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A onda

Por: Henrique Canary, colunista do Esquerda Online

A luta de classes às vezes é como o amor. tem razões que a própria razão desconhece. Quando todos pensavam que a situação política aberta com as gigantescas mobilizações de junho de 2013 havia se encerrado devido à diminuição do tamanho dos atos, o conflito social encontrou outros meios de se expressar. No final de 2013, quando os atos de rua já estavam bastante esvaziados, ocorreu no país um importante ascenso grevista, que teve o setor da educação à frente, e que se eternizou na célebre imagem da professora carioca enfrentando a tropa de choque na Avenida Rio Branco.

Também no final daquele ano vieram as ocupações das câmaras de vereadores, que trouxeram a juventude estudantil novamente à cena política. Veio a luta por encontrar Amarildo, que colocou no centro do debate nacional o problema da relação da polícia com a população negra das favelas. Vieram – quem poderia prever? – os rolezinhos, que, de simples diversão de adolescentes, se transformaram em atos de resistência política, cultural e racial. Vieram formas ainda embrionárias de organização dos lutadores sociais, como o Bloco de Lutas de Porto Alegre e a Assembleia Horizontal de BH.

A esquerda socialista não previu nenhum desses fenômenos. Em alguns, se localizou um pouco melhor; em outros, nem isso. Em geral, como sabemos hoje, a onda que se levantou em 2013 passou, e deu um caixote na esquerda socialista, que ainda está zonza, tossindo e tentando expelir a água engolida.

No momento em que escrevemos estas linhas, as manifestações pelo Fora Temer parecem ter diminuído de tamanho e importância política. O sequestro dos atos, promovido pelo PT, não podia deixar de ter consequências. A última manifestação em São Paulo já não teve o caráter espontâneo que tinha tido há pouco mais de uma semana. Contando com a participação de Suplicy, Lindbergh Farias, Haddad, Rui Falcão e outras personalidades petistas, se pareceu muito mais com um comício eleitoral enfadonho e previsível do que com um ato para derrubar um presidente golpista. É claro que é preciso continuar indo ao atos e disputando com o PT o caráter das manifestações. Mas justamente para que essa disputa seja possível, é preciso saber que isso está acontecendo.

O fato é que mesmo que se consolide uma diminuição do tamanho dos atos, isso ainda não quer dizer dizer que a situação política voltou ao seu ponto inicial. Não se pode descartar que ocorra algo parecido ao que aconteceu em 2013, em que os movimentos da consciência das classes e a disposição de luta encontraram caminhos alternativos.

A luta pela derrubada de Temer, por exemplo, não exige apenas atos de rua. Exige também um plano de ação contra cada ataque concreto: os cortes no orçamento, as privatizações, as reformas trabalhista e previdenciária. Há hoje um incipiente processo de mobilização em várias categorias de trabalhadores. Algumas já entraram em greve, como bancários. Outras ensaiam sair à luta. Não deveríamos descartar que uma parte do descontentamento com o governo passe pela mobilização de categorias específicas, às vezes com pautas puramente salarias, às vezes com pautas políticas.

Há também um processo eleitoral em curso. Ao contrário do que gostariam o governo e seus apoiadores, estas eleições têm apresentado uma pauta fortemente nacionalizada. Em muitos momentos, o impeachment e suas consequências têm sido o centro da disputa. Este debate, muito mais do que as questões específicas de cada cidade, abre grandes oportunidades para a esquerda socialista apresentar sua visão de Brasil e suas saídas para a crise que o país enfrenta.

O fato fundamental é que o impeachment de Dilma Roussef, justamente porque foi um golpe palaciano, não tocou sequer a superfície das enormes contradições que vive o Brasil. Exatamente por isso não é capaz de encerrar nenhuma crise. Ao contrário, o mais provável é que tenha apenas aberto todo um período de novas e sucessivas crises. Cada uma delas com diferentes dimensões, duração e profundidade.

Cada militante socialista deveria ligar agora seu sonar e escanear cada centímetro quadrado de cada local de trabalho, estudo e moradia. É preciso estar atento aos movimentos mais profundos. Olhar em todas as direções e valorizar cada balançar da água. Não há nenhuma garantia de que uma nova onda se formará. Mas ela pode se formar. E pode vir de qualquer lugar.