Vamos comer-nos?

Por: Raquel Varela

Em Portugal e no Brasil, a culinária é divinal, mas em Lisboa “comer-nos uns aos outros” é mais uma expressão de canibalismo social, competição, remete à animalidade da luta sem regras pela sobrevivência; no Rio é namoro, sexo, amor, seja o que for é a dois, juntos. Cooperação. Na Alemanha, recentemente, os acionistas de uma multinacional (não direi qual porque me comprometi com uma trabalhadora da fábrica a não fazê-lo) entraram em pânico. A história é curta, mas impressionante.

Uma multinacional tinha-se comprometido a entregar uma quantidade de peças para a casa-mãe da indústria automóvel. As encomendas dispararam e estavam à beira de ter de pagar uma grande indenização se os trabalhadores não aceitassem fazer horas extras. Os trabalhadores alemães em assembleia decidiram que só as fariam se pagassem mais pelas horas extras. A fábrica pediu então 250 trabalhadores portugueses para irem para a Alemanha. Estavam para ir para lá quando os trabalhadores alemães fecharam a fábrica a cadeado e disseram: “Aqui ninguém entra”.

Agora, vamos pôr o dedo na ferida. Imaginem a cena. O que diriam os partidos da esquerda parlamentar alemã? “Viva a livre circulação, somos todos iguais” ? A extrema-direita diria: “Imigrantes são seres inferiores, expulsem-nos”. Dois becos sem saída. Não somos todos iguais se uns vão ganhar menos que outros. Isso não é livre circulação, é dumping social. A extrema-direita cresce na ausência de verdadeiras políticas de esquerda, que não sejam só palavras bonitas, que o vento leva.

Os portugueses iriam para lá furar a greve. Como todos os fura-greves, precisam trabalhar para viver. “E nós onde ficamos?”, perguntei hoje ao almoço a um dirigente sindical sério que conheço: “Estamos a comer-nos vivos uns aos outros”, respondeu-me.

A esquerda leva os trabalhadores para o colo da extrema-direita porque não tem um projeto estratégico – há uns cegos que acham que o internacionalismo é uma aventura romântica e não uma necessidade civilizacional. Querem remendar o que não tem remendo. É evidente que a emigração assim é exílio forçado, são pessoas desesperadas que não têm outro modo de vida, é concorrência salarial. E é mais ainda, é partir a espinha das organizações locais de trabalhadores. Isto não se resolve com declarações morais belíssimas – se assim for, vai continuar a crescer o sucesso eleitoral da extrema-direita. Resolve-se com um horizonte estratégico (programa político coerente, saber-se para onde se vai) e organizações que o cumpram e dirigentes que o saibam cumprir. Os trabalhadores não podem continuar a reunir-se na sede da Volkswagen para fazer saldos, a ver “quem dá menos”: quem oferece mais banco de horas, quem vai mais tempo viver para a falsa formação profissional, paga pela segurança social, quanto as casas-mães concentram lucros cujos zeros já ninguém consegue contar – 62 pessoas têm a riqueza de metade da humanidade.

A globalização criou um modelo de produção à escala mundial – nunca fomos tão dependentes uns dos outros. No século XIX, se uma fábrica entrava em greve e o patrão queria reprimi-la, pagava a sua própria polícia, uns jagunços. Hoje isso é feito à custa dos impostos de todos, por exemplo. Mas no século XIX não era, claro, só a repressão que era local, a produção diária era-o também. Matérias-primas, operários, peças, manutenção, tudo estava ali, dentro ou ao lado. Hoje não. Há uns anos, uma greve de uma multinacional no Brasil parou a produção nos EUA. E uma greve em Portugal pode…furar hoje uma greve na Alemanha.

A casa-mãe concentra os lucros, e é quase um departamento financeiro, pouco mais, inchada pelos famosos “resultados positivos, com os mercados animados”, as subcontratadas assumem os custos, e para manter uma margem de lucro média deslocalizam a produção para onde os salários são mais baixos. E competem dentro da mesma empresa. Quase não há stocks de matérias-primas. Por isso, o sector dos transportes tem tanta força. Não podem ser deslocalizados e deles depende a entrega das matérias-primas na hora, just in time.

A empresa alemã prepara-se para deslocar para cá a maquinaria, na calada da noite –espero, se infelizmente conseguirem, não ver depois um sindicato local de esquerda dizer que “bom, estamos a criar emprego para a região” e, ao lado, o ministro da Economia a dizer que “Portugal é um país competitivo”. Porque isto é uma forma de canibalismo social europeu. Não é a produção coerente de bens e produtos necessários à sociedade e à vida das pessoas.

Se todos os trabalhadores desta empresa estivessem na mesma estrutura sindical internacional, era este o momento de exigirem melhores salários para todos e dizerem que o emprego que existe deve ser dividido por todos, portugueses e alemães. Não se fazem horas extraordinária na Alemanha, se há desempregados aqui, empregam-se os trabalhadores aqui, sobem-se os salários na Alemanha e aqui, onde são obscenamente baixos. E sustenta-se assim o Estado Social porque todos descontam, e evita-se a tragédia humana do desemprego. Tempo para viver, qualidade de vida, produção racional. Lá se vão os mercados “animados”… De facto não dá para animar a malta toda!

A globalização criou concorrência entre trabalhadores rebaixando o salário de todos à escala mundial, mas pode ter criado também o seu contrário, o internacionalismo. O que para uns, poucos, era uma aventura, para outros, um disparate, para outros ainda, entre os quais me incluo, é hoje a única forma de sobrevivência civilizada. Vamos comer-nos à brasileira, juntando os trapos, cooperando, ou à portuguesa, até roermos os ossos dos do lado.