“Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.”
Carlos Drummond de Andrade
Por: Ítalo Coelho, do Ceará e Gabriela Mota, da Bahia
O ano de 2016, definitivamente, tem mostrado que veio disposto a escrever intensas páginas nos volumes dos livros de História dos dias que virão. No subtítulo da temática das drogas, as impressões terão cores fortes, vibrantes e distorcidas, quais caleidoscópios psicodélicos.
Há poucos dias, o Ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), anunciou o retorno à pauta o julgamento do Recurso em um processo que pode na prática, descriminalizar o porte de drogas para consumo pessoal no país. É uma importante coincidência, já que é o ano em que completa a primeira década da lei 11.343/06, a chamada “Lei de Drogas”. É justamente o artigo 28 desta, que está sendo discutida a constitucionalidade. Após três dos 11 ministros já terem se pronunciado a favor, alegando que o mero consumo destas substâncias não prejudica a terceiros, o julgamento foi suspenso depois que Teori pediu vistas, para, segundo ele, fazer uma análise mais detalhada do caso. Em meio às comemorações e lamentos, se faz urgente um breve balanço do que se prometeu, em confronto com os resultados práticos que nos salta aos olhos.
Nos debates anteriores à aprovação do Projeto de Lei, no bojo das tantas expectativas progressivas ainda acesas do primeiro mandato de Lula (PT), parecia que depois de mais de 100 anos de guerra e restrição de direitos a usuários e traficantes como Política de Estado, finalmente uma fresta de luz se abriria em meio às trevas da famigerada Lei de Tóxicos, excremento da ditadura empresarial-militar vigente, responsável por milhares de prisões e assassinatos pelo país.
A promessa que chamava mais atenção era a suposta despenalização do usuário. Um avanço frente à lei anterior, que não fazia nenhuma distinção entre quem vendia e portava as substâncias para fins comerciais. Caso o usuário fosse pego em flagrante, não estando em situações suspeitas, seria enquadrado, preso e condenado na mesma pena de quem tivesse, por exemplo, um ou dois quilos da mesma substância.
Com o advento da lei 11.343/06, finalmente aquela pessoa que portasse droga para consumo pessoal não poderia ser mais presa. Lhe seriam conferidas penas alternativas, como prestação de serviços à comunidade. Já para a figura do traficante, praticante de crime hediondo – crimes que causam mais repulsa à sociedade – estão previstas penas mais duras, com prisão de cinco a quinze anos, sem a possibilidade de fiança, liberdade condicional, entre outros direitos.
Esta mudança parecia chegar para resolver os seríssimos casos de violência e criminalidade vividas pela população. Também se esperava uma diminuição no consumo de substâncias ilícitas, assim como um a diminuição das prisões por este crime, já que, supostamente, as pessoas iriam pensar duas vezes antes de se aventurar neste meio conhecido como fácil de ganhar o sustento para viver. Ledo engano.
O que parecia um avanço, logo se mostrou um grande engodo. Com a aplicação desta lei, percebeu-se que não havia nenhum dispositivo concreto, objetivo, como por exemplo, a quantidade de substância portada, que diferenciasse as figuras de usuário e traficante. Sendo assim, cabe aos agentes de segurança, no momento do flagrante, ou ao Ministério Público, ao denunciar o acusado ao judiciário, a tarefa de distinguir quem porta a substância ilícita para consumo pessoal ou para venda.
Esta brecha se mostrou uma verdadeira pá de cal nas promessas redentoras dos defensores desta lei. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, o número de pessoas presas chegou à cifra de 622.202, em dezembro de 2014. Destas, 40% são presos provisórios, estão aguardando julgamento. Estes números fazem o Brasil figurar em quarto lugar no sinistro ranking da população carcerária no mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia.
Os números ainda revelam que mais da metade dos presos são negros, têm até o Ensino Fundamental completo e idades entre 18 e 29 anos. Destes, 28% respondiam ou foram condenados pelo crime de tráfico de drogas, 25% por roubo, 13% por furto e 10% por homicídio. Em relação às mulheres, a população carcerária aumentou de 12.925 presas em 2005 para 33.793 em 2014. O tráfico de drogas (64%) foi o crime que mais motivou a prisão de mulheres, seguido por roubo (10%) e furto (9%)
Apesar de todos estes dados, a tentativa de diminuição do comércio e, consequentemente, consumo de drogas não apresentou nenhum declínio. Ao contrário, fez aumentar vertiginosamente os índices de violência, já que a disputa do mercado se dá por meios militares, associado a uma enorme cadeia de corrupção, que atinge desde os altos cargos nos postos do Estado, até o menor de idade varejista destas substâncias pelas periferias do país. Convém lembrar que, para ter guerra, é necessário armamento. Paralelo a isto, se fortalece o tráfico de armas, não raras as vezes feito por agentes de segurança pública. O resultado deste círculo vicioso é facilmente percebido diariamente, da pior forma possível, pelo povo trabalhador das cidades.
Mas, nem todo mundo sofre com isto. Esta atividade econômica, que envolve produção, distribuição e venda, é controlada por grandes grupos econômicos, que lucram cifras astronômicas. Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNDOC) da ONU, no Brasil o tráfico movimento 1,4 Bilhão de reais. No mundo, este número é de 320 bilhões de dólares. De pronto, é possível notar que este dinheiro não está guardado debaixo dos colchões ou em caixas de sapatos, dentro dos barracos das favelas pelo país, como querem nos fazer acreditar os noticiários diários nas TVs ou internet.
Este dinheiro, que circula totalmente livre de controle e isento de impostos – de deixar certos neoliberais orgulhosos – é o principal lubrificante da engrenagem da máquina capitalista mundial. É injetado nos grandes bancos, movimenta a especulação das bolsas de valores – além de a cocaína ser conhecida como um combustível importante para quem trabalha em seus pregões frenéticos – assim como é revertido para investimento legal nas indústrias e, como não podia deixar de ser, nas campanhas milionárias de milhares de políticos pelo mundo.
É para acabar com esta dicotomia assassina que cresce a cada ano, em vários países, movimentos políticos pela legalização das drogas. Neste ano, no Brasil todo, mais de 100 mil pessoas saíram às ruas nas Marchas da Maconha, para exigir respeito às vidas não só dos usuários – sejam medicinais ou recreativos – de drogas. Mais que isto: cresce diariamente a revolta contra o encarceramento em massa e extermínio da população negra e pobre das periferias.
Para o Mais, vidas negras importam. Por isso, nos somamos a todo este movimento e vamos às ruas exigir do STF a descriminalização. Mas, o que realmente queremos é a legalização da Maconha, rumo à legalização das demais drogas, já que a mera descriminalização do porte para uso, mesmo que progressiva, pode tragicamente se converter em uma ampliação da guerra contra a figura de quem comercializa, ou seja, o elo mais fraco da corrente. Chega de hipocrisia: legalize já.
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