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EDITORIAL

Uma nota sobre a reforma da previdência

Por Valério Arcary, de São Paulo

A verdade é como o azeite: vem sempre ao de cima.

Sabedoria popular portuguesa

A previdência tem sido um dos fatores que explicam porque, desde 1988, a classe dominante logrou a longevidade de um “pacto social” informal sem o qual a estabilidade do regime democrático eleitoral, o presidencialismo de coalizão não teria sido, talvez, possível. Pelo menos, teria sido muito mais instável.

Formou-se a partir de 1988, como resultado da Constituinte eleita em 1986, uma seguridade com três grandes serviços: a saúde pública, a assistência social e a previdência. Seu alcance e dimensão, mais de 31 milhões de pessoas, explicam muito mais sobre a redução da miséria que o Bolsa-família. Não é que os benefícios sejam, em sua maioria, absurdos. São uma miséria. Os aposentados somam um pouco mais que 31 milhões. O valor médio em janeiro da aposentadoria urbana R$1.415,81, da rural, R$ 881,11. Agora a classe dominante decidiu que precisa reformá-la, porque consideram que é demasiado cara. Não é. Mas em escala tem um preço: custa 14% do PIB.

Tudo indica que a primeira grande contrarreforma do governo Temer será a introdução da idade mínima na previdência social. O projeto de reforma é muito mais amplo, porque incorpora propostas como o fim do diferencial da aposentadoria para as mulheres, o fim das aposentadorias especiais como a dos professores, o aumento das contribuições mensais, fim da pensão integral, etc. Estaríamos diante de uma equação que não fecha: não há solução possível a não ser o corte de direitos, a redução do valor dos benefícios e a elevação de impostos, ou tudo isso junto de uma vez só.

Temer tem apoio unânime da classe dominante para esta reforma da previdência. Por quê? Por razões táticas e estratégicas. No prazo mais breve porque há uma forte pressão para garantir um superávit primário que garanta a rolagem da dívida pública sem sobressaltos. Na longa duração porque o colapso da previdência pública abre o caminho para a previdência privada, um dos principais produtos bancários que teria potencialmente, possibilidades de expansão.

Mas dizem que há razões “técnicas”. Os argumentos mais poderosos são dois: (a) o déficit da previdência não para de aumentar porque as receitas seriam insuficientes diante de gastos com benefícios crescentes; (b) o aumento da expectativa de vida diminuirá o número de trabalhadores na ativa fazendo contribuições em proporção daqueles inativos.

Acontece que não é verdade que haja um déficit crônico na previdência social. Depende de como se fazem as contas. O cálculo do déficit previdenciário que nos é bombardeado todos os dias não está correto. O cálculo considera apenas a receita de contribuição ao INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social).  Essa, no entanto, é uma equação falsa.

O resultado dá um aparente déficit, mas isso é uma manipulação de números. Por duas razões: (a) os dois primeiros componentes da seguridade – saúde e assistência social – são direitos sociais e serviços públicos, como a educação ou segurança pública, e não contam com receitas próprias, sendo financiados pelos tributos que os constituintes criaram para esse fim (as contribuições sociais); (b) não se pode desconsiderar a DRU (Desvinculação das Receitas da União), um recurso legal vigente desde o governo de FHC que permite que o governo não aplique na previdência uma parte dos tributos que são recolhidos em seu nome, e que vieram sendo desviados para o pagamento de juros aos credores da dívida pública.

Tampouco é verdade que seja possível antecipar, dentro de margens de erros mais ou menos seguras, a evolução das variáveis demográficas em projeção para os próximos vinte anos. Muito menos nos próximos quarenta anos. Esquecem, convenientemente, que a expectativa masculina é inferior em cinco anos à feminina, e que a expectativa de vida daqueles que sobreviveram no trabalho manual mais pesado e sacrificado, ou seja, a classe operária é ainda menor em cinco anos. Moral da história: trabalhar até morrer. Ou morrer alguns poucos anos depois de se aposentar.

O aumento da expectativa de vida pode estagnar, porque partia de níveis muito baixos. E já se alcançou grande capilaridade na distribuição de medicamentos baratos contra as doenças crônicas como pressão alta e diabetes, responsáveis pela mortalidade precoce. A redução nas taxas de fecundidade feminina pode, também, estagnar ou eventualmente voltar a se elevar dependendo da flutuação da situação econômica, porque a queda foi vertiginosa.

Esta argumentação “técnica” não tem solidez técnica alguma. Em primeiro lugar, as variáveis não são somente estas duas. Há que considerar não somente a variação do perfil demográfico, ou seja, a redução da taxa de fertilidade e o aumento da expectativa média de vida, mas, também: (a) o aumento ou diminuição do grau de formalização do trabalho no setor privado, ou seja, a proporção daqueles com carteira de trabalho – hoje são 38 milhões, mas eram mais de 43 milhões em 2012 – sobre o estoque de população, potencialmente, ativa, que hoje são 103 milhões; (b) o aumento ou diminuição da empregabilidade no setor público; (c)  a variação do número de contribuintes em função do aumento ou diminuição do desemprego, ou seja, as oscilações no aumento ou contração do PIB; (d) o aumento, redução ou estagnação dos salários, porque as contribuições são proporcionais; (e) as variações no aumento da produtividade do trabalho

Este tema só pode ser bem compreendido em um contexto. O modelo de regulação econômico-social realizada pelos Estados sul-americanos, nos últimos dez anos, entrou em colapso. Não é somente no Brasil. O crescimento econômico entre 2004 e 2008 tinha permitido a implantação de políticas sociais focadas, e a acumulação inédita, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, de reservas cambiais substantivas. Este processo foi interrompido de forma, ao que parece irreversível, depois da desvalorização dos preços das commodities. A economia chinesa desacelerou; a norte-americana continua crescendo, mas com taxa de 2,5% ao ano e viés de baixa; e a europeia gira em média a 1% ao ano. E caminhamos para mais uma crise na forma de recessão no centro do sistema que deve chegar, provavelmente, nos próximos anos. As pressões sobre os balanços de pagamentos aumentaram, a tendência de desvalorização das moedas nacionais ficaram muito mais fortes, as pressões inflacionárias aumentaram, e o desemprego disparou.

Resumo da ópera: todos sabem que a introdução da idade mínima de 65 anos encabeça a proposta de reforma do governo Temer. Já era a prioridade do projeto de reforma sob o governo Dilma. O que está em debate, portanto, é de uma crueldade espantosa. O objetivo é fechar a porta da aposentadoria antes dos 65 anos para aqueles que conseguiram empregos com carteira assinada.

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