Por: Letícia Pinho
Imagine um dia sem estupros. Um dia sem sexo não consentido, um dia sem encoxadas no transporte público, sem beijo forçado nas baladas, sem xingamentos de cunho moral ou sexual. Um dia sem assédios nas ruas, escolas e trabalho. Um dia sem propagandas que usam o corpo feminino para vender produtos, sem piadas sexistas. Um dia sem invisibilização das mulheres, sem culpabilização e punição das vítimas. Olhando para a nossa realidade atual, parece algo bem distante e utópico.
No Brasil, considerando que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada, isso significaria que aproximadamente 130 mulheres não entrariam, a cada dia, nas estatísticas de violência sexual. Estima-se que, em todo o mundo, uma em cada cinco mulheres em algum momento de sua vida será vítima de estupro ou tentativa de estupro. Estes são dados que ainda estão distantes da magnitude real dessa epidemia, pois a subnotificação é elevada. Muitas vítimas não chegam a formalizar uma denúncia no serviço público por inúmeros motivos que vão desde vergonha até o medo de punição física por terem denunciado o agressor.
Cultura do Estupro
Vivemos em uma sociedade que, apesar de punir o estupro com prisão, é conivente com esse tipo de violência. Ainda que algumas leis e a opinião pública sejam contra este tipo de agressão à mulher, percebemos que vivemos em uma verdadeira cultura do estupro. Inúmeras práticas de violação do corpo feminino ainda são tidas como normais, aceitáveis. O motivo é profundo, tem a ver com a objetificação sexual de nossos corpos e o papel que nos é atribuído na sociedade.
A existência de padrões de conduta das mulheres, que se manifesta em roupas tidas como respeitáveis, comportamentos adequados e etc., faz com que seja construído um cenário no qual a mulher que não siga as regras é responsável por toda e qualquer coisa que venha a lhe acontecer.
E quando a violência acontece, suspeita-se da vítima, não do agressor. A palavra da mulher é colocada em cheque e o benefício da dúvida fica com os homens. A obrigação de provar é da vítima, mesmo com marcas evidentes em seu corpo. Quando a denúncia é levada a público, são questionadas se gostaram ou se fizeram algo que provocou essa situação. Julga-se a roupa, o horário, o local onde estava, o seu comportamento, a bebida que tomou. Uma inversão completa da abordagem necessária, pois a culpa nunca é da vítima.
Como identificar qualquer ato de violação?
O primeiro indicativo é o consentimento. Se não há “consentimento consciente” de ambas as partes envolvidas, trata-se de uma violação. Parece óbvio, mas diariamente nos deparamos com inúmeros casos onde isso não é levado em conta. Não se pode forçar consentimento, não é consentimento se vier sob coerção, constrangimento. Não é consentimento se uma das partes não tem condições de responder.
A cultura do estupro se manifesta em práticas individuais e cotidianas, mas também em ações políticas mais gerais e nas instituições da sociedade. O Projeto de Lei 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha, é um exemplo dos ataques aos direitos das mulheres e de incentivo à cultura do estupro, pois restringe o acesso das vítimas ao tratamento médico adequado após terem sofrido violência e ataca o direito ao aborto em casos de violência sexual. A retirada das discussões de gênero dos planos de educação também é um exemplo de ação institucional que reforça e perpetua a cultura do estupro.
#Mais Feminismo e políticas públicas para as mulheres
Eliminar a cultura do estupro só será possível com uma transformação profunda e revolucionária da sociedade, mas nossa dor não pode esperar e essa transformação precisa começar desde já. Iniciativas individuais de desconstrução do machismo e mudança de práticas são muito importantes, podem e devem ser adotadas por todos nós, mas devem necessariamente vir acompanhado de iniciativas mais globais. A cabeça pensa onde os pés pisam. O combater imediato precisa partir de um tripé: acolhimento e proteção das vítimas, punição dos agressores e políticas públicas de educação e conscientização.
Em primeiro lugar, a vítima, sempre. Elas necessitam de todos os cuidados possíveis nesse momento tão difícil. Atendimento médico adequado, acompanhamento psicológico e jurídico feito por pessoas especializadas no tema, que consigam atender às necessidades de alguém que passou por esse tipo de situação. Equipes multidisciplinares, centros de referência no atendimento e cuidado de mulheres vítimas de violência. No nosso país, esse tipo de equipamento público existe em poucos lugares, ainda são muito insuficientes.
Levantamentos estatísticos mais precisos sobre violência machista devem ser implementados, pois se estima que apenas 35% dos estupros são notificados. Saber a dimensão real do problema, quantas vítimas e quantos agressores existem é um passo fundamental para um diagnóstico mais exato. Os agressores devem ser responsabilizados pelos seus atos, pois a impunidade gera um ambiente confortável para a reprodução desse tipo de violência. O que vemos, na prática, é que as vítimas são punidas com feridas físicas e psicológicas que as acompanham por toda a vida e os agressores, na grande maioria das vezes, saem livres.
Mas só punição não é suficiente, precisamos mudar mentalidades. Reeducar homens e mulheres de forma totalmente diferente. É necessário e urgente que a nossa dor não seja mais jogada para debaixo do tapete, devemos falar sobre isso em todos os lugares. Nas escolas, nas repartições públicas, nos ambientes de trabalho. Precisamos ver campanhas de conscientização na televisão, rádio, transporte público, nas ruas. Acreditamos que essa mudança é possível. Mas, para a concretização de tudo isso, esse tema deve ser tratado com a máxima prioridade pelo poder público, o que não é feito atualmente.
Não queremos apenas um dia sem estupros, queremos uma vida sem estupros, sem violência, sem machismo. Queremos ser livres!
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