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EDITORIAL

De aliados a opositores: ressurge o conflito entre cooperativistas mineiros e o governo de Evo Morales

Independent miners block a main highway during a protest against Bolivia’s President Evo Morales’ government policies, in Panduro south of La Paz, Bolivia, August 25, 2016. REUTERS/David Mercado TPX IMAGES OF THE DAY

Por Joana Benario

25 de agosto foi um dia de luto para o governo de Evo Morales. Nesse país andino normalmente sacudido por fortes conflitos sociais e manifestações tradicionalmente marcadas pelo som das dinamites dos mineiros, pela primeira vez em meio século, um alto representante do Estado foi assassinado em consequência de um protesto social.

Desde o início daquela semana, milhares de cooperativistas mineiros realizaram jornadas de mobilização e bloqueios de caminhos na estrada central La Paz-Oruro. A tentativa de desbloqueio das estradas centrais pelas forças do governo resultou em dezenas de feridos e detidos.

Seguindo essa espiral de violência, na quinta-feira, os cooperativistas tomaram como refém o vice-ministro do Regime Interno, Dr. Rodolfo Illanes. Ele havia se deslocado com apenas um ajudante ao lugar de bloqueio para tentar abrir um diálogo. Porém, foi preso pelos mineiros que o lincharam em represália pela morte de dois mineiros pelas forças policiais.

Os cooperativistas se mobilizaram contra a nova Lei Geral de Cooperativas nº 356 que prevê a sindicalização no setor cooperativista. Isso impõe a esse setor um respeito mínimo aos direitos trabalhistas. Milhares de peões que trabalham para os cooperativistas terão direito a se sindicalizar para defender seus direitos. É uma medida “progressiva” e de baixo custo para o governo. Com ela pretendia recuperar sua imagem com relação a defesa dos direitos trabalhistas e contra a flexibilização do trabalho.

Entretanto, já estava previsto que essa medida seria de aplicação somente para as cooperativas de serviços (água, financeiras, etc). Então, qual é o fundo do conflito com os cooperativistas mineiros?

A mineração boliviana se compõe de 3 setores: a mineração estatal (7.500 trabalhadores), a mineração transnacional (8.000 trabalhadores) e o setor das cooperativas mineiras, o mais numeroso com seus 120.000 afiliados. O setor cooperativista mineiro tem se expandido muitíssimo a partir dos anos 90, aglomerando milhares de ex-mineiros demitidos da mineração estatal, os quais se transformaram em pequenos e médios empresários.

Num recente artigo intitulado “Cria cuervos” (periódico “Pagina Siete”, 19/08/2016), Rafael Puente, ex-ministro do Regime Interno, descreve claramente o setor: “as cooperativas mineiras não tem nada de cooperativas: na realidade são empresas, cujos donos são os chamados sócios (e nem sequer todos) que manejam e exploram a uma enorme massa de operários que não têm nem seguro social, nem seguro industrial, nem aposentadoria, nem nada. E nem sequer falamos das mulheres e do trabalho infantil.” (*)

Trata-se, portanto, de um setor em que a precariedade e a super-exploração são muito extensas. Existe uma subcontratação impressionante, do sócio menor que contrata a força de trabalho do peão, que, por sua vez, subcontrata outro, até o último da cadeia, um quase escravo que trabalha só para comer e pagar dívidas.

O desenvolvimento das cooperativas mineiras se deve a este tipo de trabalho inseguro, precário, mal remunerado e, inclusive, de trabalho não assalariado, em proveito exclusivo dos sócios-empregadores. O próprio Rafael Puente é quem conclui: “Ou seja, são empresas de capitalistas do mais primitivo estilo explorador, do qual se supõe que este novo Estado Plurinacional quer liberar-se.” (idem)

Desde o início, o setor dos cooperativistas mineiros foi um dos pilares da base social de apoio do governo de Evo Morales. O setor desenvolveu com ele uma relação ambivalente de apoio e exigências: protagonizaram vários conflitos durante esses anos e quase sempre saíram vitoriosos. Recordemos o conflito de 2006, ainda no início do governo de Evo, quando cooperativistas mineiros atacaram os mineiros estatais de Huanuni. Eles queriam se apropriar de jazidas de estanho na colina Posokoni, pertencente à empresa estatal COMIBOL.

Esse conflito deixou um saldo de 16 mortos e a renúncia do então ministro da mineração, representante do setor cooperativista. Os mineiros cooperativistas, por sua, vez foram integrados na Comibol. Neste caso, o resultado foi uma clara vitória dos mineiros estatais.

O Governo de Evo, contudo, continuou dando uma série de concessões e favores ao setor cooperativista. Por exemplo, o setor conseguiu a isenção do pagamento de impostos. Ao mesmo tempo em que cedia às cooperativas, seguiu privatizando o setor da mineração estatal. Havia também uma grande impunidade com relação à flexibilização trabalhista.

Querendo aproveitar o leve aumento dos preços dos minérios, os cooperativistas passaram a exigir do governo o direito de negociar e de estabelecer acordos comerciais de maneira direta com as empresas transnacionais, sem intermédio do Estado. Com isso querem entregar mais concessões para a exploração das multinacionais. Não por acaso, uma grande cooperativa de ouro reclama uma área de 250 mil hectares na Amazônia. Apresentam também uma longa lista de exigências relacionadas à apropriação de mais recursos do Estado (água e outros) sem respeito às normas ambientais.

De toda forma, o conflito entre cooperativistas e o governo toma um novo rumo com o assassinato do vice-ministro. Desta vez, o setor cooperativista foi demasiado longe. Os dirigentes mineiros cooperativistas estão presos e o governo promete investigação a fundo do caso.

Esses trágicos acontecimentos abrem uma reflexão profunda. Exige que todos os trabalhadores bolivianos discutam o arco de alianças estratégicas que sustenta o governo. Ao mesmo tempo em que fomenta uma maior presença das transnacionais no país, o governo privilegia o desenvolvimento de setores de pequenos e médios empresários, como o cooperativismo mineiro, os comerciantes informais, setor cocaleiro e outros.

É passada a hora de rever essa estratégia. É necessário fortalecer a economia do país defendendo a soberania nacional a começar pela nacionalização dos recursos naturais. O setor da mineração precisa ser estatizado sob o controle dos trabalhadores. Essas medidas são fundamentais para erguer a economia do país e colocá-la de acordo com os interesses e as necessidades dos trabalhadores, dos camponeses e dos povos indígenas.

Foto: David Mercado/Reuteurs

Marcado como:
bolívia / evo morales