Entrevista com militante do Movimento Negro Karen Morais

Militante do movimento negro, Karen Morais fala sobre o 20 de setembro e o racismo hoje. Karen é professora de Educação Física da rede estadual. Militante do movimento negro e também do coletivo Alicerce é candidata à vereadora pelo PSOL nestas eleições municipais em POA.

Francisco da Silva, de Porto Alegre, RS

 

“Até que os leões contem suas histórias, as histórias da caça glorificarão sempre os caçadores” Provérbio africano.

 

Francisco da Silva (FS)- Olá Karen, há uma onda ufanista percorrendo o Rio Grande do Sul. Nas empresas, no comércio e mesmo nas escolas há um movimento de orgulho da “pátria gaúcha”. As elites através da RBS e dos CTG’s estão eufóricas com o 20 de setembro aqui no estado. Qual tu achas que é a relação do movimento negro com esta data e com este ufanismo regional?
Karen Morais (KM)- O movimento negro tem muitas críticas em relação a dita Revolução Farroupilha porque foi mais um momento da história do país em que os negros foram usados como ‘bucha de canhão’ numa guerra que não fazia sentido para eles, pois não detinham posses e nem houve remuneração alguma, pelo contrário, eram escravizados que viviam as margens das decisões políticas. O lema “liberdade, igualdade e humanidade” era proclamado entre os brancos, enquanto a venda de trabalhadores negros escravizados servia para financiar a guerra.

FS – Há também o pouco conhecido episódio da Batalha de Porongos. Podes comentar sobre?
KM – Os Lanceiros Negros foram testa de ferro do exército farroupilha – negros escravizados que tinham como garantia a liberdade chegaram a ser metade da composição do exército. O Império tinha desacordo em ceder liberdade aos lanceiros negros e negociou com Davi Canabarro – comandante do destacamento de negros – de desarmar e facilitar a derrota dos lanceiros. Há inúmeras controvérsias entre historiadores e estudiosos da Revolta dos Farrapos, mas por esses argumentos de não haver liberdade para os negros nem antes de ingressarem na guerra nem após, além da denúncia de traição, que o movimento negro não comemora essa data.

FS – O Hino do Estado do Rio Grande do Sul é símbolo do orgulho regional. Milhares de pessoas cantam o hino do RS com muito mais fervor do que o hino do Brasil. Sabemos que o movimento negro critica muito alguns trechos do Hino. O que pensa sobre isso?
KM – Criticamos a parte que diz ‘Povo que não tem virtude acaba por ser escravo’. Os africanos foram sequestrados e escravizados em território nacional por quase 4 séculos, desenvolvemos a nação a partir da exploração da nossa força de trabalho, e a escravidão não foi por falta de virtude, e sim pelas táticas usadas pelos senhores de escravos para que não houvessem revoltas. Táticas como misturas de diferentes etnias de africanos com dialetos (línguas) diferentes, para dificultar a comunicação e possíveis articulações de fugas e revoltas. Castigos muitos severos aos escravizados que se rebelavam, servindo de exemplo e dominação ideológica aos outros escravizados. O hino reproduz a superioridade racial branca frente a todas as outras raças que foram colonizadas e escravizadas. Porém são fatores econômicos e bélicos que garantiram essa dominação dos povos europeus frente aos povos de África e América Latina.

FS – Mas o racismo não é só coisa de história. Está muito presente também nos dias de hoje. Como é ser mulher e negra no RS?
KM – Ser mulher e negra é ter que lidar duplamente com esses preconceitos em torno da nossa raça e sexo. Para ter destaque na vida temos que provar duas vezes mais as nossa capacidade. Pela segregação que os negros foram submetidos vivemos em periferias, onde não há acesso aos serviços públicos, e os que tem são sucateados. Há dificuldade no mercado de trabalho, ainda hoje há anúncios que pedem ‘boa aparência’, para funções de atendimento ao público. O racismo e o machismo se encontram nesse tratamento, por não sermos o padrão de beleza nacional para determinadas funções de prestígio. É muito comum vermos negras de empregadas domésticas, mas é raro vermos negras médicas, advogadas, políticas, etc. Somos hipersexualizadas pelo nosso biótipo (esteriótipo), principalmente no Carnaval – que se tornou um evento de prostituição mundial – onde a figura ‘mulata’ é vendido como produto nacional – termo esse muito depreciativo. Esse contexto também nos ajuda a entender porque as negras são mais violentadas pelos homens do que as mulheres brancas – de 2003 – 2013 cresceu 54% o número de homicídios de mulheres negras enquanto de mulheres brancas diminuiu 10% (ONU).