Por Henrique Carneiro
Quando eu era criança, o mapa do mundo aparecia com dois grandes países que não tinham nomes, mas acrônimos: os EUA e a URSS. Eu achava que por serem tão grandes e tão poderosos eram chamados por aquelas estranhas siglas. As regiões misteriosas do extremo norte se confundiam com aquelas palavras estranhas que formavam uma união de repúblicas socialistas soviéticas.
A URSS não foi apenas um novo fenômeno político, mas representou uma fronteira para a nossa imaginação. Meu primeiro passaporte na década de 1970 proibia explicitamente de se viajar para lá (e também à China, ao Leste Europeu, à Cuba, Coréia do Norte e Yêmen!).
Mesmo que já se soubesse do caráter ditatorial e genocida do regime stalinista, o que foi reconhecido pelo próprio partido após o relatório Khrushev, de 1956, o massacre no mesmo ano da rebelião húngara foi a prova de que a desestalinização era apenas de fachada. A URSS era uma ditadura e um “cárcere dos povos”. Mais tarde, a invasão do Afeganistão mostrou que o império soviético decadente ainda se lançava em aventuras neocoloniais.
Sua existência suscitava também o maior terror da minha época de infância e de juventude: o medo da guerra nuclear. O mundo bi-polar e a corrida armamentista eram a ordem mundial que nos assombrava.
Mas, a URSS ainda era o produto da revolução de Outubro e, apesar dos acordos de Stálin com Hitler, foram os seus povos que deram o maior sacrifício na derrota do nazismo e, assim, a ela coube levantar a bandeira vermelha sobre os escombros de Berlim.
O colapso da URSS foi uma tragédia em câmara lenta. Começou com os massacres stalinistas da oposição, dos camponeses, do exército. Continuou com a desigualdade social e as relações com o capitalismo ocidental. Culminou, após sua dissolução oficial em 1992, já sob o governo independente da Rússia e dos demais 12 estados, com a “terapia de choque” do ministro Gaidar, de Yeltsin, imposta junto com o bombardeio do parlamento e, alguns meses depois, com o início da primeira guerra da Chechênia.
Em um ano se comemorará o centenário da revolução russa. Certamente, desta vez, o estado deve tomar as rédeas de uma data histórica, como já fez com os 70 anos da vitória sobre o nazismo, em 2015.
O atual estado russo, no entanto, é incapaz de reivindicar a herança revolucionária soviética e deverá querer reduzi-la à exaltação chauvinista grão-russa, com elementos nostálgicos monárquicos e devoção oficial diante do Patriarcado ortodoxo e do patriotismo militarista. Não haverá anticapitalismo oficial em Moscou no centenário de Outubro e não se mencionará as origens “comunistas” de boa parte dos dirigentes e milionários atuais.
O problema maior, no momento, é que a Rússia se encontra presente em duas guerras. Na Ucrânia, a situação permanece irresoluta, com as províncias rebeldes no leste do país e, nas últimas semanas, com tensões crescentes entre as frotas russa e ucraniana no Mar Negro, em torno da Criméia.
Na Síria, no entanto, é onde a Rússia mais se envolveu. Seus bombardeios passaram a utilizar bases na costa iraniana do Mar Cáspio e também passaram a lançar mísseis de barcos no Mediterrâneo. A batalha por Aleppo, em que a Rússia bombardeia junto com Assad os rebeldes que também combatem o Estado Islâmico, mostra que este último não é o seu principal inimigo.
São os curdos ao norte e os rebeldes de Aleppo as forças que realmente combatem o Estado Islâmico e, ao mesmo tempo, o governo Assad. E são estas as forças que tem recebido os piores ataques russos.
As terríveis fotos de crianças sendo retiradas de escombros cobertas de cinza, poeira e sangue são os emblemas da intervenção russa na Síria.
Se o espírito de 1917 de alguma forma ainda subsiste na alma russa, deverá ser num novo repúdio à guerra que poderá despertar alguma oposição à deriva atual do neoimperialismo russo. Já houve manifestações de dezenas de milhares contra o atual belicismo do governo russo. Resta observar se o aniversário do centenário da revolução de 1917, no ano que vem, dará lugar a uma apropriação chauvinista oficial ou se, de alguma maneira, poderá relembrar aos povos da grande Rússia as suas origens revolucionárias e despertá-los novamente na oposição à guerra.
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