Em 1947, jovens folcloristas urbanos reunidos em um apartamento em Porto Alegre resolveram recriar um Movimento Tradicionalista Gaúcho. O contexto histórico era o do início da Guerra Fria. Após o fim da ditadura estadonovista de Getúlio Vargas, o presidente era o general Eurico Gaspar Dutra, um dos mais reacionários que o Brasil já conheceu.
Notório lacaio dos EUA, Dutra havia fechado a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), tornou o PCB ilegal, rompeu ligações diplomáticas com a URSS, criou uma lei que tornava todos as atividades laborais como essenciais e por isso proibidas de fazerem greves, com raríssimas exceções, como a dos perfumistas.
É neste clima que o MTG surgia, buscando resgatar uma pretensa Era de Ouro perdida do Rio Grande do Sul. Os regionalismos deixaram de ser proibidos, como na ditadura de Vargas, e buscava-se então re-emplacar uma cultura subnacionalista chauvinista, que voltava com força.
Voltava-se os olhares melancólicos para o passado, pretendendo recriá-lo e, se necessário, inventando o que fosse preciso para preencher as lacunas ainda desconhecidas daquela história, como confessaram os criadores do novo tradicionalismo. O termo Movimento e Tradição mostram certa contradição. Como algo pode mover-se e se conservar? Certamente era um mover-se para trás.
O tradicionalismo gaúcho é um elogio ao mundo rural, à fazenda, às lides do campo numa propriedade latifundiária. Em seus Centros de Tradição (CTGs), apresenta-se uma recriação lúdica e fantasiosa das relações patrão e empregado.
No topo da pirâmide social reina o patrão, seguido do capataz, os peões, os cavalos, os cachorros e as prendas, nesta ordem. O negro escravizado não existe, desaparece na versão caramelada da antiga fazenda gaúcha. Patrões e empregados confraternizam ao som de violas e gaitas, servindo chimarrão uns aos outros, entre histórias de valentia, com piadas machistas que incluem com orgulhoso deboche até zoofilia. Gaúcho que tinha um cavalo tinha um amigo. E quem tinha uma égua, tinha uma namorada, zomba o piadista quando uma dama não está por perto.
Alguns anos depois, o folclorista Paixão Cortes pousou para o brilhante artista Antônio Caringi na elaboração de uma estátua que acabou vencendo o prêmio de arte tradicionalista. Fez um cosplay de gaúcho, dando uma versão ao sujeito social marginalizado no passado sulista, filho bastardo do colonizador espanhol e português com a indígena americana violentada. Com os antigos campos abertos fechados pelos alambrados, o gaúcho original teve de se tornar militar, trabalhador da fazenda ou bandido. O “gaúcho” branco da estátua do Laçador na verdade é uma representação do peão de estância, também romanceada, ficcional, e em quase nada parecida com o gaúcho do passado.
Há muito tempo o trabalho rural, da lavoura ou pastoril, não representa mais as principais atividades econômicas no Rio Grande do Sul. Aqui no RS o grosso do mundo do trabalho se dá nas cidades, nas relações entre patrões e empregados assalariados. Mas o tradicionalismo é estimulado pelos governantes e pela grande imprensa local, justamente pelo seu conteúdo ideológico conservador e ‘conciliador’ de classes. Aqui nasceu também o MST, na luta dos trabalhadores, homens e mulheres do campo, por um pedaço de terra. Mas, evidentemente esta parte da nossa história não é nem um pouco celebrada pelo tradicionalismo.
No Rio Grande do Sul há uma enorme cultura urbana e operária. Terra de ricos e variados estilos e ritmos musicais, desde o samba ao funk, hip-hop, rock, metal, punk, bregas, corais, bandinhas “sertanejas” etc. Mas para o tradicionalismo música gaúcha limitar-se-ia aos estilos tocados nos CTG’s e certas estações de rádio.
O mês de setembro é o ápice dos festejos de cunho tradicionalista no Rio Grande do Sul, em comemoração à revolta de ricos criadores de gado no séc 19, que passou para a história como a ‘Revolução Farroupilha’. Algumas façanhas dos fazendeiros do passado são elogiadas pelos fazendeiros atuais, obviamente escamoteando outros feitos não tão louváveis assim de seus heróis.
Em 1992, a Estátua do Laçador foi considerada pelo poder público local como símbolo do Rio Grande do Sul. O contexto histórico agora era o do desembarque do neoliberalismo no país e no estado, onde o tradicionalismo continuaria tendo um papel ideológico fundamental.
Mas esta é uma outra história.
*Hemerson Ferreira é professor de História
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