Por: Thomaz Campacci
As manchetes da grande mídia são por vezes tentadoras (para não dizer prepotentes). Num artigo intitulado “De onde vem a homofobia?”, veiculado no dia 20/07 na Folha de São Paulo, o psicanalista Francisco Daudt tenta resgatar a origem do que ele chama de “ódio aos gays”, mas tropeça. Em síntese, para o autor, a homofobia teria sua gênese no medo masculino de reconhecer em si mesmo um gay: o clássico “homofóbico enrustido”.
Sem entrar na debilidade metodológica com que desenvolve o tema, o autor comete um grande deslize: retira todo o conteúdo social da homofobia e o papel estrutural que cumpre na nossa sociedade. Se é verdade que o lugar encontrado pelas LGBTs na sociedade em que vivemos é um espaço de exclusão, violência, ódio e negação dos direitos mais elementares, como a vida, não é possível explicar a LGBTfobia apenas com o medo dos heterossexuais de se descobrirem “gays”. A justificativa de Daudt soa, para dizer o mínimo, insuficiente. De forma inicial, vamos a alguns palpites sobre qual seria a origem da LGBTfobia.
LGBTfobia e Classes Sociais
A sociedade bruta e desigual em que vivemos, sob as rédeas do capitalismo, é mestre em transformar as diferenças em desigualdades. Assim acontece, por exemplo, com as pessoas negras, mulheres, pessoas de outras etnias. Por não terem as características dos historicamente dominantes e exploradores (como ser homem, burguês, branco, cis, heterossexual…), um grande grupo de pessoas, hoje conhecidas como minorias sociais (e não numéricas), fica relegado ao lugar da discriminação exatamente para que a desigualdade no capitalismo se perpetue. Afinal, se não existissem explorados, os exploradores não se sustentariam, não teriam de onde tirar seu lucro.
Para piorar, as LGBTs e as demais oprimidas são empurradas para o chamado “exército de reserva”, aquele contingente de fora do mercado de trabalho, desempregado, e “disposto” a empregar-se em condições ainda piores. Esse mecanismo divide os trabalhadores numa categoria de inferioridade, colocando de um lado, homens, brancos, pessoas cis entre os “mais capazes”, e do outro, mulheres, negras, pessoas transexuais, migrantes e imigrantes. Essa relação intrínseca entre a exploração e a opressão dos grupos oprimidos como um dos motores da história serve como gancho para começarmos a entender a origem estrutural da opressão às LGBTs.
LGBTfobia, Família e Modelos de Gênero
Na organização social humana, a transformação de uma diferença em desigualdade começa a se expressar na formação da família a partir do papel social a que as mulheres foram submetidas, o qual coloca sob suas costas as responsabilidades reprodutivas e de cuidado familiar. Este papel empurra a mulher para o âmbito privado, doméstico. Tais aspectos são fruto da divisão sexual do trabalho no interior da família e na sociedade e são decisivos na construção dos papéis de gênero. São eles os responsáveis por hoje as mulheres cumprirem, após sua entrada no mercado público de trabalho, uma dupla jornada de trabalho. A família é a instituição social que garante a reprodução do sistema e das ideologias dominantes, à medida que é responsável por criar a próxima geração de pessoas exploradas ou de ricos herdeiros famélicos. Assim, é uma grande protegida dos capitalistas e conta com a ajuda das doutrinas religiosas e sistemas culturais, e de certos parlamentares dos partidos da ordem também.
Para perpetuar a divisão sexual do trabalho, os ricos e poderosos se valem de uma perversa falsa ideia: a dos papéis sexuais e modelos de gênero. Isso passa por modelos de gênero diametralmente opostos na educação e socialização: as mulheres aprendem a ser passivas e a servir de sustentáculo das famílias; os homens aprendem a ser ativos, fortes, caçadores e corajosos e a ocupar o “mundo exterior”. Desde a infância, as crianças já recebem os brinquedos que irão treiná-los para seus papéis de adulto (aos “meninos”, carros, armas, ferramentas de mecânica; às “meninas”, bonecas e mini-utensílios domésticos). Qualquer questionamento a esses modelos e à “família” é também visto como uma ameaça ao funcionamento da desigualdade e é bizarramente combatido, vide os projetos de lei que tramitam hoje no Brasil, como o da “cura gay” e da escola sem debate de gênero.
Ser LGBT é, em primeira instância, questionar esses modelos de reprodução social, é sugerir que uma relação pode se dar entre dois iguais, sem a necessidade de um opressor (homem) e um oprimido (mulher), é subverter os padrões de gênero impostos desde o nascimento. E mais, é dizer que nem só de reprodução vivem as relações afetivas. Afinal, a vinculação da reprodução à sexualidade é uma tentativa histórica das classes dominantes de perpetuar a propriedade privada e a herança sob a égide da família.
Sugiro que a origem da LGBTfobia reside na reação ao questionamento dos papéis de gênero e, por ser uma ideologia dominante que serve para o funcionamento das coisas como estão, a LGBTfobia se alastra pela sociedade tornando nossos comportamentos anti-naturais, doentios, como uma doença social a ser combatida. Essas ideias chegam até nós pelas mães, pais, avós, profissionais da educação e saúde, pelas instituições, legislações. Se materializam em nosso cotidiano de uma forma que bem comecemos: ódio, violência, expulsão da família, homicídios. Assim, a dificuldade e recusa em identificar-se como LGBT aparece como um sintoma da própria LGBTfobia, afinal, sair do armário ou assumir uma identidade trans são caminhos perigosos.
O argumento sugerido por Daudt precisa ser desmascarado, pois culpabiliza as vítimas pela própria opressão que sofrem. Em suas próprias palavras, “não existem homofóbicos entre héteros absolutos”. Um verdadeiro absurdo. Sem começarmos a compreender o peso estrutural da LGBTfobia é impossível travar meios coletivos e individuais de lutar contra ela e suas consequências. Afinal, quem não sabe contra quem luta não pode vencer.
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