Por Valerio Arcary
Havia expectativa de amplos setores da vanguarda da classe trabalhadora no discurso de Lula. Muitos esperavam uma atitude combativa do ex-presidente diante da evidente possibilidade de se tornar inelegível para as eleições de 2018. O curso de adaptação do Lulismo à democracia burguesa falou mais alto mesmo perante a ofensiva da burguesia sobre o PT e sua figura. Assistimos no discurso de Lula todos os pecados dos 13 anos do PT no governo, particularmente o maior deles, a exaltação da conciliação de classes como uma virtude.
A esquerda socialista não deve apoiar uma candidatura do PT em 2018, seja quem for o candidato. Mas não pode ser neutra diante de uma operação policial seletiva de interesse totalmente político. Esta operação é uma continuação da ofensiva que começou em março de 2015, e culminou com o impeachment. O PT precisa ser criticado diante dos trabalhadores, será preciso um balanço dos seus treze anos de governo, mas isso deve ser feito pelos trabalhadores. E não diminui em nada a importância de posicionar-se perante um ataque de nossos inimigos de classe. As declarações da entrevista não indicam que ele, ou a direção do PT que, ao que parece não tem força para contrariá-lo, tenha plena consciência da gravidade da situação.
Conheço pessoalmente o LULA desde 1979. A primeira reunião que tive com ele foi na sala da presidência do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo. Iriam ocorrer as primeiras eleições diretas para a diretoria da UNE. Uma única chapa, Novação, reunia todas as correntes estudantis que estavam engajadas no movimento pró-PT, e queríamos pedir uma declaração de apoio. Todas as outras defendiam a unidade das oposições através do MDB, à exceção da Liberdade e Luta e da chapa Maioria, encabeçada por Ciro Gomes, que era então filiado à Arena, o partido da ditadura. Ele não quis dar. Muitos anos depois, em 1987, fui eleito membro do diretório nacional do PT e em 1989 da executiva nacional, em que permaneci até 1992. Foram quatro anos de reuniões semanais. Entre outras características, um traço muito peculiar da personalidade dele é a preferência ou obsessão de sempre trocar o desenlace incerto de um conflito por um acordo. Mas, ainda assim, fiquei surpreso pelos excessos desnecessários de soberba, impróprios, e na hora errada. Essa ilusão de grandeza e subestimação dos inimigos, talvez explique a sua espantosa ausência nas mobilizações pelo “Fora Temer”.
Não há razões para ninguém duvidar. Existe mesmo o perigo de Lula ser condenado e, portanto, ficar inelegível. Consideradas as oscilações das relações políticas de forças entre os partidos, depois da posse definitiva de Michel Temer e, em nível de abstração mais elevado, a relação social de forças entre as classes, a possibilidade de um desfecho desfavorável a Lula é muito grande. Na verdade, hoje por hoje, é a hipótese mais provável, se o quadro atual se mantiver. O discurso tinha, portanto, grande importância. Mas, parece que Lula aposta somente na habilidade jurídica de seus advogados, e na fragilidade da acusação dos procuradores. Mais uma vez prefere a conciliação. A oportunidade de um contra-ataque que pudesse, colocar a classe trabalhadora em movimento para derrotar Temer e seu ajuste fiscal mais uma vez foi desperdiçada:
(a) Lula não fez autocrítica alguma de balanço dos treze anos de governo, portanto, não construiu um diálogo com a maioria dos eleitores que, por nele confiarem, votaram em Dilma Rousseff, e depois se arrependeram;
(b) Lula não admitiu erro algum. Deixou inexplicável porque não foi possível derrotar a campanha pelo impeachment, ou o elevadíssimo grau de rejeição que, diretamente, o atinge.
(c) Elogiou as instituições do regime de dominação, indistintamente, as mesmas que foram utilizadas para tentar legitimar o golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff, inclusive, as procuradorias;
(d) Não satisfeito, fez um incrível elogio dos políticos – quando a desconfiança e desprezo contra os políticos profissionais cresce nos setores, politicamente, mais conscientes – porque, supostamente, teriam que prestar contas de seu trabalho de quatro em quatro anos; e, para piorar, repetiu ataques desrespeitosos ao funcionalismo público concursado, porque teriam o “privilégio” da estabilidade no emprego.
(e) Diminuiu-se com o abuso da mania de grandeza: fez comparações de grandiloquência ególatras (numa boa, Jesus Cristo?);
(f) Exigiu desculpas dos procuradores, mas não pediu perdão à classe trabalhadora, que foi quem o levou à presidência;
(g) Esqueceu-se de citar Junho de 2013, a maior mobilização de massas no país desde as Diretas Já em 1984, ignorou a elevação da inflação e do desemprego, não se referiu uma única vez ao financiamento do PT pelas empreiteiras, e ainda celebrou que éramos o país mais feliz (!!!) do mundo, e de provincianismo canhestro (o Brasil era “respeitado”).
(h) Não fez, tampouco, reflexão alguma sobre as palestras milionárias que o enriqueceram.
(i) Confessou orgulhos absurdos, como a colaboração com os EUA: a passagem sobre os telefonemas de Colin Powel, secretário de Bush, comandante da ocupação do Iraque foi sinistra, ou a admiração do Obama pela sua moderação;
(j) Insistiu no elogio à colaboração de classes: reconheceu a renúncia a qualquer estratégia de socialização da produção da riqueza, porque não seria necessária; sublinhou que a política de inclusão através do endividamento para o consumo era superior, porque não dependia de conflito, desqualificou a revolução, e até puxou a orelha de Guilherme Boulos, defendendo que ajudar os empresários a ganhar dinheiro teria sido uma opção correta de seu governo.
(k) Por último, mas não menos importante, não explicou porque a OAS teria feito, desinteressadamente, as reformas no apartamento do Guarujá, e admitiu que aceitou o favor da guarda dos presentes que ganhou na presidência, porque não tinha onde colocá-los, o que não é honesto para quem tem um patrimônio de alguns milhões de reais.
A resposta de Lula foi, portanto, frágil no conteúdo. No entanto, a repercussão da entrevista foi grande. Lula parece ter conseguido despertar alguma simpatia para além da área de influência mais restrita do petismo, ao se colocar como vítima de perseguição. Permanece um orador poderoso. O mais forte dos seus recursos permanece sendo a emoção.
O indiciamento de Lula pelos procuradores foi, evidentemente, uma provocação política. A acusação de “líder supremo” do que batizaram como a propinocracia não foi sustentada por nenhuma prova, a não ser os depoimentos obtidos através de acordos de delação premiada. Restou a acusação insustentável do apartamento do Guarujá.
A classe dominante tem boas razões para estar preocupada. Ninguém pode hoje prever qual será a situação do país em 2018. Mesmo que ocorra uma recuperação do nível atividade econômica em 2017, se vier a acontecer, será muito pequena, e é improvável que o desemprego diminua. Por outro lado, a possível votação do congelamento do orçamento para a educação e saúde, mesmo que não seja nos prazos “bíblicos” apresentados de vinte anos, deixará sequelas e provocará desgaste. Isso sem considerar o impacto brutal da reforma da previdência. Portanto, os partidos que garantem a ampla maioria de apoio a Michel Temer no Congresso Nacional terão muitas dificuldades de construir uma frente em torno de uma candidatura única e são dificuldades eleitorais quase intransponíveis.
Não foi por outra razão que o discurso de posse de Temer tinha duas linhas: primeiro a defesa do programa de choque de capitalismo exigida pelo grande capital e que esteve na raiz da campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff; mas, segundo, a defesa de uma pacificação ou reconciliação nacional. Tampouco foi por acaso que o Tribunal Superior Eleitoral já tenha decidido que a sentença sobre a ação do PSDB que denuncia a chapa Dilma/Temer fica para 2017.
O discurso que domina a consciência da maioria da classe média e, possivelmente, de uma importante parte da classe trabalhadora é que o maior problema da nação é a corrupção. A popularidade da Lava Jato só se explica porque corresponde a esta versão ou narrativa burguesa.
Esta versão da crise nacional é, evidentemente, instrumental. A classe dominante sabe, perfeitamente, que o grau de corrupção nas relações do Estado com as empresas é uma anomalia, mas sabe, também, que é um custo inevitável da gestão dos negócios públicos em um país tão desigual. Nunca existiu e não existirá capitalismo sem corrupção. O que pode variar, somente, é o grau de corrupção.
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