ministerial só de homens, discursos sobre os homens trabalharem mais e serem provedores do lar, ou que a primeira dama é uma mulher bela, recatada e do lar, são exemplos concretos de como essas ideias sobre os papéis do masculino e do feminino ainda estão presentes e seguem sendo reproduzidas.

Observe que não existe, para nós, a figura do “primeiro homem”, “primeiro cavalheiro”, “primeiro marido”. De tão incomum, chega a soar meio ridículo. A regra é um homem ter o cargo de poder e ser bem casado com uma mulher dentro do padrão esperado de uma “esposa respeitável” para que, enquanto o marido se ocupa das grandes decisões do governo, políticas econômicas, relações internacionais, a sua primeira dama se ocupe do papel que melhor lhe caberia: o do cuidado. Não apenas o cuidado no foro mais íntimo, dos seus filhos e familiares, mas dos filhos de toda a Nação.

Quando são mulheres em cargos de poder como prefeituras, governos estaduais e presidência da república, o caminho é bem diferente. Há invisibilização da sua relação caso seja lésbica, masculinização da mulher para que esteja mais “adequada” ao cargo que ocupa e quando está em uma relação heterossexual, simplesmente não vemos a existência dos “primeiros cavalheiros”. São tão poucas as mulheres que exercem cargos executivos que não é algo usual. E também não vemos os maridos dessas mulheres que ocupam funções públicas, se ocupando da parte social dos governos.

É importante destacar que a primeira dama não tem funções políticas definidas, acaba sendo um padrão social que é construído desde o governo, mas também pela mídia. Essa construção da figura da primeira dama reflete uma sociedade machista e atrasada, reforçada pela insistência da grande imprensa para perpetuar padrões, adotando as primeiras damas como modelo moral e social. É um absurdo que o poder político de uma pessoa se transmita de alguma forma para outra pelo vínculo do casamento.

A figura da Marcela Temer retomando um primeiro damismo que já estava em desuso, aparece num momento onde inúmeras lutas feministas pautam com força alguns temas da agenda política. Ao passo que a esquerda elege mais mulheres com ideias feministas e que carregam direitos democráticos das mulheres nas suas pautas, a direita vem cumprir o papel oposto reiterando, na figura da primeira dama, o caráter da mulher como cuidadora, cuidadora voluntária. Não queremos ser belas, recatas e do lar e ser “Marcelas Temer” não é o papel que queremos na política. Não tem nada a ver com participação real das mulheres na política.

Se a construção da figura da primeira dama já é algo problemático, mais problemática ainda foi a concepção de maternidade apresentada por Marcela Temer em seu discurso. O problema não é a roupa utilizada pela Marcela, ou o nome do programa. Criticar a roupa é uma forma bem machista de abordar a questão e o nome é só um nome sem criatividade. O problema desse programa é a concepção que carrega e a maneira como está sendo conduzido.

A primeira infância de fato é um momento muito delicado e importante na formação das crianças e na construção dos seres humanos. Certamente deixa marcas que farão parte da fase adulta. O estado deve sim garantir políticas para que as crianças tenham todas as suas necessidades garantidas e possam se desenvolver da melhor forma possível, mas o programa está bem longe disso. Além de ser fundamental não taxar as pessoas como futuras pessoas violentas ou com problemas por não terem tido a primeira infância ideal, a maternidade para a gigantesca maioria das brasileiras infelizmente é cheia de dificuldades.

Ser mãe no Brasil é uma tarefa hercúlea travada de forma muito solitária. Um drama individual tido como aceitável, pois ainda é comum a mentalidade retrógrada, machista e conservadora de que a responsabilidade única e exclusiva nossa. Há uma culpabilização muito grande das mulheres, quase como uma punição social por termos tido filhos. A primeira infância apresentada por Marcela Temer está muito distante da realidade da maioria das brasileiras. O referencial dela é o das mulheres com condições financeiras e sociais privilegiadas.

Infelizmente, para a maioria de nós, mulheres que são mães em condições tão adversas, proporcionar a primeira infância dos sonhos é algo distante. Muitas de nós não contamos com o apoio dos nossos parceiros e somos abandonadas na gestação, ou nos primeiros anos depois do nascimento dos nossos filhos. Muitas de nós não conseguimos emprego se estamos grávidas, ou não conseguimos ter acesso à licença maternidade que nos permita ficar mais tempo com nossos filhos. Muitas de nós não temos berçários e creches públicas, não conseguimos ter condições de trabalhar e sustentar os nossos filhos. Muitas de nós precisam trabalhar em mais de um emprego para ter o mínimo no final do mês. Muitas de nós cuidamos dos filhos dos patrões, enquanto somos obrigadas a deixar os nossos sozinhos. Muitas de nós, no desespero, acabamos recorrendo a inúmeros arranjos para dar conta dessa tarefa tão difícil que é sobreviver e ter uma criança em um país tão desigual. Se fosse listar todas as dificuldades enfrentadas por nós, esse texto ficaria gigantesco.

Por todas essas questões é que esse programa “Criança Feliz” nem de longe aborda o central do problema, que é a primeira infância, os cuidados necessários nessa fase e as condições para que isso seja feito. É um programa social midiático para tentar dar uma aparência mais humana a um governo desumano, que prepara ataques monumentais contra a maior parte da população brasileira. Como será possível para as mulheres brasileiras terem condições de cuidarem dos seus filhos e proporcionarem uma primeira infância adequada, se o governo quer flexibilizar os nossos direitos trabalhistas, fazendo com que trabalhemos até absurdas 12 horas por dia? Como proporcionar uma primeira infância adequada com escola e saúde, se o governo quer congelar gastos públicos em áreas sociais por 20 anos? Como ter uma primeira infância adequada para nossos filhos, se não é realizada nenhuma campanha para mudar a mentalidade de que a criação é responsabilidade só das mães?

O problema não se resolve com visitações de uma equipe nas residências das famílias que recebem o Bolsa Família para monitoramento. É necessário mudar as condições sociais para que o exercício da maternidade não seja tão árduo e que as crianças possam ter o melhor na sua primeira infância e anos seguintes. Precisamos de creches, emprego, moradia, salário digno e campanhas educativas de combate ao machismo. E são justamente essas importantes demandas sociais que o governo quer atacar com suas reformas estruturais.

Mais uma vez, esse governo mostra que não entende nada sobre o que são as mulheres, sobre quais são as nossas dificuldades e de quais políticas sociais necessitamos.