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TEORIA

A repressão ao “Movimento de 4 de Junho” de 1989 na China

Pierre Rousset*; Com apresentação de Waldo Mermelstein  |

Há 27 anos, um fato tremendo prendeu a atenção do mundo: as centenas de milhares de pessoas que ocupavam a imensa praça Tien’anmen em Beijing eram violentamente escorraçadas de lá por milhares de soldados e tanques de guerra. Na sequência, um implacável massacre ocorreu nas ruas e avenidas próximas da Praça e em muitas cidades da China. Pode chegar a várias milhares o numero de mortos.

A comoção foi abafada pelo governo chinês com mão de ferro. Até hoje as vítimas são caluniadas, censuradas e ignoradas enquanto os familiares lutam bravamente para saber o fim de seus entes queridos. Mas a memória de um evento dessa magnitude não pode ser apagada da história. Na diáspora chinesa, o fato é recordado e em Hong Kong é uma tradição anual.

Um interessante livro da jornalista Louisa Lim, recentemente publicado, chamado “A república popular da amnésia: Tiananmen revisitada” (The People’s Republic of Amnesia: Tiananmen Revisited) traz depoimentos de personagens do massacre. Dirigentes estudantis que permaneceram no país perseguidos pelo sistema. O soldado que estava em um dos batalhões deslocados para a repressão e que conta como incontáveis multidões de habitantes de Beijing impediram as tropas de ser deslocar para a praça, por repetidas vezes. Até que uma estratégia inédita foi utilizada pelos comandantes: todos os soldados deviam ir em roupas civis, disfarçados em meios de transporte público até o prédio da Assembleia Nacional, em Tiananmen, onde receberam uniformes e armas. O depoimento de duas mães de estudantes assassinados que fundaram o grupo das Mães da Praça Tien An Men e que lutam para saber o que ocorreu com seus filhos. Podemos ver um mundo nas sombras, fora dos grandes monumentos e obras da capital chinesa e que não foi apagado.

Quando estive em Beijing pela primeira vez tive o privilégio de ouvir uma palestra e conversar com uma antiga operária e ativista do movimento da época, Lijia Zhang, hoje infelizmente convertida ao credo neoliberal, que trabalhava em uma fábrica em Nanjing (antiga capital no tempo dos nacionalistas) e participou e ajudou a organizar manifestações multitudinárias na cidade em solidariedade aos estudantes. Autora do livro de memórias, “Socialism Is Great!”: A Worker’s Memoir of the New China, que adquiri quando estava em Beijing. Em tempo, a palestra e o livro eram em inglês, o que escapava das garras afiadas da censura chinesa.

Vinte e sete anos depois, quem serão os vingadores da Tiananmen trágica?

O massacre foi um ponto de inflexão decisivo para a restauração capitalista na China, cujo processo vinha de antes, mas que só a brutal repressão e a unificação da liderança do Partido Comunista chinês permitiram implementar com grande sucesso. De lá para cá, cerca de 200 milhões de camponeses emigraram para as cidades e se tornaram os operários do atelier do mundo em que se transformou a China. Em 2009, tive uma pequena imagem das contradições de um país que fora atingido pela crise e obrigado 20 milhões de trabalhadores migrantes a voltar para o interior do país: na estação ferroviária de Beijing pude ver a dimensão do drama: milhares deles esperavam nos imensos salões de espera da estação, sentados ou deitados no chão, comendo, fumando, jogando cartas. Não pude tirar boas fotos porque não me senti com o direito de fazê-lo com o cuidado necessário: a desgraça humana era demasiada. Foi uma das três vezes em que isso aconteceu. As outras duas foram no Museu das vítimas dos bombardeios americanos no Vietnã e no Memorial das vítimas de Hiroshima.

O Blog Convergência rende sua homenagem aos que lutaram, aos que foram assassinados, aos que procuram silenciosamente manter a memória viva do que aconteceu. Mas mais do que nada, olhamos com esperança as ações cotidianas da classe trabalhadora chinesa, que contabiliza muitas milhares de greves e mobilizações por ano contra as condições de extrema exploração pelo capital internacional e chinês, que alegremente se unem neste novo Eldorado. As greves ainda são atomizadas, sem coordenação e com pouco ou nenhum saldo organizativo, coisa que o regime procura ciosamente evitar. Não é por acaso que o orçamento de segurança interna seja ainda maior que o dedicado ás Forças Armadas. Quando irrompem mobilizações, uma rotina é que os serviços de segurança ofereçam o pagamento de uma parte das exigências dos trabalhadores, tolerando as mobilizações, desde que não haja unificação, organismos novos e manifestações públicas muito ostensivas. É claro que este esquema só pode funcionar por um tempo. A queda no ritmo de crescimento do país, a mudança de modelo de crescimento em direção à produção de bens mais sofisticados encerrou a acumulação capitalista alucinante que consumia milhões de toneladas de matérias-primas e grãos e dificilmente haverá um crescimento econômico das proporções das últimas duas décadas e que pode absorver tantos milhões nas cidades. Quanto tempo demorará para que vejamos fenômenos como o da Revolução dos Guarda-chuvas de Hong Kong se transmitirem ao continente? Quanto tempo levará para que haja o salto na organização desta classe trabalhadora gigantesca? Esta será a hora em que os mártires do Movimento 4 de Junho serão reivindicados e as lições desse grande combate serão lembradas, pois por mais que o regime tente eliminar a memória, uma comoção daquela magnitude não foi nem poderá ser esquecida.

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A repressão ao “Movimento de 4 de Junho” de 1989 na China

Dia 4 de junho de 1989, o exército chinês afogou em sangue o maior movimento de contestação conhecido após o início das reformas pós-maoístas de uma década antes. A repressão desse movimento – em Beijing e nas províncias, que começou com a ocupação da Praca Tian’namen[1], desfechou um duro golpe na resistência social e democrática – abrindo o caminho para a contrarrevolução burguesa. Dessa forma, em 1992, o homem forte do Partido Comunista [2], Deng Xiaoping pode pronunciar, por ocasião de uma viagem ao sul do país, um famoso discurso em que traçava o rumo de uma transição acelerada para um novo capitalismo, denominado “socialismo de mercado com características chinesas”.

Em 1989, a amplitude e a radicalidade dos protestos e a importância política das lutas simbolizadas pela ocupação da Praça Tian’anmen eram evidentes – e a repressão sangrenta que se abateu sobre seus protagonistas provocou uma profunda onda de choque internacional. Por outro lado, não ocorreu o mesmo no que toca ao seu significado histórico: a burocracia chinesa buscava originar uma nova burguesia, um novo capitalismo, e essa mutação não poderia ser feita de outra forma que sob um regime autoritário, pois ela implicava uma verdadeira explosão das desigualdades sociais. Porém, o retorno de Deng Xiaoping ao poder, uma dezena de anos antes, tinha alimentado importantes expectativas democráticas. Ele próprio tinha sido um dos principais dirigentes do Partido Comunista que foram vítimas do regime hiper-burocrático instaurado após a Revolução Cultural de 1966-1969. Tinha anunciado a “modernização” do país e começado reformas que em muitos casos tinham sido favoravelmente recebidas, em particular entre os camponeses e os intelectuais.

No entanto, quando Deng Xiaoping promoveu as « quatro modernizações» (agricultura, indústria, defesa nacional, ciências e técnicas), uma “quinta” modernização ficou faltando: a democracia, incluído o direito de criar outros partidos além do Partido Comunista Chinês. Isso era o que pedia já em 1978-79 o dissidente Wei Jingsheng – um ex-Guarda Vermelho da Revolução Cultural – em um jornal mural afixado no Muro da Democracia em Beijing. Portanto, a ocupação da Praça Tian’anmen de 1989 não foi um ato caído do céu; ela foi preparada por uma sucessão de lutas. Após a primeira Primavera de Beijing (1978-79), importantes movimentos estudantis (e sociais) tiveram lugar em 1983, 1985, 1986-87. Eles denunciavam em particular a insegurança que reinava nos campi, a falta de perspectivas profissionais e o favoritismo de que se beneficiavam os filhos dos pais que eram membros do Partido. Petitórios reclamavam a libertação dos prisioneiros políticos. Além de reformas politicas, esses movimentos exigiam a liberdade de associação (em particular, a criação de sindicatos estudantis independentes) e a transparência – em particular com relação ao nível de vida dos dirigentes e de suas famílias.

Na medida em que os anos se passaram, Deng aparecia como cada vez menos renovador, em especial no tema da abertura politica. Outros dirigentes do PC, considerados como mais reformadores, foram retirados do poder. Esse foi o caso de Hu Yaobang em 1987, suspeito de ter apoiado as reivindicações democráticas dos estudantes. Sua morte (de causas naturais), em 15 de abril de abril de 1989, constituiu o detonador de um imenso movimento de protesto. Nesse dia, e depois nos dias 16 e 17, manifestações ocorreram na Praça Tian’anmen. No dia 18, alguns milhares de estudantes organizaram um sit-in diante do Grande Palácio do Povo (onde se reúne a Assembleia Nacional). A ocupação começou de fato e cartazes inflamados, criticando Deng Xiaoping, surgiram nos campi. O movimento se extendeu. Tratava-se de um movimento social heterogêneo, compreendendo estudantes, professores do ensino superior, intelectuais, moradores de bairros periféricos, classe média urbana e operários  – apesar de que os estudantes foram os que deram fundamentalmente o tom da ocupação da Praça Tian’anmen em que eles estabeleceram seu quartel-general.

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De 15 de abril ao massacre de 4 junho

 Na véspera dos funerais oficiais de Hu Yaobang, na noite de 21 para 22 de abril, cerca de 100 000 pessoas, – em sua maioria estudantes – invadiram a Praça Tian’anmen antes que o acesso a ela fosse interditado pela polícia. Eles se concentraram perante o monumento aos heróis do povo e uma delegação solicitou assistir ao enterro. Em Beijing, essas concentrações foram pacíficas. No dia 22, houve choques violentos nas províncias, em Xi’an e Changsha. A censura se abateu sobre Shanghai, onde uma publicação queria exigir a reavaliação da destituição de Hu. No dia 26 de abril, o Diário do Povo denunciou “as violações à ordem pública” e toda nova manifestação foi proibida. Mas a censura ainda não era a regra; de forma geral, os meios de comunicação chineses podiam falar dos eventos. O país estava informado.

O movimento se estendeu e radicalizou. Os estudantes mobilizados fundaram a sua própria associação autônoma. Uma primeira grande manifestação teve lugar em Beijing – avaliada em 50 000 ou 70000 pessoas, segundo as diversas estimativas. Nas províncias, os operários entraram em luta, denunciando também a corrupção e o luxo em que viviam os dirigentes do PC, bem como a inflação e o desemprego. Manifestações ocorreram em um número crescente de cidades (mais de 400 ?) como Chongqing, Shanghai ou Urumqi (região autônoma uigur), a Mongólia Interior, Hong Kong, Taiwan, a diáspora na Europa e nos Estados Unidos. Depois das universidades, o boicote dos cursos se propagou nas escolas secundárias. Os habitantes e um número importante de estudantes das províncias “subiram” para Beijing para participar na ocupação da Praça Tian’anmen. Cantava-se às vezes a Internacional.

Em 12/13 de maio, ocorreu um verdadeiro ponto de inflexão na luta: os estudantes começaram uma greve de fome ilimitada que chegou a incluir entre 1 mil e 2 mil participantes. A inciativa gerou muita simpatia popular. Em Beijing, em especial, boa parte da população demonstrou seu apoio. Numersas comitivas vinham ao local expressar sua solidariedade: estudantes, funcionários administrativos, operários, e inclusive, às vezes, policiais e membros das forças de segurança. Várias centenas de milhares de pessoas por ali passavam diariamente. Numerosas organizações políticas e civis expressavam sua simpatia. A Cruz Vermelha chinesa mobilizou um importante número de funcionários para prestar assistência médica aos que faziam greve de fome. Houve negociações com as autoridades, sobre as quais os meios de comunicação informavam. No entanto, a confusão reinava: o movimento não tinham nem direção central nem programa coletivamente definidos – a indecisão reinava também na cúpula do partido e do estado.

 O clima politico parecia se abrir bastante naquela primavera de 1989. Os e as manifestantes sabiam que poderiam contar com apoios no próprio interior da direção do PC, especialmente por parte de Zhao Ziyang, então secretário-geral do Partido Comunista. Esse foi provavelmente um dos fatores que permitiram que a ocupação da Praça Tian’anmen durasse tanto tempo : de 15/17 de abril a 4 de junho de 1989 – e que explicam que tentativas de negociações com o poder tenham ocorrido tantas vezes. No dia 19 de maio, Zhao Ziyang veio até a Praça Tian’anmen para se dirigir diretamente aos grevistas. Ele os exortou a recomeçar a se alimentar e prometeu que o governo negociaria seriamente as exigências do movimento: « Eu só lhes direi uma coisa. Se vocês pararem com a greve de fome, o governo não se aproveitará para colocar fim ao diálogo, certamente que não ! » Parecia que suas palavras seriam escutadas e a opinião [pública] esperava um desenlace feliz para a crise. Mas Zhao ficou em minoria no aparelho do PC.  Deng Xiaoping se inclinou para o lado dos defensores de uma repressão frontal, como o Primeiro ministro Li Peng.

 Em 20 de maio, a lei marcial foi instaurada. Nove altos oficiais do exército se opuseram a isso, mas de nada serviu. O general Xu Qinxian, comandante do 38º corpo de elite do exércit, detido por se negar a obedecer as ordens, terá que responder perante um tribunal militar.  Altos dirigentes do PC favoráveis ao movimento foram destituídos e postos em prisão domiciliar.  Foi o caso de Zhao Ziyang que assim permanecerá nos 15 anos seguintes; quando ele morreu em 2005, não teve direito a funerais nacionais [3]. No entanto, os policiais e soldados estacionados em Beijing se mostravam incapazes de colocar fim à ocupação da Praça Tian’anmen, ou inclusive simpatizavam com os manifestantes. Surgiram diferenças dentro do exército. Sob pressão popular, vários quarteis da periferia da cidade abandonam o lugar.O poder ordena então o traslado para a capital de tropa provinciais: cerca de 200 mil soldados de 22 divisões de 13 corpos de exérito.

Os habitantes de Beijing erigiram barricadas nos cruzamentos da cidade, fizeram bloqueios de estradas, queimaram ônibus, opõem muros humanos aos soldados. Equipe de jovens em motocicleta asseguram as comunicações entre os bairros. A resistência era fundamentalmente pacífica e praticava a não-violência ativa, mas os moradores às vezes jogavam pedras nos soldados, inclusive alguns coquetéis molotov.  Uma coluna de veículos militares foi incendiada. Os soldados responderam com fogo real, os veículos blindados dispararam. Os combates prosseguiram nas ruas que cercam a praça, oficiais foram retirados dos tanques, golpeados e mesmo mortos. Os condutores de riquixá (triciclos) socorriam os feridos.

Na noite de 3 para 4 de junho, um ultimato foi apresentado aos manifestantes da Praça Tian’anmen (ainda havia alguns milhares deles). Os dirigentes estudantis estavam divididos sobre a decisão a ser tomada. A proposta foi submetida a voto : sair da praça ou ficar e sofrer as consequências. A maioria rejeita o ultimato. Os estudantes presentes deram mostras de grande valor. As forças armadas invadiram a praça, mas deixaram que a maior parte dos manifestantes saíssem sãos e salvos. Em troca, parece que houve muitas vítimas nos arredores, com numerosos mortos nas avenidas que rodeiam a praça e nos bairros periféricos de Beijing. São em sua maioria operários ou laobaixing (gente comum) 4

A repressão em Tian’anmen deu lugar a uma violenta subjugação do mundo do trabalho e dos setores populares urbanos. Especialmente em Beijing, uma parte da população trabalhadora se sublevou e começou a articular suas próprias reivindicações: um verdadeiro pesadelo para a direção do PC. O aparelho de Estado se dividia sob a pressão dos acontecimentos e as divergências no interior do partido. A direção chinesa vivia a síndrome polonesa do Solidarnosc. Depois da onda repressiva em Beijing, as manifestações continuaram em um bom número de centro urbanos do país por vários dias, a população se vestia de preto como sinal de protesto. No entanto, o governo retomou bem rapidamente o controle e destituiu de suas funções os funcionários que tinham favorecido ou tolerado as manifestações. É difícil saber quantas pessoas foram mortas em todo o país, muitos milhares provavelmente.

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Um movimento socialmente heterogêneo

 De forma bem clássica na República Popular da China, houve em 1989 uma estreita interrrelacão entre as lutas de frações na cúpula do partido (e a forma pela qual elas eram percebidas pela população) e a irrupção de um movimento de grande amplitude que expressava o caráter agudo das tensões sociais, cujo alcance extrapolava em muito os assuntos políticos imediatos.  Os temas em torno dos quais se unificaram as mobilizações eram também clássicos. Em primeiro lugar, a denúncia da corrupção, do nepotismo e dos privilégios que se outorgavam os dirigentes – uma questão recorrente que encontramos em toda a história da República Popular. A seguir, a exigência democrática, essa “quinta modernização” que tinha sido a bandeira do Movimento democrático chinês uma década antes e do qual podemos encontrar precedentes em 1957, com o Movimento das Cem Flores. Enfim, uma reação contra o crescimento das desigualdades, as pressões crescentes para desgastar o status dos operários nas empresas públicas e reforçar o poder dos diretores, bem como a ausência de reconhecimento e de oportunidades para os estudantes graduados.

 No entanto, o contexto tinha mudado. O que estava em questão, de forma confusa, era a natureza da “modernização” em curso – e não um retorno à ordem maoísta anterior, que seguia estando muito desacreditada. O caso dos intelectuais é sintomático.  Eles se encontravam na parte inferior da hierarquia oficial das classes sociais após a revolução de 1949.  Eles tinham sido vítimas preferenciais, após as violências fracionais em que submergiu a Revolução Cultural dos anos 60. Eles sofreram terrivelmente. Em sua grande maioria, os intelectuais rejeitavam diretamente, então, o marxismo. Ele tinham uma visão muito pouco crítica, até ingênua, sobre a ideologia neoliberal dominante no mundo. Apoiavam a instauração de uma economia de mercado. Apoiavam Deng Xiaoping e não queriam, sobretudo, um “retorno ao passado”; mas se davam conta que o “enriquecimento de todos” que lhes havia prometido Deng tinha se transformado no “super-enriquecimento de alguns” e que a maioria deles não seriam os prediletos do novo regime. Os professores universitários, por sua vez, consideravam que eram insuficientemente pagos. Muitos dos intelectuais estavam sob a influência da política da « Glasnost » (« transparência ») introduzida na URSS por Mikhail Gorbachev.

De fato, com relação a políticas alternativas, importantes divergências políticas opunham os componentes sociais do movimento. Durante a segunda metade dos anos 1980, a inflação e o desemprego começaram a golpear os assalariados. Sem serem necessariamente «maoístas», muitos operários queriam recuperar as proteções sociais de antes. Em contraste, os intelectuais queriam o aceleramento das reformas: não poderiam falar em nome dos “de baixo” da sociedade, ao aspirarem eles próprios a se integrar aos “de cima” da sociedade. Numerosos estudantes também confiavam em Zhao Ziang, oposto à repressão, ao passo que os militantes operários não esqueciam que era um fervoroso defensor das reformas que os prejudicavam.

 Na Praça Tian’anmen, os operários se reagrupavam nos seu próprio “setor”, que somente poderá ser estabelecido bem mais tarde no centro da Praça devido às reticências da direção estudantil. Delegações de trabalhadores das empresas do Estado vinham em caminhões cheios dar seu apoio ao movimento, sem no entanto explicitar suas próprias reivindicações. Porém, foi constituída uma Associação Autônoma de Trabalhadores, de forma independente dos sindicatos oficiais, à qual se uniu no calor dos acontecimentos Han Dongfan, que dirigiria mais tarde o China Labour Bulletin. Formou-se em meados de abril, quando começou a ocupação da praça, onde seus membros ocupavam um lugar, mas não chega a proclamar suas exigências até os dias 18 e 19 maio, às vésperas da decretação da lei marcial (5). Nas províncias apareceram outras organizações autônomas de trabalhadores.  A Federação de sindicatos chineses, mesmo estando estritamente subordinada ao PC, foi também afetada pelos acontecimentos e pressionada pela base. Chegou a dar dinheiro para os que faziam greve de fome e em seu interior houve numerosos debates sobre uma eventual participação na greve. A decisão de fazê-lo não era automática, não somente para os dirigentes sindicais, mas também para os trabalhadores de base.

 Houve muitos exemplos de contatos estabelecidos entre estudantes e trabalhadores, seja nos locais de mobilizações como a Praça Tian’anmen ou na porta das empresas. No entanto, não chegaram a se estabilizar. Com a má recordação da Revolução Cultural, os operários hesitavam em se embarcar em uma aventura. Quanto aos estudantes, em sua maioria, viviam essencialmente uma revolta espontânea, geracional, contra uma cultura ditatorial e suas injustiças. Mais além da aspiração a rebelarem-se “todos juntos” , raros eram aqueles e aquelas que se colocavam como perspectiva estratégica a questão das relações com o mundo do trabalho. Em muitos lugares, os operários realizavam suas próprias lutas – mas seria necessário, para se ter uma medida de suas proporções, verificar o que ocorria nas províncias, além da Praça Tian’anmen e de Beijing. Infelizmente, ao contrário do passado, eles não receberam o apoio de uma intelectualidade progressista – que não existia então na China. O problema era muito sensível, sobretudo levando em conta de que apesar que os operários nas empresas públicas eram muito conscientes de sua condição social, carecia de qualquer tradição política ou ideológica autônoma.

O Movimento de 4 Junho surgiu em um momento de grande confusão. A continuidade de uma tradição política radical tinha sido rompida pela hiper-violência na qual submergiu a Revolução Cultural, depois pelo hiper-burocratismo do reinado do Bando dos Quatro, que reivindicava Mao. O alcance das lutas intestinas na cúpula do poder não era evidente – e tampouco a direção em que as reformas de Deng Xiaoping conduziriam a China. Mais além das contradições sociais, políticas e táticas, que se entrecruzavam em seu seio, algumas reivindicações elementares mantiveram unidos por muito tempo o conjunto dos seus componentes frente a um pode que se negava a escutá-los: a transparência, a democracia, a criação de organizações independentes (estudantis, operárias…). Na realidade, mais além das questões imediatas – como o temor a perder o controle da situação por parte do núcleo duro da direção do PC – a transição capitalista na China não poderia se dar com formas democráticas.

As resistências sociais prosseguiriam na década de 1990, apesar de que a derrota significou um grave revés. Desde então não se conhecem novas experiências de organização operária independente, do tipo que foram em 1989 as associações autônomas de trabalhadores, tanto em Beijing como em outros lugares. A direção do PC chinês trabalha sem cessar para impedir o desenvolvimento desse tipo de iniciativas.

Notas

* publicado em Viento Sur, em 4 de junho de 2014 (disponível em https://www.vientosur.info/spip.php?article9123). Tradução de Waldo Mermelstein.

[1] A Praça Tian’namen (Praça da Porta da Paz Celestial) encontra-se no centro de Beijing. Com seus 40 hectares, parece ser a terceira maior praça do mundo (depois da Praça Merdeka em Jakarta, Indonesia) e a Praza dos Girassóis de Palmas, no Brasil)..

[2] De volta ao poder, Deng Xiaoping tomou cuidado em não acumular títulos. Ele não era oficialmente mais do que presidente da Comissão militar central, mas tinha colocado vários de seguidores fieis à cabeça do partido e do Estado e constituía-se no centro da direção.

[2] Observemos que as personalidade políticas que o movimento reivindicava (Hu Yaobang ) ou de quem recebia o apoio (Zhao Ziyang) eram favoráveis às reformas econômicas. Eles tinham se oposto durante os anos 1980, junto com Deng Xiaoping, a outros dirigentes como o economista Chen Yun que pediam o fim dessas reformas. Eram de fato muito próximos do próprio Deng Xiaoping, cuja posição sobre a repressão ao movimento parece não ter sido clara por muito tempo.

 [4] Ha muita confusão e testemunhos contraditórios sobre os detalhes dos eventos e sobre o número de mortos. Ver a esse respeito Wikipédia:  Wikipedia: http://es.wikipedia.org/wiki/Protestas_de_la_Plaza_de_Tian’anmen_de_1989
No entanto, é certo que não houve nenhum massacre na Praça Tian’anmen. Ver neste sentido o artigo disponível em :China June 1989: The Myth of Tian’anmen and the price of a passive [western] press.O autor, Jay Matthews, assinala que ele próprio utilizou por comodidade a expressão “massacre de Tian’amen”, mas que isso dá uma imagem equivocada dos acontecimentos e dos setores sociais que sofreram a repressão mais violenta (não esqueçamos que numerosos estudantes foram condenados a longas penas de prisão) Também é o meu caso, inclusive no título do dossiê publicado nesta semana no semanário TEAN, o que merece uma autocrítica. Para um testemunho dos acontecimentos de Beijing, ver também Robin Munro,China June 1989 : Remembering Tian’anmen Square.

[5] Nesses tempos de ebulição, é difícil conhecer o estado de desenvolvimento dessa associação. Parece que o número de militantes ativos segue sendo limitado, mas as adesões formais chegaram a 10 mil (ou inclusive 30 mil, segundo outras fontes).