Pedro Tavares* |
O dia 3 de outubro de 1968 amanheceu em silêncio na Cidade do México. Ruas, calçadas, cafés. Jornais, programas de rádio, pessoas. Um silêncio absoluto tomou conta da capital mexicana dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos. As portas e janelas nas proximidades da Plaza de las três culturas, normalmente abertas para receber a luz do dia ou a refrescante brisa matinal, estavam fechadas. A praça amanheceu banhada de sangue e com dezenas de sapatos espalhados por toda sua extensão. Naquele dia, do momento em que o sol nasceu até o anoitecer, só se ouviu o som do silêncio.
Situação oposta do que se viu nos meses anteriores no México, que foi palco de inúmeros protestos com gritos de incentivo e cantos por liberdade. No embalo do um movimento global – grandes manifestações tomavam as principais capitais do mundo –, os mexicanos manifestavam-se contra seu governo e a favor da autonomia de seu povo. Fez-se muito barulho até o fatídico dia em que a nação se calou.
O governo do presidente Gustavo Diaz Ordaz Bolaños, iniciado em 1964, já vinha contestado desde o início. Em 1965, após greve dos médicos, a situação piorou e foi agravando-se até seu auge em 1968.
O ano da Olimpíada foi repleto de manifestações estudantis contra o governo. A intenção era justamente aumentar o coro, já que o país estaria sob os holofotes do mundo naquele período. As atenções voltadas ao México eram combustível especial para os protestos, mas, por outro lado, funcionavam para aumentar a disposição do governo em dar um basta naquilo.
Em agosto e setembro, semanas antes dos Jogos, graças ao apoio da população, o movimento estudantil ganhou força. A Unam (Universidade Nacional Autônoma do México), que já havia demonstrado apoio à greve dos médicos e tinha como reitor Javier Barros Sierra, um grande líder das manifestações, foi ocupada pelos militares. Muitos alunos foram espancados e detidos, sem maiores perguntas ou explicações. Com os Jogos Olímpicos batendo à porta, a tentativa de sufocar o movimento estudantil ficava clara naquele momento.
O ocorrido, em vez de diluir os protestos, como era o intento, trouxe indignação e revolta para a população, que organizou uma grande manifestação para o dia 2 de outubro, dez dias antes da abertura da Olimpíada.
Milhares de pessoas se juntaram para caminhar pelas ruas da Cidade do México em apoio àqueles estudantes detidos na Unam (e em outras universidades do país) e contra a ocupação dos militares. A massa seguiu cantando e entoando gritos por liberdade até a Plaza de las três culturas, também conhecida como Plaza de Tlatelolco, no centro histórico da cidade.
Armou-se, então, o cenário de um dos dias mais tristes da história mexicana. A multidão continuava cantando enquanto o dia se tornava noite. Com o sol se pondo, por volta das 18 horas, a movimentação na praça foi se alterando, e a presença de militares com carros e tanques começou a ser notada. Em um piscar de olhos, deu-se a tragédia.
Tiros começaram a zunir por todos os lados, e os gritos de protesto foram substituídos por gritos de horror. Corpos começaram a cair. A correria e o desespero aumentavam à medida que as pessoas percebiam o que, de fato, estava acontecendo ali. Era um massacre. Rajadas de balas acertavam quem quer que estivesse no caminho, sem distinção ou piedade.
Crianças estavam entre os manifestantes. Idosos, transeuntes, famílias inteiras. Até militares vestidos à paisana – que, segundo os relatos, iniciaram os disparos – foram baleados pelos tiros vindos de todas as direções. A arquitetura da praça dificultava as tentativas de as pessoas escaparem e contribuía para que aquilo se tornasse cada vez mais uma armadilha. Estavam todos encurralados.
Em poucos minutos tudo mudou. A praça se via repleta de cadáveres empilhados e suja de sangue. As casas mais próximas começaram a ser arrombadas e invadidas pelos soldados, que vasculhavam tudo. A manifestação havia acabado.
Mais tarde, caminhões de lixo recolhiam o que sobrara na praça, deixando claro que, para os que mataram, os corpos sem vida de Tlatelolco eram somente objetos descartáveis. O que se viu após isso foram apenas os sapatos deixados para trás e os cravos despedaçados no concreto. A flor símbolo do amor e da liberdade, que muitos dos manifestantes carregavam, terminou no chão, morta.
O silêncio que veio a tomar conta da cidade no dia seguinte não foi algo exclusivo daquele instante, mas perdurou por muito tempo. Os jornais noticiaram timidamente, dias após o ocorrido, certa balbúrdia controlada prontamente pelos militares. Gustavo Diaz Ordaz Bolaños continuou na presidência até 1970, quando deu lugar a Luiz Echeverría, que havia sido seu secretário de governo na época do massacre de Tlatelolco. Os números de mortos variaram de acordo com a fonte. As oficiais citaram algo em torno de 200, enquanto outros disseram que as vidas perdidas chegaram a 800, mil, ou até mais que isso. Bolaños e Echeverría, os principais alvos dos protestos, eram tidos como os orquestradores da carnificina.
Não fosse o livro “Noite de Tlatelolco”, que Elena Poniatowska publicou em 1971 (três anos após o ocorrido), pouco – ou quase nada – se saberia sobre caso. Em sua obra, a escritora reuniu diversos testemunhos para construir novamente aquela história, o que fez com que muito do que estava por baixo do tapete fosse revelado. O filme “Rojo Amanecer” (Jorge Fons), de 1989, se baseou em alguns desses relatos e foi também importante para informar sobre o massacre.
O ano de 1968 já estava marcado historicamente pela Primavera de Praga, pelo assassinato de Martin Luther King, pela Guerra do Vietnã e pela Revolução Cultural Chinesa. O massacre de Tlatelolco, infelizmente, não obteve a atenção necessária e foi apagado pelo início dos Jogos Olímpicos, que ocorreu normalmente, poucos dias depois.
Segundo a historiadora Sílvia Cezar Miskulin, os jogos foram justamente o principal motivo do acontecido. “A forte repressão ao movimento dos estudantes mexicanos, apoiado por professores e trabalhadores urbanos em geral, foi motivada pela iminência da realização dos jogos olímpicos naquele país (…)”, e completa: “A repressão brutal aos estudantes mexicanos foi justificada internamente pela imprensa conivente com o governo, pela necessidade de ‘ordenar o país’ para receber a Olimpíada”.
Quase 50 anos mais tarde, a Olimpíada volta a acontecer em um país da América Latina. Outra vez, o país-sede vive turbulências: um impeachment contestado por setores sociais, escândalos de corrupção, atrasos nas obras e protestos nas ruas.
Outra vez as Olimpíadas serão capazes de silenciar as tensões sociais, políticas e econômicas?
Por mais que um paralelo seja distante, muito por causa do intervalo temporal, o Brasil vive um clima tenso no âmbito político. O ano de 2013 foi marcado pela Copa das Confederações e pelo início de uma série de manifestações recebidas com truculência e despreparo por parte das autoridades, sempre com a desculpa da “pacificação”, ou levantando a bandeira da manutenção da ordem, assim como se viu no México.
Em 2014, o Brasil sediou a Copa de Mundo de futebol. “Durante a Copa também tivemos uma forte repressão aos movimentos sociais que se manifestaram contrários à sua realização. Tivemos a supressão de algumas liberdades democráticas, com a Fifa delimitando, por exemplo, perímetros das cidades perto dos estádios onde não se poderia manifestar nem circular. Esse ataque às liberdades democráticas no Brasil também foi justificado pelo fato de o país estar sediando um evento esportivo internacional”, continua a historiadora Sílvia Cezar Miskulin, que procura fazer uma pequena projeção para a Rio 2016.
“Com a aproximação da Olimpíada e a aprovação da Lei Antiterrorismo, talvez possamos ver no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, uma repressão policial forte, com o enquadramento dos movimentos sociais, criminalizando-os. O espaço para a crítica e as liberdades democráticas, de manifestação e de reunião, poderia, nesse cenário, ser restringido”.
* materia originalmente publicada no Calle 2 no dia 03/08/2016 http://calle2.com/as-turbulencias-pre-olimpicas-no-brasil-e-no-mexico/
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