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EDITORIAL

Luta e repressão em uma aldeia famosa na China

Por Waldo Mermelstein, de São Paulo (SP).

O vilarejo de Wukan, na província de Guangdong, a 120 km de Hong Kong, com cerca de 20 mil moradores, voltou a ser notícia nesta semana após uma revolta de seus habitantes contra as práticas do estado chinês de se apropriar, legal ou ilegalmente, das terras comunais. Os moradores já haviam protagonizado um protesto famoso em 2011, quando se revoltaram contra os dirigentes locais, os mesmos no poder há 42 anos(!!). Naquele ano, depois de enfrentarem a dura repressão, inclusive com a morte de um ativista nas mãos da polícia, conseguiram conquistar a eleição de novos dirigentes, tendo à cabeça Lin Zuluan. Foi um feito inédito em todos os demais protestos no imenso interior chinês.

Em junho deste ano, Lin Zuluan, agora com 72 anos, foi preso, acusado de corrupção. Aparentemente, segundo socialistas chineses, tinha se disposto a colocar novamente em discussão o tema recorrente da alienação das terras em uma assembleia pública, o que teria precipitado sua prisão. Após uma “confissão” em um vídeo, no qual se notam sinais de tortura em seu rosto, foi condenado a 37 meses de prisão, no dia 8 de setembro.

Por causa da prisão, começaram os protestos e a polícia antimotins foi expulsa da cidade. Mas, depois, cerca de 1000 policiais invadiram a cidade, prenderam dezenas de moradores, jogaram bombas e estabeleceram um verdadeiro estado de guerra na cidade. Aparentemente, a brutalidade policial conseguiu conter a revolta dos moradores, pelo menos por enquanto, mas o caso mostra a sensibilidade do tema da desapropriação de terras e é um exemplo de uma aldeia em que a memória da luta não se perdeu. Como em todos os protestos na China, os moradores utilizaram amplamente as redes sociais para organizar e divulgar o movimento. Quatro ativistas foram presos por causa disso, o que mostra a preocupação das autoridades chinesas com a utilização dos meios virtuais para difundir os protestos sócias.

Uma imensa reserva de mão de obra barata
Como explica a pesquisadora Ching Kwan Lee, a China tem hoje cerca de 250 milhões de trabalhadores migrantes que trabalham temporariamente nas cidades. Por meio do sistema hukou”, o estado chinês atribui às pessoas um local de residência fixo, o mesmo em que nasceram e os benefícios sociais somente podem ser usufruídos nesse local. Assim, os custos de reprodução da força de trabalho (a educação dos filhos, a subsistência durante os períodos de desemprego e ou aposentadoria, os cuidados de saúde, etc.) recaem nas aldeias e vilarejos nativos.

Nas aldeias, os migrantes mantêm o direito ao uso familiar de um lote das terras que permanecem como propriedade coletiva. Assim, em épocas de desemprego ou doença, os migrantes acabam voltando para suas aldeias.

O mercado de terras na China atual
Com a restauração do capitalismo na China, as terras puderam ser vendidas ou alugadas para atender ao frenético boom industrial, em especial nas regiões costeiras. Os dirigentes locais, que controlaram essas negociações, apropriaram-se de grande parte das receitas. Para se ter uma ideia, nas vendas os camponeses recebiam em média somente 2,5% do valor dos negócios!

Em 43% das aldeias houve desapropriação de terras, gerando 52 milhões de camponeses sem-terra entre 1987 e 2010. Muitas terras foram alugadas por períodos renováveis para grandes cooperativas ou multinacionais, sendo que os camponeses receberam muito pouco por isso e acabaram se tornando assalariados em suas próprias terras ou engrossaram o número dos migrantes. Em certas regiões, aldeias inteiras deixaram de existir.

Uma realidade instável e em transformação
O governo está alterando em parte a rigidez do sistema hukou, realocando 70 milhões de habitantes rurais para cidades recém-criadas, de modo a aumentar para 60% o número de habitantes urbanos do país. Claro que nessas novas cidades os serviços e empregos não se comparam com os que existem nas principais cidades do país, como Shangai e Beijing.

Com essas mudanças o sistema hukou pode tornar-se menos eficaz como uma válvula de escape para o regime em períodos de crise e como desestímulo à sustentação de lutas prolongadas nas cidades.

Este conjunto de fatores faz com que 65% dos cerca de 180 mil “incidentes massivos” (nome dado pela polícia chinesa às lutas no país) registrados em 2010 – a última estatística oficial disponível- sejam causados por assuntos de desapropriação de terras. Um processo que, como demonstrado pela luta em Wukan, não dá tréguas.

Ao mesmo tempo, a segunda geração de migrantes já não tem como perspectiva, nem alternativa, ganhar a vida no campo, por já terem nascido nas cidades. Eles já não podem mais se sustentar com o trabalho em suas terras como seus pais ou então nem possuem mais terras. Um conjunto de processos profundos que vão amadurecendo no gigante asiático do Extremo Oriente.

Marcado como:
China / greve / repressão