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EDITORIAL

Memórias da prisão após o golpe no Chile

Operários presos no Estádio Nacional do Chile.

Por: Enio Bucchioni

O dia 13 de setembro de 1973

“Viva a IV Internacional”! Pensei em gritar essa expressão bem alto antes de ser fuzilado, enquanto saía do quarto da pensão onde eu morava escoltado por vários militares do exército chileno. Poucos minutos antes ouvi alguns tiros no quintal da casa, para onde Augusto, jovem burocrata da ala direita do PS chileno que ocupava um quarto vizinho ao meu, interventor numa fábrica sob jurisdição do governo Allende, havia sido levado. Pensei que o haviam fuzilado ali mesmo e eu seria o próximo.

Era o dia 13 de setembro de 1973, cerca de 7h da manhã. Nessa madrugada, houve um grande tiroteio no bairro e pela manhã os militares entraram em todas as casas em busca dos, possivelmente, franco-atiradores. O toque de recolher decretado por Pinochet, proibição de todo cidadão de sair de casa, vigorava desde o dia 11, começo do golpe, até 12h, do dia 13. Até hoje não sei se atiraram no Augusto com balas de festim ou se atiraram para o alto.

Ao sair para a rua, um militar me mandou correr. Não o fiz. Desde o Brasil sabia que correr significava levar um tiro nas costas durante a pretensa ‘fuga’, tantas vezes isso ocorreu por aqui. O soldado foi me empurrando para dentro de um ônibus e ficamos, Augusto e eu, deitados no chão do veículo. No entanto, esse milico, por mero prazer pessoal, passou levemente a ponta da sua baioneta sobre minha perna direita, abrindo um pequeno corte superficial de uns dois centímetros.

O Chile era um país imensamente machista naquela época. Monica e a namorada do Augusto foram liberadas em seguida. Em geral, poucas mulheres permaneceram detidas quando se compara ao total de prisioneiros.

O dia 11 de setembro de 1973

Eu vivia com uma companheira diretora da UNE chilena, militante do MAPU, Movimiento de Acción Popular Unitária, uma pequena organização reformista e socialista com 10 mil militantes, mesmo número que o MIR, pró-cubano e adepto da guerrilha. Lembremo-nos que o PC tinha 200 mil filiados e, ou militantes, o PS, partido muito mais à esquerda que o PC, 400 mil. Tudo isso num país 20 vezes menor em população que o Brasil de 2016.

Acordamos a tempo de escutar o último discurso do presidente Allende pelo rádio, onde ele não chama a população, os trabalhadores e a juventude a reagirem frente ao golpe, mas sim afirma que foi traído pelos comandantes militares apesar dele sempre ter cumprido com a Constituição e com as leis vigentes e que a História o julgará e aos golpistas. Lembremos que Pinochet foi seu ministro do exército nos últimos meses.

Fomos para o Instituto Pedagógico da Universidade do Chile onde eu trabalhava e estudava no Departamento de Matemática. Com algumas centenas de estudantes seguimos para uma grande obra da construção civil ali por perto onde trabalhavam centenas de operários. As lideranças do governo ali presentes nos disseram que viriam armas para a resistência ao golpe. Pinochet decretou o Toque de Recolher a partir das 17h, ou seja, quem fosse apanhado nas ruas seria imediatamente preso.

Eu nunca havia aprendido a atirar, nem Monica. Mas, há momentos na vida onde os princípios marxistas imperam sobre nossas atos. Ficaria ao lado daquela multidão proletária e juvenil para o que desse e viesse, pois sabia que o golpe era contra a minha classe social e eu estava ali junto a ela, apesar de nunca haver apoiado o governo de Frente Popular de Allende, o maior reformista radical que vi em minha vida. No entanto, não era momento de me omitir, nem de fugir. Aprenderia rapidamente a atirar, pensei.

Esperamos pelas armas até meia-hora antes do toque de recolher. As armas não chegaram até hoje, nem lá, nem em nenhum rincão do Chile.

À noite, lá na pensão, conversando com Monica, concluí que, se houvesse resistência, seria dispersa e pontual. Disse a ela minha decisão: daqui para a frente entrarei organicamente na IV Internacional.

Até então, eu acreditava que poderia que poderiam e deveriam os trotskistas chilenos tentarem construir um partido revolucionário junto com o MIR – Movimiento de Izquierda Revolucionário, pró-cubano e guerrilheiro – e as imensas alas esquerdas radicalizadas do PS e da Juventude Socialista que defendiam publicamente ‘la revolución ininterrumpida’ contra o PC stalinista. Tal não aconteceu.

Do dia 13 de setembro até as vésperas do Natal de 1973

Fui levado a uma delegacia e ao Ginásio do Chile, que era uma praça de esportes fechada, algo parecido com o ginásio do Ibirapuera em SP. A parte interna desse local já estava lotada por alguns milhares de prisioneiros. Assim era porque no decorrer do Toque de Recolher os militares com metralhadoras, carros-tanque, helicópteros e todo tipo de armamento entravam nas fábricas, onde os operários esperavam pela resistência que não houve, e os prendiam às centenas de uma só vez.

Eu fiquei na parte externa a esse ginásio, numa ampla sala, ao lado de umas cem pessoas. Augusto foi levado embora por um oficial do exército. Vira e mexe escutava tiros vindo do interior do ginásio. Victor Jara, um dos cantores mais famosos daquela época, foi assassinado na frente de todos. Foi nesse local que me encontrei com o amigo e companheiro Dirceu Messias, cuja história, a do Anel Azul, é contada em outro texto e vídeo pela minha filha Xenya.

Passados uns poucos dias o ginásio ficou pequeno e fomos levados para o Estádio Nacional, o maior campo de futebol do Chile com capacidade para 47 mil pessoas, ficando ele parcialmente lotado.

A cada momento chegavam centenas de operários. Eles diziam que eram de tal ou qual fábrica, ou seja, ali era o campo de concentração onde os gorilas golpistas aprisionaram a vanguarda da classe operária chilena de Santiago. Era perfeitamente nítido o caráter de classe do golpe.

Havia também alguns milhares de estrangeiros exilados, entre os quais, algumas centenas de brasileiros.

Operários presos no Estádio Nacional do Chile.
Operários presos no Estádio Nacional do Chile.

Nos primeiros dias a fome foi se instalando entre todos os detidos. Ficamos algum tempo sem nada comer. Dias depois nos deram café com leite e um pão pela manhã e ao anoitecer. Às vezes nem isso. Assim, no local onde fiquei tive a companhia de mais seis brasileiros exilados. Fiquei responsável para pegar a comida junto aos militares do setor. Um dia o soldado que distribuía a comida me deu,sem querer, um pãozinho francês a mais. A fome era tanta que nos obrigou a discutir e a deliberar o que faríamos com ele. Um dos brasileiros, um guerrilheiro que havia sido banido pela Ditadura no Brasil, propôs que o pãozinho extra fosse distribuído na sorte. Argumentei que devíamos dividir o pãozinho em sete pedaços iguais. Minha proposta foi vencedora e me coube a dificílima tarefa de cortar com as mãos o pãozinho em sete pedaços iguais.

Estabelecemos também que a meta de cada um deveria ser guardar algum pedaço de pão no bolso todos os dias, de modo que, se houvesse qualquer falha dos militares na distribuição da comida, teríamos algo no bolso para manter nossas energias. Ao cabo de uma semana, todos nós tínhamos no bolso um pãozinho inteiro de reserva para o caso de alguma necessidade.

Aos poucos começaram a nos servir um almoço bem simplório, mas que nos parecia fantástico: comida salgada. Nunca na vida me pareceu tão gostoso um prato de lentilhas.

Fiquei talvez uns 15 dias sem fumar. Foi a única vez em minha vida adulta que parei de fumar diariamente, até que um operário chileno inventou um dos cigarros mais maravilhoso que já traguei. Ele pegou várias cascas secas de banana jogadas ao chão pelas torcidas de futebol em jogos passados e com a ajuda de um canivete retirou toda a parte branca da casca. Parecia uma farinha. Daí então ele pegou restos de jornal velho deixados no chão ,fez uma espécie de funil, colocando essa ‘farinha ‘ em seu interior. Que delícia saborear novamente um belo cigarro!

O encapuçado e os torturadores brasileiros.

Não sei mais quanto tempo passou até um dos dias mais tensos vividos pelos milhares de prisioneiros. Veio uma ordem dos militares para que todos ficassem em pé. De repente apareceu um cara com um capuz preto na cabeça nas margens do alambrado que separa o público do campo. Ele foi andando muito lentamente ao redor das dimensões do campo e com o dedo em riste apontava para algum prisioneiro. Em seguida, algum soldado retirava a pessoa apontada do nosso convívio e o encapuçado voltava a andar. Era um dedo-duro,um infiltrado. Seria alguém camuflado dentro de algum partido de esquerda? Seria algum brasileiro, como depois soubemos que havia infiltração entre os exilados? Pensávamos que quem fosse ‘dedado’ provavelmente seria torturado ou fuzilado. Quando ele passou bem perto onde estava, eu quase não mais respirava.

Nestes dias fiquei sabendo da quase certa morte do meu grande amigo e companheiro do Ponto de Partida, o Tulio Quintiliano. Também acabou morrendo o Wanio José de Mattos, oficial militar brasileiro que havia aderido à guerrilha no Brasil e que foi detido conosco no Estádio Nacional. Wanio sofreu fortíssima prisão de ventre e, ao não receber tratamento médico, acabou por falecer.

Quando chegamos a este estádio, fomos alvo de um interrogatório ultra sumário. Nome,endereço, profissão, o que fazia no Chile. Um ou outro levaram algumas porradas. Lembro-me de um operário chileno que, ao ser espancado, era interpelado por um milico: “Diga a verdade, você é do MIR!” O coitado do detido, respondia aos berros: “No soy del MIR. Soy del Partido Socialista”.

Ao final desse interrogatório, cada estrangeiro era classificado nas seguintes categorias: liberdade condicional; expulsão do país; ir para Justiça Militar. Quase todos foram para a segunda categoria, expulsão do país, já que o golpe repercutira no mundo inteiro. Houve uma imensa solidariedade internacional, bem como, ao não haver resistência dos partidos reformistas, a situação ficou bastante confortável para os golpistas. Assim, não havia perigo que os estrangeiros exilados pudessem engrossar um movimento de resistência. A solução era expulsá-los do país, para bem longe, já que nenhum governo latino-americano aceitou nossa entrada em seu país. Apenas alguns poucos países europeus nos acolheram.

No entanto, eu fiquei sob Justiça Militar. Não sabia o por quê. Quase todos os brasileiros foram expulsos, entre os quais muitos deles banidos , vários que tinham participado das guerrilhas e até mesmo alguns que tinham feito treinamento guerrilheiro em Cuba ou na China.

Após o encapuçado, houve um outro momento de grande tensão entre nós. Nesse momento os militares já tinham colocado os brasileiros detidos todos juntos num determinado local do Estádio. O mesmo com os uruguaios, argentinos e demais nacionalidades.

É que começou um interrogatório particular , pois a Ditadura brasileira enviou uma equipe especial de torturadores e interrogadores para transmitir ‘know how’ à repressão chilena. Seis companheiros foram chamados e identificaram os policiais brasileiros. O caso foi rapidamente transmitido à Cruz Vermelha Internacional que já atuava no Estádio e o interrogatório foi interrompido. No entanto, a equipe repressiva brasileira permaneceu no Chile por não sei quanto mais tempo.

Alguns momentos inesquecíveis

Lúcio Flávio, um dos banidos pela Ditadura, um belo dia teve uma ideia brilhante. Convenceu a todos os brasileiros detidos que devíamos cantar, pois o canto seria a forma alegre e confiante de enfrentar a prisão e os militares presentes no Estádio. Ele escolheu a lindíssima música do desfile da escola de samba do Salgueiro de 1969, a “Heróis da Liberdade’. Centenas de vozes a entoaram com força total nos lábios e nos corações.

As outras nacionalidades entenderam o nosso recado e cada uma delas cantou a sua música. Lembro-me dos bolivianos cantando “El Condor Pasa”. Até hoje, passados 43 anos, me dá arrepios ao lembrar este episódio. Devo confessar, caro leitor, que várias lágrimas espalham-se pelo meu rosto enquanto escrevo este episódio e vejo o condor livre,voando pelos Andes, ao escutar nesse momento essa música no youtube.

Fiz imensa amizade com os ex-guerilheiros Otto Brokes e Ivens Marcheti. Nos quase três meses que ficamos detidos, o Estádio foi se esvaziando, os estrangeiros expulsos, e o chilenos removidos para outras prisões ou liberados. Eu tinha apenas 25 anos. Otto e Ivens eram cerca de 15 anos mais velhos. Sobre o meu amigo Otto, eu o reencontrei dois anos mais tarde em Portugal da Revolução dos Cravos. Logo depois ele partiu para Angola para lutar ao lado dos guerilheiros do MPLA . Ivens, barbaramente torturado no Brasil, foi banido ao ser libertado em troca do embaixador norte-americano sequestrado no Brasil em 1969 pela guerrilha. Conversávamos sobre tudo o que diz respeito à vida e à militância em prol do socialismo. Há amizades que são infinitas, que nos marcam para sempre.

Nas últimas semanas de prisão, ficamos apenas em cinco brasileiros detidos. O Estádio estava quase todo esvaziado. Otto e eu chegamos a pensar na hipótese de que nós reviveríamos o famoso caso de Sacco e Vanzetti, ativistas anarquistas inocentes mas condenados à morte e eletrocutados nos EUA na década de 20 para servirem de lição para outros militantes.

Quem era o Augusto, aquele da pensão?

A família da Monica era o próprio retrato dos anos do Chile de Allende. Seu pai era pró Partido Nacional, uma espécie de DEM aqui do Brasil. Sua mãe era simpatizante do PC. A irmã mais velha era casada com um senador do MAPU. Os dois irmãos mais novos eram do Patria y Libertad, organização com características fascistas.

A irmã do meio , a Angélica, era da Democracia Cristã, uma espécie de PSDB atual. Além disso, Angélica era uma linda jornalista que fazia uma espécie de Jornal Nacional da Globo chilena, ou seja, ela era super conhecida, seria como é a Fátima Bernardes. Evidentemente ela foi a favor do golpe, mas como Monica era sua irmã, ela se prontificou a colaborar com minha expulsão do Chile, visitando os mais diversos militares e conseguindo até mesmo entrar no Estádio Nacional para conversar com o oficial responsável por aquele campo de concentração. Nunca a conheci pessoalmente, mas com certeza muito ou tudo sobre minha libertação e expulsão do Chile devo a ela, apesar de eu estar em ‘Justiça Militar’.

Na primeira ou segunda semana de dezembro saí do Estádio e fui parar na embaixada sueca. Em vésperas do Natal, junto com 48 outros latino-americanos, segui para o refúgio na França.

Durante a viagem tinha um sentimento totalmente contraditório. Estava imensamente feliz por sair da prisão, por estar vivo. Por outro lado sentia-me completamente triste pela morte do Tulio, que era quatro anos mais velho e foi um dos maiores amigos que tive na vida. A tristeza também se devia ao fato dos trabalhadores e a juventude chilena serem massacrados impiedosamente por nossos inimigos de classe, quando era plenamente possível o inverso, ou seja, a expropriação da burguesia. Essa viagem significava também a terceira derrota consecutiva da esquerda brasileira, depois de 1964 e das guerrilhas de 69 em diante. A América Latina iria ser tomada quase completamente por ditaduras pró-imperialistas. Eu estava indo para outro continente distante e forçado a ir para um outro país contra a minha vontade. Também não sabia o que tinha ocorrido com os demais companheiros do Ponto de Partida. Tinha em minha alma o sabor de uma grande derrota. Me sentia apenas como um ser sobrevivente.

Fiquei na França apenas um ano, onde tive a imensa sorte de militar ,como havia prometido a mim mesmo, num pequeno núcleo da IV Internacional junto com um dos meus maiores mestres, o legendário Hugo Blanco, e mais dois companheiros do saudoso PST argentino. Éramos todos filiados à minoria do SU, secretariado unificado da IV. Foi Hugo Blanco, após viajar e fazer uma série de palestras após o fim da ditadura em Portugal em 1974, quem me orientou a ir para Lisboa , encontrar os camaradas do PRT e com eles construir a IV.

Em Lisboa, num belo dia, encontrei-me casualmente com a antiga namorada do Augusto, aquele mesmo da pensão em Santiago. Já não mais me recordo do nome dela. No entanto, ela me revelou o segredo do Augusto. Quando ele foi preso, no seu quarto da pensão foram encontradas armas e balas, pois Augusto havia feito Academia Militar . Essas armas do Augusto, no relatório policial, foram remetidas a mim, como se eu fosse o dono delas. Por isso fiquei em ‘Justiça Militar’.

É que Augusto tinha algo importantíssimo em um de seus sobrenomes: Pinochet!
Ele era sobrinho do ditador Augusto Pinochet !

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prisão / ps / trotskismo