O Nordeste profundo na poesia de ‘Velho Chico’

Oh senhor cidadão,
eu quero saber, eu quero saber
com quantos quilos de medo,
com quantos quilos de medo
se faz uma tradição?”

(Tom Zé – Senhor Cidadão.1972)

Por: Paula Farias*, de Fortaleza, CE

Novela sempre tem drama, romance e uma trama para prender as atenções dos espectadores. A novela Global ‘Velho Chico’ tem tudo isso, mas de maneira diferente. O Nordeste profundo da seca, do coronelismo, da luta por água, do agronegócio e os conflitos por terra, da mais-valia camponesa é apresentada com um certo lirismo, afinal trata-se de uma novela. O lirismo em ‘Velho Chico’ vai do lúdico à perplexidade com o real, sem abandonar a natureza poética do autor Benedito Ruy Barbosa.

O Rio São Francisco é o cenário dessa trama e o personagem principal. Nos seus leitos desenvolvem-se as histórias dos personagens, conflitos políticos e romances. Belas sequências do Velho Chico dispensam diálogos. As imagens e a trilha sonora bastam para navegar nas poucas águas deste imenso rio. Esse é um dos diferenciais desta novela. Esse tipo de narrativa, ação sem diálogos, andava esquecida pelo público e pelos autores de novelas. Retomá-la chega a ser ousado.

 

Renato Rocha Miranda / Divulgação/TV Globo
Renato Rocha Miranda / Divulgação/TV Globo

Aliás, ousadia é a característica do diretor da novela, Luís Fernando Carvalho e do parceiro Frutuoso, diretor de fotografia. A luz utilizada, a fotografia, a caracterização e até o suor dos atores transformaram a novela em cinema, arrancando poesia visual de elementos como terra, água, céu, sertão. Tudo isso prende e exige a atenção de quem assiste à novela. E por isso mesmo os elogios e críticas são os mais diversos. Há quem goste destes diferenciais e veja poesia, arte, nos detalhes. Há quem considera exagero e excêntrico a forma e o conteúdo.

As telenovelas já viraram uma tradição no Brasil e nessa história algumas tramas se destacam, são verdadeiras obras-primas. Roque Santeiro, O Bem Amado, Tieta, Pantanal são alguns exemplos. Criam moda, vendem produtos, ditam tendências, popularizam jargões, ocasionalmente – diante da conjuntura – apoiam causas e fazem história. O país parou para assistir o primeiro beijo gay da teledramaturgia brasileira. Por este motivo, colocar na televisão aberta, em um horário disputado, considerado nobre, temas como a reforma agrária, a luta pela água e a crítica à transposição do Rio que padece a cada dia, é uma ousadia e uma exceção.

A audiência no horário das 21h na TV aberta, horário destinado às principais tramas, virou o alvo de disputa das grandes emissoras. ‘Velho Chico’ era um projeto que estava engavetado há anos e saiu agora para tentar salvar o ibope da Globo neste horário. A emissora vem perdendo audiência por diversos motivos que dariam um texto sobre o assunto. Mas, o importante é que diante de uma programação tão ruim, a emissora tem que fazer apostas ousadas. A pontuação da novela vem oscilando, mas ainda não bateu os picos de audiência para o horário. Algumas hipóteses podem ser consideradas: 1. A trama se passa no Nordeste, fora do eixo Rio – São Paulo; 2. Retomada de uma narrativa abandonada: ação sem diálogos, muita trilha sonora e uma beleza visual que alguns podem considerar que deixa a trama mais lenta; 3. A abordagem de temas políticos.

Confesso que assisto a novela com entusiasmo, vejo poesia, vejo arte e vejo política. Enxergo Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz no enredo e na paisagem. Tem dias que os capítulos nos envolvem de tal maneira que não vemos o tempo passar. Como se trata de uma novela, tem aqueles dias que só as imagens do ‘Velho Chico’ e a trilha sonora compensam assistir. E por estes motivos, quero estimular os/as leitores/as a ver a poesia em movimento, ver o Nordeste profundo nas belas imagens e a discutir a atualidade política que toma todas as noites milhões de casas do país no horário nobre da Globo.

Cinco motivos para assistir ‘Velho Chico’, ou pelo menos dar uma espiada

  1. Narrativa ousada: a narrativa e as imagens trabalhadas trazem ao primeiro plano um Brasil profundo que quase ninguém vê e que muitos talvez prefiram não ver.

  2. Poesia Nordestina: A direção da novela sabe, como poucos, fazer poesia com uma câmera na mão. Xangai, como um mestre de cerimônias, conta e canta histórias do Rio São Francisco. Os diálogos são fortes e está lá presente a linguagem do sertanejo mais simples, seu amor à terra, sua religiosidade para não perder esperança de chuva que amenize a seca, a coragem de arrancar da lida cotidiana a alegria para sobreviver.

  3. Poesia visual: a fotografia enche os olhos, a alma e arrepia. É um espetáculo. Há um tratamento especial na luminosidade e textura das imagens. Fotografia de cinema em uma novela. Vemos tons terrosos no núcleo pobre, as luzes que se refletem nas águas do rio e as cores fortes, o barroco carregado do interior da casa dos ricos. Preste atenção nas cores, e nas texturas. Cada personagem tem uma fotografia, que ajuda também a compor a narrativa da história. A luz é personagem: a luz do céu, a do sertão, criam uma aura dourada e, ao mesmo tempo, uma textura terrosa.

  4. Trilha sonora ou quando a música casa com os personagens e a fotografia: a trilha sonora é regada de brasilidade. Tem Gal Costa, Caetano Veloso – com Tropicália na abertura, Maria Bethânia, Tom Zé com duas lindas canções de 1972 – Senhor Cidadão e Dor e dor, Alceu Valença, Xangai, Ednardo, Amelinha, Geraldo Vandré. É de encher os ouvidos. Vale a pena conferir cada uma das canções.

  5. O elenco Nordestino: vários atores e atrizes de peso passaram pela trama ou estão nela: Rodrigo Santoro e Antônio Fagundes, Cristiane Torloni e Carol Castro. Mas, quero destacar a parte do elenco originalmente do nordeste. Irandhir Santos é o mais conhecido entre nós pelos trabalhos anteriores no cinema pernambucano e na TV. Faz o vereador Bento, responsável pelos diálogos mais políticos da trama. Temos ainda Lucy Alves, cantora e sanfoneira na vida real, que tem se destacado como uma mulher forte sertaneja. Outra cantora que tem se destacado na novela é a Mariane de Castro. Zezita Matos, conhecida atriz do cinema pernambucano, também se destaca na trama.

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Assistam e depois nos conte o que achou.

*A autora é socióloga, Cearense, noveleira quando pode – e quando vale a pena assistir. Apaixonada pelo Nordeste, participou do Fórum em Defesa do Rio São Francisco e Contra a Transposição de Salvador-BA nos anos de 2007/2008.

Fotos: Divulgação/TV Globo