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CULTURA

Sinhá: uma canção para não esquecer

Suely Corvacho, de São Paulo, SP

 

Composta por João Bosco e Chico Buarque, Sinhá é a última música do CD intitulado Chico (Biscoito Fino), gravado em 2011. Trata-se de uma obra prima que condensa o que há de mais inovador na literatura contemporânea a um tema que envergonha a História do Brasil: a escravidão.

Ganhadora do 23º Prêmio de Música Brasileira 2012, Sinhá é definida por Bosco como um afro-samba-milonga, com o seguinte acréscimo: “milonga porque conta uma história”. A definição remete a um dos marcos da Música Popular Brasileira: Os Afro-sambas, título do segundo LP de Baden Powell e Vinicius de Moraes, gravado em 1966, no qual se fundem vários elementos da musicalidade africana (produzidos por atabaques, afoxés e outros) ao samba. Já a milonga é um gênero musical popular na região do rio da Plata no final século XIX, inspirada “na habanera cubana e no tango espanhol e absorvidos pelo tango argentino”, conforme Houaiss.

Para essa síntese musical, Chico Buarque cria uma letra inesquecível. Sinhá começa de chofre, sem mediações, com a fala de um escravo procurando convencer o senhor de engenho de que não deve ser penalizado. Acusado injustamente de ter visto Sinhá se banhar no açude, o escravo mostra o contraste entre sua inocência e os cruéis castigos que o aguardam: ser levado ao tronco, ter seu corpo talhado, ter os olhos furados. O ouvinte fica completamente comovido com o triste destino do escravo. No final do poema, o eu lírico substitui a voz do escravo e se apresenta como cantor descendente de duas linhagens: a do cruel senhor de engenho e a do escravo. Essa revelação, contida numa arquitetura da ‘história dentro da história’, obriga a releitura de todo o poema, abrindo espaço para uma série de reflexões.

História dentro da História

O recurso da ‘história dentro da história’ é largamente encontrado na literatura, a exemplo de Mil e Uma Noites, em que Sherazade posterga sua morte narrando uma nova aventura, noite após noite. Ou Fédon, de Platão, no qual o diálogo entre Fédon e Equécrates acolhe o diálogo entre Sócrates e Cebes. Ou ainda, no século XVI, quando Shakespeare adota o recurso na maior parte de suas peças, sendo Hamlet a mais conhecida.

Este recurso na música ‘Sinhá’ é adotado para desenvolver dois enredos: o do eu lírico, “cantor atormentado”, que, no tempo presente, apresenta sua origem; e o do escravo, no passado, que implora a seu senhor que não o castigue. No entanto, o artifício apresenta uma novidade nas mãos de Chico, é usado com os objetivos da literatura contemporânea. No início do século XX, o pacto entre autor e leitor muda radicalmente. Reconhecendo que a obra para entretenimento colaboraria para a alienação, os escritores passam a criar artifícios para retirar o leitor da situação passiva, reservando-lhe o papel de co-autor, responsável por completar o sentido da obra. Sinhá estabelece o mesmo pacto, à medida que conduz o ouvinte à adesão total da versão do escravo e, depois, mostra que as suspeitas do senhor de engenho tinham procedência. Diante da nova informação, o ouvinte é obrigado a voltar ao início do poema para ouvi-lo, desta vez, com outros “olhos/ouvidos”.

Outro aspecto que merece atenção é o fato de o eu lírico definir sua obra como conto, conforme vemos: “E assim vai se encerrar/ O conto de um cantor/ Com voz do pelourinho/ E ares de senhor”. No entanto, a letra, próxima de um poema narrativo, apresenta uma dinâmica teatral, uma vez que as vozes das personagens, escravo e poeta, são apresentadas sem a mediação do narrador. Portanto, a definição procura romper os limites dos gêneros (poema, conto, peça teatral), procedimento tão a gosto dos modernistas.

Sinhá e as vertentes historiográficas da escravidão no Brasil 

Não bastassem os procedimentos que evocam a literatura, a música traz à tona a polêmica historiográfica acerca da escravidão no Brasil. Conforme Lilia Schwarcz, no país se difundiu o mito de “o senhor de escravos como amigo e benevolente, ao lado de um cativo submisso e fiel” (1987, p.19). A interpretação do paternalismo do senhor de escravos, defendida por Gilberto Freyre em Casa-grande e Senzala (1933) e presente em relatos de viajantes estrangeiros desde o século XIX, como Saint-Hilaire, Jean-Baptiste Debret, entre outros, ancora-se na ideia de que o Brasil possui uma tradição de não violência, sendo seu caráter pacífico e harmonioso.

Opondo-se a essa visão, inúmeros pesquisadores procuram mostrar a inconsistência do paternalismo do senhor de escravos, entre os quais Florestan Fernandes. Para ele, no Brasil, não se observa o preconceito racial explícito e sistemático como nos Estados Unidos, por razões históricas que engendraram outra forma de preconceito, um tipo dissimulado e assistemático. Segundo Florestan, “o catolicismo criou um drama moral para os antigos senhores de escravos, pois a escravidão colidia com os ‘mores’ cristãos” (2006, p.173), surgindo daí a tendência a disfarçar a inobservância dos mores.

Na mesma perspectiva, porém de forma mais radical, há uma corrente historiográfica que destaca a atuação rebelde do escravo. Para esses, a luta, a organização e o papel ativo dos escravos ficam bem delineados quando se analisam os dados referentes aos quilombos, às rebeliões, às fugas, aos suicídios entre outras iniciativas. Entretanto, conforme Lilia Schwarcz, às vezes, alguns desses autores acabam caindo no extremo oposto, descrevendo o negro como um herói, de caráter impecável, bravura extrema e grande sentimento de solidariedade grupal.

“Sinhá” parece brincar com todas as vertentes historiográficas. Por um lado, percebe-se que o senhor de engenho não tem nada de paternalista, trata-se de um feroz senhor de escravos sem qualquer traço de piedade disposto a ferir e a cegar. Por outro lado, o escravo não é o cativo fiel, vítima submissa deste sistema perverso. Ele ludibria o senhor de escravos e colabora ativamente na miscigenação brasileira. Além disso, não há idealização, sua ardilosa resistência não é a do herói romântico de caráter impecável e bravura extrema.

Por fim, como o compromisso da Arte não é com a verdade, com o que ocorreu, mas com o verossímil, com o que poderia ter ocorrido, o poeta rompe com a versão tão frequente de que os afrodescendentes nasceram do senhor de engenho e das escravas da senzala ou da casa grande, frutos da violação. Aqui, os pais são outros, Sinhá e o escravo. Não é um espelhamento gratuito, trata-se de outra versão, na qual a violação é substituída pelo consentimento e ocorre nas barbas do proprietário. O fruto é o cantor, que herda o nome do senhor de engenho, e a arte de seduzir e enfeitiçar do escravo. E, para “provar” a veracidade do fato, o cantor atormentado marotamente leva o ouvinte a aderir à versão do escravo, ludibriando-o, assim como o escravo fizera com o senhor de engenho. Desta forma, seduzidos, ludibriados, surpresos, mas sempre encantados, descobrimos, dia após dia, uma nova particularidade neste clássico da música popular brasileira.

 

Referências bibliográficas:
CUNHA JR., Henrique. “Os negros não se deixaram escravizar: temas para as aulas de história dos afrodescendentes”. Revista Espaço Acadêmico nº 69. Fev. 2007.
FERNANDES, Florestan, PEREIRA, João, NOGUEIRA, Oracy. “A questão racial brasileira vista por três professores. REVISTA USP Nº 68. São Paulo: USP, dez. jan.fev. 2005-2006.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001.
PEREGALLI, Enrique. Escravidão no Brasil. São Paulo: Global Ed.,[s/d].
PINSKY, Jaime. A escravidão no Brasil. 8ª ed. São Paulo: Contexto, 1988.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.