Por: Betto della Santa, de Niterói, RJ
Você diz…:/ —Nossa causa vai mal/ A escuridão aumenta/ As forças diminuem/ Agora e depois que trabalhamos por tanto tempo/ Estamos em situação pior do que no início/ Mas o inimigo está aí/ Mais forte do que nunca/ Sua força parece ter crescido/ Adquiriu a aparência de invencível/ Mas nós cometemos erros e não há como negar/ Nosso número se reduz/ Nossas palavras de ordem/ Estão em desordem/ O inimigo distorceu muitas de nossas palavras/ Até restarem irreconhecíveis/ Daquilo o que dissemos o que será, agora, falso?/ Tudo ou algo?/ Com quem poderemos contar ainda? Seremos como um restolho?/ Lançados para fora da corrente viva?/ Ficaremos para trás?/ Por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo?/ Precisaremos contar com a boa sorte?/ Isto é o que você pergunta/ Pois já não espere resposta alguma/ Senão a sua própria” (Bertolt Brecht, Aos que Hesitam, em tradução nossa)
Brecht morreu…
Visitei Brecht Platz há um ano. Na praça dedicada à memória póstuma de Bertolt Brecht, morto há precisos 60 anos, não pude conhecer as atuações de seu arquifamoso Berliner Ensemble por um motivo que teria agradado o autor alemão: os trabalhadores da cultura gozavam férias remuneradas! Porém – ouso aferir – não o teria satisfeito nada sua estátua gris às margens do Rio Spree. Um dos maiores dramaturgos e poetas do século passado – que tem hoje as suas vida e obra celebradas mundo afora – era um marxista e revolucionário. Os reluzentes dois metros de puro bronze poderiam estar ao serviço de propósitos maiores, já em beleza ou utilidade – beleza útil; utilidade bela –, do que uma eternização tão à contracorrente de um dos mais dialéticos escritores de todo o século 20.
A morbidez do burocrático necrológio – a frieza dum elogio póstumo – seriam, para ele, monumentos à barbárie a eclipsar documentos de cultura. Se Marx e Engels definiram às condições de suas descobertas intelectuais como a aparição de certas contradições de classe no seio da sociedade capitalista – não tão-só tal qual um “estado ideal de coisas” mas, sim, enquanto algo efetivamente originado por um “movimento real das coisas” –, Brecht foi daqueles quem mais vigorosamente afirmou que toda produção humanamente objetiva ou é viva, ou não é. Nesse sentido pode-se dizer que empenhou a todas as suas forças psíquicas e físicas, seja enquanto delegado soviético na revolução alemã de 1918-1919 ou qual artista exilado, às voltas com a poderosíssima indústria cultural americana.
Brecht é um infant terrible dos mais talentosos que irromperam na Alemanha de Marx e Engels. Em redação escolar de 1915 – auge da Primeira Guerra Mundial – ele questiona se seria mesmo honroso dar a vida por seu país. Esses pensamentos-sentimentos seriam em muito reforçados ao servir o exército alemão nas equipes médicas do front militar. É entorno a este período que um então juveníssimo Brecht começara a escrever peças de teatro. O título – provisório – de uma de suas primeiras peças viria a ser Spartakus; logo após a aparição da organização revolucionária de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht. Muito antes de conhecer o marxismo, tomou partido da insurreição dos trabalhadores. Nunca mais cessaria de fazê-lo. A peça foi publicada com nome de Tambores da Noite.
Os anos de formação do autor como produtor
Brecht fez parte de uma intelligentsia radical. As suas primeiras peças são sobre a crise e decadência da sociedade burguesa à qual, como um artista jovem e bem-sucedido, ele sentia-se pertencente. O ponto de viragem deste primeiro momento para o comunismo adveio após a República de Weimar e a ascensão do partido nazista ao poder de Estado, que o levariam a um profundo processo de acelerada politização. Desde Santa Joana dos Matadouros – peça alegórica sobre o funcionamento da Bolsa de Valores – Brecht engajar-se-á, a fundo, com a Crítica da Economia Política. “Um tal camarada Marx foi quem primeiro me entendeu”, teria dito ele à ocasião desta vaga revolucionária mundial. O marxismo brechtiano foi sendo balizado por gente tal Karl Korsch e Walter Benjamin.
Longe da pasmaceira socialdemocrática – e da catequese stalinista – apaixonou-se pela dialética viva, posicionou-se pela emancipação da classe trabalhadora como sua própria obra e, enfim, no sentido dum cada vez maior descrédito em suas direções majoritárias. Na década de 1930, Brecht chegaria a conhecer as ideias de um herético Leon Trotsky mas, como muitos marxistas de sua era, vira na secção alemã da Terceira Internacional a única encarnação de massas dum sujeito coletivo capaz de medir forças com Hitler. A adesão ao marxismo funcionou para Brecht enquanto uma poderosa força produtiva. A refuncionalização do teatro atendia à nova necessidade duma época de crise e revolução. Por detrás do proscênio, antevia-se o jogo de sombra e luz duma novíssima força social.
A necessidade duma forma radicalmente nova de arte tornou-se algo mais evidente, não sem algum paradoxo, após um grande sucesso de bilheteria. A Ópera dos Três Vinténs faria dele, muito a contragosto, parte do Star System que tanto se esmerou em combater. A peça musical que representava o sistema do capital enquanto negócio organizado com verdadeiros delinqüentes de braços dados a chefes de polícia sob batuta de toda ordem, ao invés de chocar audiências burguesas, resultou tremendo triunfo de público e crítica. Mais do que abastecer os aparelhos produtivos do showbizz com canções de hit-parede o que queria Brecht era desenvolver uma vigorosa antítese a tudo isso. Seu objetivo não seria apenas o de embriagar com emoções e satisfazer um qualquer apetite por consumo.
Nada deve parecer impossível de transformar e o «espírito-de-porco» da dialética
Ao transformar-se à cena – numa crítica crítica a toda a história do teatro precedente – reconverteu-se o público em parte de um movimento que tomava lugar no trânsito entre tablado-platéia, para além do ilusionismo da assim-chamada “quarta-parede” do sistema coercitivo aristotélico. A fim de lograr tal feito, fez voar pelos ares a estrutura de toda dramática burguesa convencional. Inspirado pela vanguarda revolucionária russa buscou formas de interromper qualquer concepção clássica de trama linear, opaca e homogênea. O efeito-estranhamento ou efeito-V consistiria em um eixo axial do método de Brecht, com comentários sobre a cena dirigidos à plateia, canto coral em meio aos espetáculos e projeções de texto com informes históricos, como que a legendar o ato da representação.
Isto permitiu-lhe demonstrar que o curso mesmo dos acontecimentos – na vida, como na arte – não é algo pronto e acabado. A história e as estórias são feitas de contradições e, assim sendo, exige-nos constantes e ininterruptas escolhas decisivas e intervenção ativa. Os temas e os problemas, as formas e os conteúdos, os meios tanto como os fins, já não seriam os mesmos da cultura culinária de um teatro que Brecht apelidou de “digestivo”. Eis que um leitor atônito puxa o freio de emergência e interrompe o continuum mesmo desta narrativa. Tudo se move de lugar e, alta velocidade, ouve-se a um agudo estrondo: Dialética? Muitos rastrearam já às trilhas desta gênese social e literária, em expressão moderna, desde um Mefistófiles – o personagem demoníaco de Fausto, em famigerado poema épico de Goethe –, o qual, ao abrir a voz, poria, então, o próprio tempo a cantar…
«Tudo o que nasce merece perecer» – afirma o ser diabólico – «Eu sou espírito que tudo nega». O princípio da contradição, um pressuposto salvo ledo engano do próprio teatro épico de Brecht, fora já esmiuçado em brincalhona expressão da teatróloga trotskista Iná Camargo Costa, em pleno chão de ensaio do Teatro Coletivo, conversando com o jovem público do Ciclo de Palestras dos Diálogos com Brecht, na capital de São Paulo. Diz Iná que a alma viva deste mesmo princípio, a atitude mesma de negação da negação, não deixa de ser o que bem – ou mal? – poderíamos apelidar como um «espírito-de-porco». Junto às obras dum Anatol Rosenfeld e Frederic Jameson, Pasta Jr. e Sergio Carvalho, Terry Eagleton e Roberto Schwarz, os trabalhos de Iná, e o sempre vivo Augusto Boal, perfazem referências incontornáveis para quaisquer estudos brechtianos de consistência.
A história como sexto sentido e o teatro como arte gestual
Na Mãe Coragem, sem dúvida um dos melhores textos antiguerra já escritos, a ficção se passa no Séc. XVII, durante a Guerra dos Trinta Anos. Ela mostra uma mãe que tenta lucrar com a guerra – afim de ajudar sua família – mas perde todos os filhos no intento. Seu fito não é dar respostas morais a questões históricas, nem elidir a indivíduos sociais. Longe de quaisquer maniqueísmos facilistas à decifração de enigmas da luta de classes, Brecht muitas vezes cifrou cenários sociais em código, como um meio a mais de gerar distância entre espectador e jogo teatral. Já em Galileo Galilei a luta dogma versus ciência serviu de ambientação ao debate sobre as tensões realmente existentes entre os sistemas de valores e crenças e a forma com que as relações de dominação se dariam no presente.
Com seus engenhosos experimentos literários de tipo modernista Brecht almejava muito mais do que mera agitação e propaganda de qualquer piedoso ideal, desta ou aquela cor. Tratava de mostrar como as possibilidades efetivas, dadas a cada um dos indivíduos, são determinadas por condições objetivas que a um só e mesmo tempo são independentes de sua vontade, mas não de sua ação. Os homens fazem sua história em terreno não-eleito. Ao invés de partir das coisas boas e velhas arranca das novas e más, exigindo do público refletir sobre os limites do que se diz o bem-pensar ou bem-dizer e seus juízos de valor. Estranhar o que é o familiar e aproximar o que é o distante se converte num ato criativo.
O estranhamento deveria impregnar a todo e qualquer momentum da produção teatral, inclusive a interpretação das personagens. Neste agir artístico o ator deveria buscar pelo Gestus como momentoso recurso que sintetiza – olhar, fala, posição, posta em cena – à verdadeira matriz interpessoal que mantém com o jogo teatral travado junto à ensemble. Interpretar passa a ser desmascarar numa sala de espelhos sociais, profanar ídolos sacros que perfazem a intersubjetividade, algum princípio-carruagem que não se poderia parar. A forma épica e dialética do teatro de Brecht assume daí o aspecto de uma arte gestual. O ator deveria apresentar – comentar, criticar, comparar – a personagem a seu público e não vivenciá-la, com ela entorpecer-se ou até mesmo sucumbir a exaurir às suas paixões.
Texto e contexto: um homem é um homem
O novo teatro e os novos meios de comunicação advindos da “era da reprodutibilidade técnica” – p.ex.: rádio, fotografia, cinema, imprensa – caminhariam juntos para realizar o imperativo de interatividade, ultrapassando uma velha concepção de cultura que a via como uma forma sempre já constituída, na qual não careceria qualquer esforço criativo. Apesar de não cultivar ilusões sobre a tenaz capacidade de apassivamento pelo sistema, que observara já muito antes de Theodor Adorno e sua dialética negativa, seu primado da produção exibe expectativas revolucionárias – como não poderia deixar de ser – por conta do momento histórico vivido pelos trabalhadores, artistas e intelectuais alemães, ainda marcado pelo entusiasmo provocado desde a onda insurrecional global 1917-1924.
E este novo teatro tinha sustentação vigorosa num movimento social dos trabalhadores interessado e apto a defendê-lo contra seus adversários, tanto sociais quanto literários. As influências dum Antoine ou Piscator e Meyerhold – além de Maiakóvski, Eisestein, Vertov – fizeram-no refletir sobre a necessidade de revolucionar às formas de arte para novos conteúdos sociais; reflexão, esta, que o acompanharia pelo restante de sua vida. Tal qual os construtivistas russos, e assim como os futuristas italianos, expressava o seu entusiasmo com o progresso técnico e científico ancorado na centralidade do trabalho. A aposta estratégica por um novíssimo sujeito coletivo, e renovada estrutura social, não deixa de exaltar: esteiras rolantes; palco giratório; introdução de películas, etc. etc. etc…
O dito agitprop político-cultural dever-se-ia à formação dum novo público, produtor e consumidor de artes a exigir, daí, uma incessante renovação do saber-fazer artístico. É lugar comum, ao se falar na República de Weimar, a atenção voltar-se exclusivamente para expressões de “alta cultura”, do Expressionismo Alemão à Nova Objetividade, e o ocultar-se de um vigoroso movimento sociocultural desenvolvido junto às mais amplas massas. O jornalismo operário, as associações teatrais de trabalhadores e várias outras iniciativas tiveram lugar em Weimar, na República dos Soviets e na França de 1930. Aquilo que nomeia Brecht, mais que tudo, tem a ver com o que chamamos de revolução. A realização dum teatro dos trabalhadores seria o fim de todo o passado ‘sentir o drama’.
Qual atualidade? Qual Brecht?
É muito conhecida a palestra que Roberto Schwarz proferiu por ocasião de um convite especial da Companhia do Latão. Posteriormente publicada na forma do ensaio Altos e Baixos da Atualidade de Brecht – já seja no livro Sequências Brasileiras ou vertido nas línguas inglesa e espanhola, na revista de ideias New Left Review –, ali se encontram algumas das importantes determinações da recepção do dramaturgo e do lúgubre fardo que pesa sobre sua obra teórica e cultural, significativa da experiência estética e política transindividual que ultrapassa/compreende-o num sentido tão movido quanto movente. Se o imperialismo washingtoniano intentou neutralizar a suas técnicas-distanciamento, com a máquina da publicidade, e a burocracia moscovita buscou cooptar o experimento, com a imposição de cânones – já seja em Nova Iorque ou Berlim Oriental –, é preciso deixar claro que sua vida e obra antifascistas não vergaram a espinha, nem a Hollywood nem ao assim-chamado “real-socialismo”. A meia-noite do século encontrou Brecht do lado certo da história, já contra todas as formas históricas de opressão social existentes.
Por um lado, faz-se necessário reiterar o que Iná Camargo Costa, reiteradas vezes, nos rememora sobre a batalha de ideias contra a velha-nova parábola do pós-modernismo. Nossos adversários – hoje apequenados, tal qual cachorros mortos, após o que veio a se chamar como “o fim do fim da história” – não tem melhor remédio do que voltar às velhas e nada boas fontes do assalto à razão antiiluminista de decadence avec elegance. Por outro lado, vale a pena aqui deixar de lado a deferência pelo monstro sagrado que certamente Schwarz personifica, nos ‘capítulos brasileiros’ de um marxismo ocidental fora de lugar – haja vista que, diferentemente àquele nomeado por Perry Anderson, a filosofia e a crítica literária brasileiras foram desde cedo marcadas por um ‘apetite pelo concreto’ de análise histórico-social, sobretudo aquelas de cariz mais marxistizante –, e tomar partido na polêmica — é tanto possível quanto necessário afirmar sua atualidade!
Se a ortodoxia em matéria de marxismo não se reduz à adesão acrítica aos resultados da pesquisa de Marx nem à fé na verdade revelada de uma ou outra tese em particular podemos afirmar que – numa paráfrase desabusadamente heterodoxa, por unir o clássico lukácsiano ao que não deixa de ser “o método Brecht” – a única atualidade admissível à questão brechtiana nomeia i) princípio da produção + ii) imperativo da interatividade i.e: a atitude crítica de perante um rio, aproveitá-lo; diante da árvore frutífera, enxertá-la e vis-à-vis a sociedade, fazer a revolução & não mais distinguir entre o saber e o lazer, matéria e espírito, mãos e cabeça – unindo quem lê e quem escreve, quem concebe e quem executa ou quem dirige e quem é dirigido. Contra a reificação mesma das formas econômicas, o fetichismo do aparelho estatal e/ou a alienação das relações sociais – a compartimentação de várias esferas da vida, sob a afirmação da divisão do trabalho derivada da jaula-de-ferro da exploração do homem pelo homem –, o método que insiste na centralidade da «práxis revolucionante» enquanto simultaneidade histórica entre as modificações na educação e na circunstância — já tanto na arte quanto na própria vida.
…Viva Brecht!
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