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Marx e Engels encontram o direito

Por: Rodrigo Bertolozzi Maluf
Militante do MAIS, advogado e mestrando em Direitos Humanos na USP

A análise do que é direito deve ainda estar em debate nos dias de hoje, pois acreditamos que uma má compreensão da essência do direito leva a estratégias1 reformistas no contexto da mobilização da classe trabalhadora. Um dos motivos para que haja essa má compreensão é o próprio desdém com que muitos marxistas trataram o estudo do direito. Uma evidência desse pouco caso é a escassez de livros que versem especificamente sobre o direito2.

Apesar de Marx em nenhum momento estudar profunda e especificamente o direito, diversas foram as contribuições deixadas pelo alemão. No presente artigo, faremos uma breve exposição do que Marx e Engels têm a nos dizer acerca do “ que é direito”.

Em A questão judaica (1843-44) a despeito de alguns vícios idealistas ainda presentes na obra, Marx já mostra sua inquietação acerca dos direitos considerados fundamentais, os “assim chamados direitos humanos”. Em suas palavras:

Antes de tudo constatemos o fato de que os assim chamados direitos humanos, os droits de l’homme, (…) nada mais são do que os direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade.”3

A inquietação da crítica marxiana é clara: longe de exaltar os direitos humanos, Marx buscou compreender a íntima ligação entre os direitos atribuídos a todos os homens – a liberdade, a propriedade privada e a igualdade – e a sociedade a que pertencem. A liberdade, por exemplo, segundo artigo 6º da Constituição Francesa de 1793 (também chamada de Constituição Jacobina e conhecida como a Carta Maior do período mais radical da Revolução Francesa) “é o poder que pertence ao homem de fazer tudo quanto não prejudica os direitos do próximo”4, ou seja, nada que extrapole a concepção tipicamente burguesa de liberdade.

Isto é, para os “direitos humanos”, apontou Marx, a questão da liberdade não se baseia na vinculação dos homens para a realização dessa mesma liberdade, mas sim na separação desses homens – na não turbação da autonomia do homem livre. “A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada”5. Sendo o direito a essa propriedade privada nada mais do que o direito de gozar de seu patrimônio e dispor sobre ele como bem quiser, independente das considerações dos demais e das consequências para a sociedade.

Outrossim, a igualdade se resume à igualdade dessa liberdade já exposta: “cada homem é visto uniformemente como mônada que repousa em si mesma”6, isto é, para a concepção dos direitos humanos, as leis de liberdade e propriedade deveriam ser suficientes para o bem-estar de todos, pois todos os homens seriam capazes de garantir sua reprodução sozinho tais quais as mônadas.

Portanto, conclui Marx em sua juventude que todos os direitos humanos não são capazes de transcender a mentalidade egoísta dos homens e mulheres da sociedade burguesa que se preocupam com seus interesses privados materializados em suas propriedades.

Em Crítica ao Programa de Gotha (1875), Marx também tratou do direito ao reprovar o projeto de programa que foi proposto durante a unificação de dois partidos operários alemães em 1875. Esse projeto privilegiava as teses de Lassalle7 e nas palavras de Marx consistia num programa que “é absolutamente nefasto e desmoralizador para o partido”8. Isso ocorria pois suas disposições eram baseadas em fraseologias sem real capacidade de transformação, como a “distribuição justa do fruto do trabalho”9.

O que seria uma distribuição justa? Não seria justa para a burguesia a distribuição do fruto do trabalho na atual sociedade capitalista? Como nota Marx, esse pensamento de origem lassalliana – similar à escola socialista francesa, que se concentrava na exigência de uma distribuição “mais justa” dos produtos do trabalho – herdou da burguesia e de suas relações dominantes o procedimento de dissociar o modo de produção e o modo de distribuição, abrindo uma falsa possibilidade de “distribuição justa”.

Sendo assim, não se pode realizar uma “distribuição mais justa” enquanto permanecerem os alicerces da exploração capitalista. Como “distribuir igualmente” enquanto temos patrões e trabalhadores?

Outrossim, para a “distribuição” ser efetivamente justa, ela não será jurídica. Afinal, para o “estreito horizonte do direito burguês” o conceito de justiça, assim como todo seu arsenal teórico, está ligado ao capitalismo. Para Marx:

O direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade. Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; (…) apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira ‘De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!’ ”10

Importante ressaltar que Marx colaborou muitíssimo para o estudo do direito n’O Capital. No entanto suas observações sobre o direito feitas aí serão vistas em outro artigo em que abordaremos sucintamente outros autores que captam o direito pela lógica marxista: Stucka e Pachukanis. Isso pois esses autores desenvolveram suas críticas ao direito baseando-se principalmente n’O Capital (além de, por óbvio, todo acervo marxiano e marxista de sua época).

Seguindo a mesma linha de Marx, Engels e Kautsky escreveram o livro Socialismo Jurídico (1887) para rebater as ideias sustentadas por Menger11 que acreditava na possibilidade da transição ao socialismo por meio do direito. Tais ideias de Menger, ao propor a tarefa da construção desse socialismo jurídico, acabavam por favorecer as alas reformistas e oportunistas do marxismo que privilegiavam (e ainda privilegiam, como veremos) a participação no sistema eleitoral em detrimento do movimento de massas, uma vez que suas reivindicações têm o direito e seus institutos burgueses (liberdade, igualdade) como base.

Esta atitude reformista não pode ser emancipadora pois reproduz as formas de dominação da burguesia sobre os próprios trabalhadores, logo é uma alternativa de transformação social já fadada ao fracasso. Engels e Kautsky, retomando os apontamentos de Marx assim afirmam:

A classe trabalhadora – despojada da propriedade dos meios de produção no curso da transformação do modo de produção feudal em modo de produção capitalista e continuamente reproduzida pelo mecanismo deste último na situação hereditária de privação de propriedade – não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. A concepção materialista da história de Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida, demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas, etc. – derivam, em última instância, de suas condições econômicas de vida, de seu modo de produzir e trocar os produtos.”12

Desse modo, Marx e Engels nos deixaram grandes pistas acerca do “que é direito”. Apontaram seu caráter “egoísta” (pertencente ao “estreito horizonte burguês”) pois, em suma, tanto o direito como as demais relações sociais são condicionadas pelas condições de vida que as produzem e as reproduzem.

O direito é resultado das relações capitalistas, assim como as demais representações dos seres humanos – sejam elas filosóficas, religiosas, jurídicas, etc. Afinal, essas relações capitalistas, como veremos mais detalhadamente no próximo artigo, precisam que os indivíduos sejam reconhecidos formalmente como iguais, apesar de que na realidade esses indivíduos pertencem a classes sociais distintas (burguesia e trabalhadores) que estão em luta.

1 “(…) a estratégia tem a ver com o objetivo final, de conjunto, a longo prazo, e as táticas são os diversos meios para chegar a esse objetivo. Ambos são termos relativos. Ou seja, sempre temos que definir em relação a quê uma questão é estratégica e em relação a quê uma questão é tática. Esse caráter relativo dos dois conceitos faz com que o que é estratégico numa determinada etapa ou tarefa parcial, seja ao mesmo tempo tático em relação a um objetivo superior ou mais geral.” MORENO, Nahuel; PETIT Mercedes. Conceitos Políticos Básicos, p. 4. Disponível em: <http://esquerdasocialista.com.br/livro-conceitos-politicos-basicos/?; Acesso em: 09.10.15.

2 “As primeiras tentativas de elaboração de uma concepção marxista do direito no período imediatamente seguinte à Revolução Russa de 1917, decorrem da necessidade imperiosa de se criar uma nova organização judiciaria e legislativa, de modo que a formulação de uma teoria marxista do direito esteve inicialmente na dependência da resolução de tarefas eminentemente políticas, e no interior de um quadro amplamente desfavorável ao trabalho teórico marxista, posto que inexistia tanto nas obras de Marx e Engels, como também no campo marxista, uma concepção sistemática do direito”. NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 24-25.

3 MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010, p.48

4 “La liberté est le pouvoir qui appartient à l’homme de faire tout ce qui ne nuit pas aux droits d’autrui”

5 MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.

6 Ibidem, p. 49.

7 Ferdinand Lassale (1825-1864) foi um advogado e político socialista alemão. Carregado de uma visão idealista, dedicou grande parte de sua atividade à conquista do sufrágio universal, pois, segundo ele, esse seria um meio de os operários influenciarem as decisões do governo. Por meio dessas influências, os operários tensionariam o Estado e a transição para a ordem socialista ocorreria paulatinamente.

8 MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 20.

9 ibidem, p. 27.

10 MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 31-32.

11 Anton Menger foi um sociólogo e jurista burguês austríaco

12 ENGELS, Friedrich; Kautsky, Karl. O socialismo Jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 21.

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