Por: Malu Vale, de Nova Iguaçú, RJ
Daniel Tomazine, de Duque de Caxias, RJ
As Olimpíadas do Rio de Janeiro serão lembradas não só pelos recordes nos esportes, ou por todo caos causado na cidade do Rio de Janeiro. Sem medo de errar, afirmamos que a marca é a constante e marcante presença de acontecimentos que se vinculam às opressões. Sendo apontado pelo El País como a olimpíada mais gay da história.
Após a conquista do primeiro ouro brasileiro, a judoca Rafaela Silva desabafou, esfregando sua medalha dourada na cara dos racistas que a ofenderam em 2012, em virtude de sua eliminação em Londres. A favelada, negra, lésbica e mulher, antes chamada de macaca, agora é heroína nacional.
Este episódio não foi, nem será uma exceção, um ponto fora da curva. Infelizmente, é a regra. Só não ocorrem mais, porque as mulheres, as negras, as LGBTs são marginalizadas nos esportes. Caso houvesse mais Rafaelas, veríamos todo o ódio racista, machista e homofóbico ser deflagrado. A abertura dos jogos já apontava este caminho: o Candomblé, religião afro-brasileira, foi vetada de participar da festa no momento em que supostamente se celebrava a diversidade religiosa brasileira.
Joanna Maranhão, uma das melhores nadadoras de nosso país, conhecida por falar o que pensa e se posicionar politicamente, mesmo contra os interesses dos poderosos do esporte, também foi vítima: cerca de 200 covardes, protegidos pela internet, a ameaçaram, xingaram e desejaram que fosse estuprada – isso por que ela teve a coragem de divulgar que tinha sido abusada sexualmente na infância.
O marchador atlético Caio Bonfim atingiu a melhor marca brasileira na modalidade, com um 4º lugar a segundos de conquistar o bronze. Em sua entrevista, afirmou – em tom de desabafo – que não houve um único dia em que não tenha saído para treinar nas ruas de Sobradinho (DF), sem que tenha sido ofendido por um ódio homofóbico irracional.
Na marcha atlética, o desportista não pode retirar os dois pés ao mesmo tempo do chão, além de ter que manter a perna dianteira esticada durante a passagem. Assim, os marchadores ‘rebolam’ enquanto avançam. Isto faz com que muitos homens recusem praticar o esporte, para não serem chamados de ‘viados’. Mulheres também evitam a modalidade, mas para evitar serem chamadas de ‘putas’, com medo de serem violentadas por praticarem esporte ao ar livre.
A Saltadora Ornamental Ingrid Oliveira foi eliminada da competição por ter feito sexo de forma consensual com um atleta na Vila Olímpica. Ora, é prática comum transar nas vilas olímpicas. Ela quis. Ele quis. Transar não ofende nenhuma regra esportiva. Nenhum outro atleta foi punido. O parceiro de Ingrid? Nada se fala dele. O absurdo de toda a história é punir uma mulher por exercer livremente sua sexualidade. O homem fica com o troféu de conquista da musa olímpica, e livre para disputar as medalhas esportivas. A saltadora é mais uma a ser vulgarmente ofendida nas redes sociais.
Mas, o mais absurdo de tudo é o caso do boxeador Jonas Junius, da Namíbia, 22 anos. Tentou estuprar uma camareira da Vila Olímpica. Foi denunciado e preso. Mas, a justiça o soltou e, adivinhem? Ele lutou. Isso mesmo. Pôde disputar normalmente sua competição, mesmo sendo um criminoso, um violentador, ter tentado praticar um crime hediondo, dentro de uma instalação olímpica.
Viram o absurdo da história? Um homem que tenta violentar uma mulher na Vila Olímpica pode competir. Um homem que faz sexo consensual com uma outra atleta pode competir. Mas, uma mulher, não. Essa tem que ser proibida, xingada, desprezada e marginalizada. O machismo e a cultura do estupro são nojentos.
Outro boxeador, o marroquino Hassan Saada, que assediou duas camareiras, também manteve sua luta intocada. Enquanto escrevíamos esse artigo, o STJ já havia lhe concedido o benefício de responder em liberdade, sendo proibido de deixar o Rio, de ter que entregar o passaporte e de não poder se aproximar das suas vítimas e da vila olímpica. Mas, tanto o COI, como a Associação Internacional do Boxe, não puniram desportivamente os agressores. Assim, a mensagem que passam é de que mulheres são objetos. Suas roupas de competição servem para ressaltar suas curvas. Suas vidas sexuais não pertencem a elas. Sua liberdade sexual está condicionada à vontade dos homens.
Assim, homens podem ter o benefício da dúvida em casos de agressão, mas as mulheres são consideradas vadias, piranhas e indisciplinadas por exercerem sua liberdade sexual da forma que bem entenderem.
Faz-se necessário e imperioso a luta contra acultura do estupro. A luta contra o racismo. A invisibilidade LGBT, as agressões e xingamentos a esta população não pode ser encarada como “mimimi”. LGBTfobia mata. A busca pela construção de uma sociedade alternativa, socialista, passaobrigatoriamente pela liberdade de de toda a humanidade. Não existe liberdade verdadeira em que se exclua o direito das mulheres em decidirem sobre os rumos de seus próprios corpos, das negras e negros serem vistos e tratados como iguais e da orientação de gênero ser encarada como deve ser: algo de cunho pessoal e inviolável, sem que haja certo e um errado. O exercício da atividade sexual não fere o espírito desportivo ou legal, desde que seja entre seres conscientes, responsáveis e consentido.
O Esporte é comumente vendido como a solução – ao lado da educação – para os problemas sociais. “Criança no esporte e na escola não vai para o crime; os jovens se tiverem o esporte, vão se afastar das drogas; o rendimento escolar irá aumentar; vão vencer na vida”. Essas são apenas algumas das ideologias que permeiam a prática desportiva em nossa sociedade. Tratam-se de meias verdades.
Umas das provas dessa tentativa de vender o esporte como uma salvação aos em maioria pobres, negros, favelados é o uso da historia de vida de Simone Biles, dentre tantos outros. Filha de uma usuária de drogas, aos três anos de idade foi retirada de sua mãe, devido ao uso excessivo de álcool e outras drogas, junto com seus três irmãos.
Mas, o que queremos pontuarsobre Simone é para além de sua brilhante atuação enquanto atleta, a firmeza de posições diante da mídia, algo louvável e que talvez hoje falte em muitos atletas.
Ao ser indagada se ela seria o próximo Bolt ou Phelps, a resposta da ginasta foi categórica e certeira: “Não sou a próxima Bolt ou Phelps. Sou a primeira Simone Biles”. A constante necessidade de comparações ou alusões de atletas mulheres aos homens só se justifica pela construção da sociedade machista que ainda não consegue enxergar o esporte como um espaço de todos os gêneros.
O esporte não é um campo neutro, reflete toda construção ideológica dessa sociedade. Muito comumente são vistos casos de opressões serem tratados como menores, tendo as vitimas silenciadas e invisibilizadas. Quando se colocam, são punidas, ou por suas confederações, ou pela própria sociedade, vide o caso da Joanna Maranhão.
Em 2015, uma denúncia de racismo dentro da seleção brasileira de ginástica olímpica masculina veio à tona. O ginasta Arthur Nory publicou em sua conta de uma rede social um vídeo no qual ele e outros colegas constrangiam o colega de equipe Ângelo Assunção, através de supostas piadas depreciativas e racistas. Quando Ângelo se irritou com as atitudes, sua dor de ter sofrido racismo ainda foi relativizada como mero “mimimi”. Mesmo Ângelo sendo campeão da Copa do Mundo, possuir pré-requisitos necessários para compor a equipe de ginástica nas Olimpíadas, isso não aconteceu, e é nítida uma perseguição a um atleta que resolveu não se calar diante do racismo sofrido. Em compensação Arthur Nory, o autor das agressões, foi mantido na equipe.
Os esportes no capitalismo – ou mesmo antes, na servidão e na escravidão – são quase todos competitivos, não colaborativos. E por serem competitivos, métodos alheios à técnica e ao esforço pessoal são determinantes. As chances não são iguais para todos, desde sua gestação. Ou seja, aqueles nascidos de mães mal nutridas e com deficiente acompanhamento médico, terão menores condições frente àqueles gestacionados com toda a alimentação, suplementação e cuidados especializados. Depois seguem todas as oportunidades que o dinheiro compra para os filhos dos ricos e poderosos, enquanto os filhos da classe trabalhadora mais precarizadas dependem da caridade de ONGs e indivíduos de bom coração.
A falsa meritocracia que o esporte de alto rendimento traz carrega uma marca de segregação social, de classes, de raça e de gênero. Os esportes femininos são pouco apreciados e divulgados – com raras exceções. A maioria dos atletas recebe baixos salários, dependem de um emprego fixo e da ajuda de parentes e patrocínios.
Para além do fato de que os super salários – como os de Messi e Cristiano Ronaldo no futebol masculino – são a grande exceção nos esportes profissionais, existem outros aspectos cruéis que precisam ser abordados.
A maioria dos esportes são competitivos. Isto quer dizer que, para um ganhar, outro tem de perder. O prazer de praticar um esporte, ao se profissionalizar, torna-se fonte de lucro para casas de apostas, venda de patrocínios e anúncios, emissoras de televisão, entre outros. Assim, o atleta que não vence, é deixado de lado. Seu prazer acaba. Sua diversão e paixão, sua vocação se tornam pesadelo. Qual a perspectiva de um jogador de futebol do campeonato Capixaba, por exemplo? Porque não existem esportes como o frescobol e a altinha? Duas brincadeiras desportivas, aonde a vitória é se superar. Os participantes têm de ser melhores a cada vez. Um depende da evolução do outro. Não existem adversários.
Os esportes profissionais são negócios milionários, e muitas das vezes, envolvidos em escândalos de corrupção. Um fã de handball só assiste aos jogos de duas formas, ou através de transmissão pirata na internet, ou pagando muito caro para ter o sinal dos jogos olímpicos 24h, a cada quatro anos. Badminton? Pentatlo moderno? Tiro? Hockei de grama? e outros vários exemplos. A mídia monopolista só transmite aquilo que ela quer. É a oferta criando a demanda.
Um terceiro motivo é o fato de as pessoas, ao invés de praticarem esportes, acabarem assistindo aos esportes. Ser torcedor é muito bom, de fato. Ir às arquibancadas, organizar músicas, banda, bandeiras, tudo isso é emocionante.
Mas, por que não complementar sua vida esportiva com a torcida, e preencher a maior parte com a atividade em si dos esportes? Porque nossas vidas são conduzidas para esta inversão. Nos vendem produtos de consumo esportivo televisionado a todo momento. O alto rendimento é transmitido como a única forma de esporte. Assim, ao invés do esporte ser libertador, ele se torna mais uma mercadoria no sistema capitalista. O ser humano é alienado do desporto, quando este é posto numa aparente prateleira de consumo. Já passou da hora da esquerda revolucionária ser mais Feminina, mais Negra e mais LGBT, nas ruas, nas greves, nas eleições e nos esportes.
Foto: Francisco Medeiros/ ME
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