Betto della Santa |
“Ae fond kiss, and then we sever! Ae farewell, alas, forever!” / “Um beijo apaixonado, e daí nos separaremos! Um adeus, infelizmente, para sempre!” (Robert Burns, Ae fond kiss, 1791, em: Collected Poems of Robert Burns, Wordsworth Editions, Ware, 1994, tradução e adaptação nossas.)
“À juventude se censura amiúde por acreditar que o mundo começa apenas com ela mesma. Mas os velhos acreditam ainda mais piamente que o mundo finda com eles mesmos. O que é pior?”. (Friedrich Hebbel, citado por Antonio Gramsci em: Indifferenti, Città Futura, 11/fev./1917, tradução e adaptação nossas.)
Após breve exibição nos limitados circuitos da 26ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2004) e no Festival do Rio de Janeiro (2005) – em pré-estréia nacional, na Mostra Panorama do Cinema Mundial –, o lançamento no Brasil do longa-metragem do aclamado diretor inglês Ken Loach, Ae Fond Kiss, não recebeu a devida atenção do público ou da crítica.[1] No original – Ae Fond Kiss, Glasgow/Escócia, 2004.[2] Trata-se de uma película incompreendida. Talvez tenhamos algumas pistas para entender porquê. Loach tornou-se conhecido pelas platéias brasileiras, principalmente, através de filmes da dimensão de Terra e Liberdade (1995) e Pão e Rosas (2000) – tratando respectivamente sobre a história social da revolução espanhola, na década de 1930, e a vida quotidiana dos trabalhadores imigrantes, na Los Angeles, nos anos 90 do século passado –, muito embora sua carreira filmográfica aproxime-se já de quatro décadas. A necessidade imperiosa de Loach em expressar esteticamente a “cultura do vivido”[3] das classes trabalhadoras – em suas múltiplas manifestações, a partir de vários eixos e fases de seu próprio desenvolvimento em processual devir – certamente constitui o fio condutor do conjunto de toda sua obra.
Por mais de 50 anos – incluindo mais de 60 filmes, 18 longas, vários docudramas e documentários televisivos –, Loach tem imprimido no celulóide de seus filmes a realidade social e política da sociedade de classes no Reino Unido e, posteriormente, a história global do trabalho, diga-se de passagem, muito antes de haver o que hoje se chama “história global do trabalho”. Desde seus primeiros dias no Canal Britânico de Radiodifusão (BBC, em inglês) – no qual produziu as célebres Wednesday Plays (“Peças de Quarta-feira”) –, passando pelos documentários (muitos deles vetados e/ou censurados) dos anos 80 até, por fim, sua obra cinematográfica do pós-1990. Loach logrou manter um “intransigente compromisso com a experiência operária, retratando tanto a incansável batalha pela sobrevivência na sociedade capitalista quanto a resistência e a luta contra a opressão e a exploração” (Newsinger, 1999).[4] Passou, enfim, incólume à prova da história; enfrentou o conservadorismo de Tatcher, o suposto “fim das ideologias” e o New Labour de Blair. Um novo filme de Loach sempre causa, por conseguinte, uma certa (e justificada) expectativa. Não poderia mesmo ser diferente.
Apenas um Beijo: uma ruptura ou a continuidade?
Em seu terceiro filme rodado na capital escocesa de Glasgow – uma co-produção anglo-belga-ítalo-germano-espanhola que, junto a My Name Is Joe (“Meu Nome é Joe”, 1998) e Sweet Sixteen (algo como “Meus Doces Dezesseis Anos”, 2002), perfaz uma espécie de trilogia não-premeditada – Loach apresenta os conflitos sociais, culturais, nacionais, religiosos, étnicos e até mesmo intergeracionais derivados da relação amorosa surgida entre o disk-jockey (DJ), muçulmano e descendente de imigrantes paquistaneses, Qasim, e sua antagonista, a professora de música, católica, e de origem irlandesa: Raisin. Até aqui o que se nos apresenta é, apesar das particularidades envolvidas, mais uma love story ou, como sugere o título, apenas um beijo. As dúvidas são inevitáveis. Teria Loach abandonado (ou diluído) uma perspectiva crítica tão laboriosamente – e em circunstâncias assaz difíceis – construída através de décadas a fio? Teriam os acontecimentos de 11 de setembro de 2001[5] contribuído para um deslocamento – ético-político, histórico-filosófico e estético-social – no horizonte mesmo do cineasta britânico? Teria a tal agenda pós-modernista[6] – com seus slogans vazios (e, no mais das vezes, neoliberais) de “multiculturalismo globalizante”, “alteridentidade constitutiva” e/ou “elogio à diferença” – obnubilado a visão social de mundo do quiçá último diretor socialista remanescente em todo o Planeta Terra?
Em sua imediaticidade, e de forma um tanto unilateral, poder-se-ia responder às questões acima enunciadas de forma positiva. Neste sentido, o último filme lançado por Loach no Brasil constituiria muito mais uma ruptura do que uma continuidade em relação à trajetória previamente delineada. As evidências empíricas, para comprovar tal “tese”, não faltam. A textura e a ambiência do filme nada tem a ver com a humilhação dos sem-tetos, a angústia da drogadicção ou a assombração do desemprego outrora retratadas. Tampouco a derrota iminente, a traição inesperada ou o indelével fardo da exploração econômica são seu foco preponderante. Mais ainda, seus protagonistas encontram momentos de sublevação em lugar, por um lado, algo distante dos projetos coletivos e, por outro, inédito – ao menos tão ostensivamente – na filmografia do autor: a sublimação do amor romântico com direito, inclusive, a longas e tórridas (estas sim, inéditas) cenas de erotismo explícito e explosiva sexualidade em ato. Em Revolta e Melancolia – obra clássica de Michael Löwy e Robert Sayre – faz-se uma análise da visão social de mundo romântico-revolucionária. Para eles, mais do que uma tendência exclusivamente artística ou escola unicamente literária do começo do Séc.XIX, o romantismo expressa uma visão de mundo complexa, que perdura até nossos dias, por toda parte, como resposta ao modo de vida da sociedade do capital. A convicção – dolorosa e melancólica – de que o tempo presente fez desvanescer no ar certos valores humanos sólidos, esse movimento, como um todo, representa uma determinada autocrítica da modernidade capitalista e da civilização burguesa, também como um todo, quando associa a relação passado-presente a uma certa arqueologia do futuro. Não estamos em total acordo com a ideia força do duo Löwy-Sayre. Na verdade acreditamos que o marxismo revolucionário pode (e deve) ser uma síntese superior tanto à Kultur romântica quanto à Civilization ilustrada, tertium datur dialético e pedra de toque do porvir. Mas não deixamos de reconhecer a consistência – e sofisticação – do argumento destes camaradas em armas para a construção de outro mundo.
O banho de imersão na carta de cognições (e em seu mapa dos afetos), porém, não reduz (de per se) a dinâmica viva das relações sociais. Pelo contrário. O que de fato ocorre, no caso, é uma aproximação – como uma espécie de close-up – à esfera quotidiana da família, da tradição e dos costumes em conflito entre grupos sociais do alvorecer do século XXI que, simultaneamente, produz um distanciamento do plano eminentemente político, em sentido estreito. Se é verdade que a obra de Loach remonta à tradição estético-social do cinema realista britânico – tributária de múltiplas influências, como os Worker’s Theatre Movements dos anos 20 e 30, o neo-realismo da Itália, o realismo poético da França e o próprio Free Cinema Movement da Inglaterra – também o é que a perspectiva trotsquista influenciou decisivamente o olhar do autor. Nesta, cultura e política (ou, se preferirem, política cultural e cultura política) – em sentido amplo – antes do que constituir uma rígida oposição encontrar-se-iam, na verdade, em mútua inter-relação. E, bem se sabe, o marxismo não admite antinomias entre o plano “individual” e o “social”, salvaguardada sua (recíproca e) relativa autonomia. A crítica à economia de mercado e à sociabilidade de equivalências teriam realizado uma espécie de fusão alquímica, inclusive, de certo marxismo a certo romantismo. Vejamos ora o filme mais de perto.
Qasim e Roisin: um novo Romeu e Julieta?
Qasim (Atta Yaqub) – filho de Tariq (Ahmad Riaz) e Sadia Khan (Shamshad Akhtar) – provém de uma família de imigrantes paquistaneses que se instalaram em Glasgow no final dos anos 40. Eles preparam um casamento arranjado para Qasim com sua prima – seguindo a milenar tradição cultural e religiosa do islamismo –, futura esposa que está prestes a chegar à Escócia. Qasim, um jovem e dinâmico DJ em Glasgow, sonha em montar sua própria casa noturna, mas tem sua vida abalada quando conhece Roisin (Eva Birthistle) – mulher independente, atrativa e determinada –, a qual leciona música na escola católica freqüentada por sua irmã caçula, Tahara (Shabana Bakhsh). Os dois se aproximam cada vez mais, apaixonam-se e decidem ficar juntos, como amantes e companheiros. A tensão social classicamente tipificada por Shakespeare no drama de Romeu e Julieta – livre-arbítrio subjetivo versus determinação objetiva – compõe o conflito que dá vida e movimento ao “enredo”.
(Freio de emergência do texto: aí está o quadro sinótico – simples, como não poderia deixar de ser – apresentado pela equipe de divulgação do filme à imprensa e, ato contínuo, preguiçosamente reproduzido, sem grandes alterações, pela ampla maioria do que se chama “crítica especializada”. Porém, isso não é tudo. Na verdade – em se tratando de um filme de Loach, poder-se-ia dizer –, é nada, ou quase nada. Não deixem-se enredar por essa sonolenta e preguiçosa concepção total de mundo cujo fim ulterior não é outro senão o vil mundo do showbizz e suas demandas mercantis de gélido cálculo utilitário… Loach tem antes coisas a fazer e/ou dizer e não negócios a tratar e/ou administrar.)
Desta forma, digamos que o filme começa com a jovem Tahara – irmã mais nova de Qasim – fazendo uma apresentação oral para sua classe. Ela fala (com desenvoltura, carregado acento escocês e um delicioso juízo implícito de sabor libertário) sobre a crescente demonização do Oriente e a subseqüente islamofobia que sucederam os acontecimentos de 11 de setembro – sem poupar críticas a cristãos ocidentais tão proeminentes quanto George Bush e o próprio Papa católico –, colocando em xeque a idéia, simplista, de que os muçulmanos são todos iguais e a noção mesma de “guerra contra o terrorismo”. Ela fala das múltiplas contradições que enfrenta em sua própria vida – enquanto mulher, enquanto jovem, enquanto escocesa-paquistanesa etc. – e como estas a afetam quotidianamente. As contradições e problemas que Tahara sintetiza em si, desde a primeira seqüência – assim como suas respectivas con-seqüências –, representam o conjunto dos conflitos sofridos por toda uma comunidade de muçulmanos, de origem paquistanesa, vivendo em Glasgow já há duas gerações. A adolescente anglo-paquistanesa prenuncia, desde o início, tudo o que há de novo no horizonte do porvir. O velho, nada obstante, não tardará em se manifestar. A estrutura dramatúrgica construída sob a perspectiva da totalidade não comporta, entretanto, qualquer espécie de reducionismo. Não há qualquer indício de maniqueísmo pétreo entre “opressores” e “oprimidos” mas, antes que isso, a representação estético-social das relações dinâmico-causais que lhes são aí subjacentes.
Migrantes: da partilha da Índia (ontem) ao 11 de setembro (hoje)
O universo sob o escrutínio da lente a tudo atenta de Loach parte da justaposição sobre o que seriam – ao menos aparentemente – realidades espacial e temporalmente distantes entre si. Por um lado o atentado em Nova Iorque – em 11 de setembro de 2001[7] – e, por outro, a partilha do subcontinente indiano, em 15 de agosto de 1947. Juntos, paquistaneses e indianos – em cujos respectivos países a Coroa Britânica imperou por mais de 200 anos –, conformam o maior grupo de imigrantes no Reino Unido. Em princípio, o processo de divisão em duas nações distintas, Índia e Paquistão, foi bem acolhida por alguns muçulmanos – enquanto uma solução possível –, para debelar os conflitos inter-religiosos. Após a Inglaterra dividir a Índia em dois países, o poder colonial concedeu independência a ambos. No entanto, isso gerou uma migração em massa, obrigando tanto a hindus (e, depois, a sikhs) abandonarem suas terras em direção ao Sul, quanto a muçulmanos se deslocaram para o Norte.
Foram milhares as pessoas que – ao cruzar a fronteira – foram assassinadas. Em especial as mulheres. A migração massiva em direção às praias protegidas da metrópole britânica foi o resultado de um doloroso processo de divisão cultural e religiosa das colônias. O personagem Tariq Khan – o pai de Qasin – era um desses fugitivos muçulmanos. Suas lembranças – assim como a memória de seu povo-nação – estão marcadas pela violenta e caótica experiência de uma traumática migração forçada. Obrigado a deixar para trás sua terra natal, seu idioma e sua cultura, Tariq aferra-se à continuidade da tradição de seus antepassados. Mesmo que a família Khan seja representada como pertencente às classes intermediárias de bem-sucedidos pequenos proprietários – com acesso à educação superior, estabilidade financeira e certo conforto material; o que destoa, evidentemente, dos demais filmes de Loach – Tariq, ainda assim, resiste às mudanças. Enquanto a primeira geração preservou a tradição islâmica em resposta à miséria, à humilhação e às hostilidades que encontraram no Reino Unido seus filhos, nascidos na cultura do Norte da Europa, cresceram já em meio à sociabilidade ocidental e sob a crescente diluição das referências tradicionais. Mas nós não concordamos com as críticas algo “pequeno-burguesas” – a meio caminho entre os de cima e os de baixo – sobre um suposto pequeno-aburguesamento das posturas de nosso autor.
Não é a primeira vez que Loach trata dos fluxos migratórios contemporâneos e suas imbricações várias. Este universo foi vastamente explorado a partir dos operários de “Riff-Raff”; em Jorge de “Ladybird”; em Carla de “Uma Canção para Carla”; em Rosa e Maya de “Pão e Rosas” etc. Falando sobre o último, Loach afirmou: “Espero que minha história soe universal. Acredito que antes de ser universal é preciso ser específico. Se a estória vale a pena ser contada, ela terá uma aplicação universal. Os imigrantes e seus problemas são, em geral, iguais em todo lugar. São vulneráveis, são mão-de-obra barata e comumente sofrem abusos da sociedade que os recebe”. A diferença é que desta vez trata-se de uma comunidade já estabelecida há décadas e, em especial, uma família inserida como parte da classe média urbana de Glasgow. O registro encontra-se no mais íntimo âmago das relações interpessoais, em angulação estabelecida por fora dos antagonismos fundamentais vividos, enquanto contradições estruturais, pelas massas anônimas de trabalhadores imigrantes. Trata-se de um contexto muito díspar, para dizer pouco, dos carros incendiados por jovens árabes em Paris, naquele então, nos Benlieues de lá.
Religião ou o coração de um mundo sem coração
A onda de xenofobia e racismo que varreu os centros nervosos da acumulação de capital após o 11 de setembro, em especial EUA e Europa Ocidental, só fez agravar as já precárias condições de existência dos trabalhadores imigrantes. Os atentados de 11 de março (2004) e 7 de julho (2005), em Madri e Londres, respectivamente, reverberaram o elemento de islamofobia – ideologicamente vinculado à doutrina de guerra preventiva dos então Bush Jr., Blair & Cia. – no interior do Velho Continente. Não é por acaso que – numa seqüência sem falas – Roisin toca a música “Strange Fruit”, de Billie Holliday, enquanto exibe imagens da ação odiosa do Ku Klux Klan, nos EUA, a seus estudantes. Como na música, as fotos mostram negras e negros mortos – amarrados pelo pescoço e pendurados em árvores –, como “estranhos frutos”. O tratamento dado por Loach à temática está à altura da perspectiva socialista construída a partir de seus filmes e supera, de longe, qualquer aproximação cinematográfica ao assunto produzida no lastro do pós-11 de setembro. Para além das ilusões democráticas (e reflexos xenofóbicos) de Michael Moore em “11/9-Farenheit” (2003) e do sentimentalismo anódino ( e no limite protorreligioso) de Win Wenders em “Terra da Fartura” (2004), Loach constrói um espaço estético onde desmistifica a falsa perspectiva de “choque de civilizações”, a dicotomia positivista “Ocidente versus Oriente” e encontra na religião o lugar social e político para discutir diferentes concepções totais de mundo experimentadas vividamente enquanto uma profissão de fé.
Desde o primeiro momento, distingue-se a religião (credo) das Igrejas (instituições). Assim, Loach despe-se de qualquer preconceito em relação ao Islã como sinônimo de fundamentalismo e, ao mesmo tempo, não cede um milímetro de seu horizonte ateu e materialista. Em determinado momento a câmera capta um diálogo do casal – em viagem de feriado, na Espanha – decisivo para este efeito narrativo. Os dois põem-se a falar sobre suas crenças e, casualmente, encontram várias noções, bastante próximas, entre a Bíblia e o Alcorão. Numa perspectiva totalizante, o roteirista Paul Laverty – assíduo colaborador de Loach – permite-se, inclusive, uma certa “heresia”. Em dado momento, o personagem Qasim – o “muçulmano, ‘mouro’ e oriental” – deixa escapar um ladino sorriso entreaberto enquanto ouve a explicação dada em pleno século XXI por Roisin, a “católica, branca e ocidental”, ao conceito de transubstanciação: “é quando o vinho se transforma no sangue de Cristo, durante a missa”. Ao final das comparações – e livre de qualquer ortodoxia – o casal chega a um acordo: a religião seria uma forma de suportar a miséria terrena, enquanto não chega a “recompensa celestial”. Ou, como diria o jovem Marx sobre o que considera o ópio do povo (1844): “A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito”.[8] O filme expõe contraditoriamente – em aproximação não-confessional – a natureza contraditória da religião: por um lado legitimação passiva e, por outro, protesto ativo contra o status quo. Como o bom humor, a análise da religião exige de nós algo de dialética.
Para não deixar sombra de dúvida sobre seu despojamento, é ao pároco católico – responsável pelo distrito da escola de Roisin – que recaem os pendores doutrinários, retrógrados e medievalistas. O diretor da escola comunica à professora que esta será efetivada após o período de férias. Como de praxe nas escolas católicas da Escócia, no entanto, ela precisa de um documento confessional atestando sua boa-fé. Porém, quando Roisin vai ao encontro do padre, as coisas não correm tão bem. Através da rede de informações paroquial formada pelos fiéis, o padre descobre que Roisin – em suas palavras – “vive em pecado com um Maomé”. Há um debate acalorado que desvela o fundamentalismo religioso (“católico, branco e ocidental”) atuante no Norte Europeu e, em última instância, a não-separação entre Estado e Igreja. O emprego de Roisin é ameaçado. Tudo muito longe do Islã, do Oriente e seus Estados teocráticos.
A relação entre sujeito e estrutura, livre-arbítrio e determinação
Qasim encontra-se a meio-caminho entre Rukhsana – a irmã primogênita que aceita feliz e resignadadamente o casamento arranjado com Omar – e a rebelde Tahara, a caçula que enfrenta os pais para mudar-se de Glasgow e estudar jornalismo. Na verdade, trata-se (Qasim) de um personagem dividido, quase com uma vida dupla. Por um lado, fala pujab e segue à risca as tradições quando junto dos pais e irmãs e – por outro – transforma-se em cosmopolita DJ de música eletrônica (nada poderia ser mais sintomal!) quando à noite, no trabalho. A duplicidade que constitui a subjetividade cindida de Qasim, porém, não deve ser encarada como mera hesitação. O movimento dialético de “vontade” e “contra-vontade” perfaz um certo “equilíbrio precário” na construção do personagem. O expediente brechtiano é potencializado pela técnica de improvisação e ensaio coletivo, em meio ao recurso realista a não-atores e à auto-representação da comunidade paquistanesa – seu sotaque, suas idiossincrasias e seu modo de vida – da própria capital escocesa. Aqui não se trata de mera visitação turística (de um olhar curioso), mas de uma habilidosa circunavegação através dos mares revoltosos de uma tradição alheia – avessa a qualquer mecanicismo –, brindada por ampla pesquisa estética (e criteriosa exposição cênica): para ser discutida, criticada e comparada. É disso, enfim, que se trata.
A incerteza do amor a Roisin representa os passos que Qasim deve dar em direção ao futuro de uma estrutura social igualmente incerta. O fato mesmo da não-renúncia à herança do passado conviver simultaneamente com a disposição em lutar por uma vida plena de sentido – em todos os aspectos que as novas circunstâncias oferecem, como possibilidade em aberto – reflete o próprio espírito de nosso tempo (e o tempo de nosso tempo eleva-se, ao nível discursivo, à velocidade da telemática, da robótica e da nanotecnologia). A sensível erotização do amor – por si só – prenuncia que este não mais pode ser objeto elevado de ascese individual, abstraído da realidade quotidiana. Todo o contrário. Configura-se como complexa síntese de múltiplas determinações históricas, políticas, culturais e sociais e, por último, signo da pugna entre convenção e liberdade. A fruição da liberdade e a busca da felicidade como autodeterminação do ser social é onde e quando respira seu marxismo vivo.
O apelo da religião justifica-se, por sua vez, pelas forças cegas do capital que o sujeito – estranhado de sua práxis e alienado de si – tem de enfrentar vivendo sob o jugo do capitalismo contemporâneo. É um mundo elusivo, fragmentário, fugaz; mas no qual a violência é elemento estrutural e estruturante. A partilha de continentes inteiros, guerras de rapina e o terrorismo de Estado constituem ameaças constantes. A analogia tecida junto a Romeu e Julieta – apesar de recorrentemente aludida na imprensa – foi muito mal explorada pela crítica profissional, enquanto recurso explicativo. Senão, vejamos. Retrospectivamente, a transubstanciação estética do amor shakespeareano pode ser lida como um ensaio histórico – ainda embrionário, no período da Renascença – rumo a um homem livre de obrigações decorrentes das tradições milenares, forma histórico-dramatúrgica reflexa do que seria a autoemancipação político-social:
Julieta – Oh! Romeu! Romeu… Renega o teu pai, o teu nome: ou se não quiseres fazer, jura apenas que me amas e deixarei eu de ser uma Capuleto. (…) é apenas o teu nome que é meu inimigo: tu és tu mesmo e não um Montecchio. E o que é um Montecchio? Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer outra parte que pertença a um homem (Shakespeare, s/d).[9]
Assim sendo, a impotência de Qasim e Roisin frente aos obstáculos que enfrentam para a realização plena de suas individualidades – os laços familiares, a ordem transcendental, as tradições etc. – poderia parecer algo anacrônica no alvorecer do novo século, ao menos para um olhar mais incauto. Enfim, aparência e essência. A etapa histórica de decadência e desagregação da sociedade e sociabilidade burguesas – e crise do capital e sua ordem – faz exacerbar contradições pretensamente relegadas a épocas pretéritas. O patriarcado, a família nuclear, a relação público-privado, o conflito de gerações e a contenda entre tradição e modernidade fazem parte de um arcabouço de diferentes formas e relações de dominação social que se engendram no interior da sociedade de classes, sendo exacerbadas pela lógica do modo de produção (e reprodução) do capital. Tais formas de conflitividade já foram abertamente enfrentadas desde os communards daquela Paris de 1871, passando pelas três revoluções russas do início do século XX, até assumir os contornos contemporâneos da vaga revolucionária de 1968-1974 (os anseios por liberdade plebéia, note-se, têm um longo histórico, em muito anterior ao célebre Maio de 1968) que fez tremer as estruturas de poder, em suas mais diferentes dimensões. A forma e a substância do momento histórico expresso (o hoje) manifestam-se através do modo de vida, da quotidianeidade e da cultura – instância de vivência da dominação e subordinação de classe –, exploradas como esferas de reprodução social. O “eterno presente”, enxergado sob a deformação óptica causada pela extrema proximidade do objeto, traz em seu bojo nova expressão para (um amálgama de) velhos conflitos historicamente não-resolvidos. No limiar entre o ainda-não e o já-não-mais.
O espectro fantasmagórico das gerações mortas oprime, tal qual em um terrível pesadelo, mentes e corações daquelas e daqueles que ainda respiram, pulsam, vivem e batalham. Na verdade, a prostração de Qasim diante de seus dilemas aparece como uma multiplicidade de hipóteses de desenvolvimento; sendo que, a bem da verdade, são todas – à primeira vista – irrealizáveis, ou quase. Sinal dos Tempos? Não se trata de fatalismo. Antes, é a forma encontrada por Loach para sugerir que – mesmo no campo afetivo – não há vida sem luta. O espaço estético construído apreende um amplo e articulado espectro da realidade representada – num esforço por despertar uma certa universalidade humano-genérica (nunca alcançada por sua ilusória paladina, a “globalização”) –, a partir do processo de mimesis (transcriação) do mundo material-sensível. Trata-se de desvendar seu significado mais profundo e, ainda, expor suas contradições imanentes. Fazer refletir. Questionar, estranhar, incomodar. Falta-lhe (ao filme), sem embargo, o passo adiante. Se não um programa, uma poética. Onde se encontram as possibilidades latentes de novas formas históricas e de uma nova sociabilidade? Com que mediações e através de quais instrumentos pode-se buscar a mudança social? Uma vez mais, o calor das grandes fogueiras de Paris – não pelos métodos objetivos empregados, mas pelo sujeito social que sintetiza e põe de manifesto – teria algo a dizer de verdade sobre tudo isso.
Rokhsana Khan – a irmã mais velha de Qasim –, por sua vez, representa o peso morto da História, a bala de chumbo para a inovação, a matéria inerte em que se afogam amiúde os ânimos de mais alto esplendor (Gramsci, 1917). O auge da exasperação, trazido pela inércia, registra-se por um implacável distanciamento crítico da câmera de Loach. Num plano-seqüência marcadamente afastado, bem ao longe (e sem possibilidade de intervenção), Rokhsana impõe – sem qualquer escapatória para o olhar torturado de Roisin (e, conseqüentemente, do angustiado espectador) – a manutenção, aparentemente inexorável, da Ordem legada e transmitida pelo passado. – “Assim o é”, aponta, algo hegelianamente, Rokhsana com o dedo indicador em riste, como quem atesta a inamovível condição de uma incomensurável montanha (se uns dizem que a fé move montanhas e outros que a montanha vai até Maomé, digamos que a metáfora não é inocente…). Mas muito tempo não é sempre. Muito tempo, repetimos, não é sempre. E tudo o que nasce merece perecer.
Ou seja, trata-se de uma disjuntiva férrea de transição histórica; é necessário que o velho morra para que o novo possa nascer. De outro lado, Tahara, plena em beleza e dignidade – e sem se deixar enredar por um passado que lhe imponha seu ser-estar no mundo –, afirma-se, rompendo (negando) as amarras que obstaculizam seu vir-a-ser. Mais uma vez o recurso loachiano à encenação do debate coletivo, representando as vivas contradições que se expressam nas estruturas (através dos sujeitos), irá demonstrar o que há de uno e diverso, especialmente, sua inter-dependência e, ainda além disso – fazendo valer todo o vigor da construção dialética deste espaço estético –, a oposição diametral daquilo que é irreconciliável. Trata-se de uma verdadeira lufada de ar fresco em um sufocante ambiente de tristonho acabrunhamento. A força da personalidade e do caráter da jovem Tahara trata-se de uma apropriação (interna) de possibilidades latentes, momento constitutivo de alternativas de relações sociais em porvir, que se objetiva (externa) em novos modos de pensar, sentir e viver a vida. Aí está o movimento real ao qual alude a película. É aí – fundamentalmente, e a partir deste eixo central – que o “velho” e o “novo” Ken Loach se encontram. (Na verdade, nunca tinham se des-encontrado.) Tudo pode ser transformado. Nada deve ser considerado natural. É preciso encontrar um antídoto contra tudo que aí está.
Considerações finais: “um filme que gera mais perguntas que respostas”
É bem verdade que o contexto de Apenas um Beijo não traz à baila a miséria absoluta, cárceres sujos e/ou aves mortas, como o realismo loachiano retratou em “Cathy Volta Para Casa”, “Meus Doces Dezesseis Anos”, “Kes” etc. Nem há, tampouco, qualquer alusão a um projeto coletivo – de maiorias histórico-concretas; com suas respectivas nacionalidades, aspirações e afetividades – no qual os protagonistas possam apoiar a auto-produção de suas individualidades em busca de libertação.[10] Por outro lado, Loach não defecciona ao debate de questões palpitantes do momento, tais como: islamofobia, “guerra contra o terror” e racismo. Que a tessitura da trama beire o idílio amoroso e as contradições vividas por imigrantes muçulmanos pareçam algo mitigadas no misé-en-scène do autor sugere-nos um certo “reconhecimento de terreno” em devir – tateante, tentativo e exploratório; mas com alta carga de lirismo, sensibilidade e até sensualidade –, por parte de um excursionista de primeira viagem. E navegar é, mesmo, preci(o)so.
Em uma sociedade baseada na padronização serial, na atomização individualista e nas relações mercantilizadas, o romantismo é a revolta melancólica de cognição e afetividade eternalmente reprimidas, passivizadas e, ao fim e ao cabo, degeneradas. Se o capital suscita historicamente indivíduos em si, independentes para cumprir determinadas funções estruturais e esses mesmos indivíduos se transformam em individualidades para si, autônomos, aprofundando pari passu seu “mundo interior”, seus sentimentos mais peculiares, entram então em contradição com o mundo baseado na estandardização massiva. E quando reivindicam o direito de ir e vir de sua aptidão a imaginar um mundo distinto, lindam-se com a suprema platitude mercantil do sistema sociometabolico vigente. Ao revalorizar, a um só e mesmo tempo, unidade e diversidade, comunidade e individuo, o passado pré-capitalista e um futuro que reconstrua crenças por reconstruir – modo de vida e metabolismo social – o romantismo revela obstáculos, mas também possibilidades de repensar a construção de outra sociabilidade. Assim, a autocrítica romântica corresponderia a um certo salto de tigre no processo histórico das sociedades humanas. A crise e a crítica. A utopia concreta, já se disse mais de uma vez, “ou será romântica ou não será”. Não sabemos ao certo. Seria arriscado – ou romântico – apostar? Talvez. Mas é chegada a hora e o lugar de responder à primeira questão.
Ken Loach é a um só e mesmo tempo romântico e revolucionário. Mas sem ingenuidades de quaisquer tipo, messiânicas ou redentoras. Afinal, sabe-se que Loach nunca esboçou qualquer ilusão em relação às potencialidades do cinema de, por si só, mudar o mundo. Mais do que isso: demonstrou-se, no último período, crítico ferrenho tanto da doutrina Bush quanto da islamofobia, combatente do racismo sem qualquer concessão à religião e, por fim, não se rendeu à suposta polarização entre Ocidente e Oriente. Não nos parece razoável, desta forma, que Loach sugira que o amor constituiria uma espécie de lócus privilegiado – de uma “cultura de paz”, “encontro ideal” ou “celebração ecumênica” entre os povos – em plena época histórica de guerras, crises e revoluções. “Espero que o público goste da complexidade da estória, e que esta desperte o desejo de refletir” – diz o próprio diretor – “é um filme que gera mais perguntas que respostas, isso talvez seja o mais importante”. Sobre as ausências supracitadas – e, ainda, como resposta às questões inicialmente formuladas –, subscrevemos as palavras do ensaísta britânico John Newsinger (op. cit.) ao tratar do último Loach:
(…) não há base real para considerar esta ausência enquanto advertência, como um indício de despolitização de seu trabalho. Pelo contrário, podemos estar seguros de que uma voz reivindicando uma política de classe irá indubitavelmente reaparecer – e se colocar como centro do cenário – quando a classe trabalhadora uma vez mais se mobilizar enquanto classe e a resistência tornar-se generalizada (Newsinger, idem, ibidem, grifos nossos).
Loach já deu muitas voltas ao redor do Sol desde a última notícia de sua épico-dialética love history de estilo histórico materialista. Jogou em campo com Eric Cantona, bebeu a parte dos anjos, dançou no salão da comunidade socialista e revivificou o espírito de 1945, dentre muitas outras aventuras e desventuras dos mais diversos tipos. Fundou novas agremiações políticas, empenhou ação – e verbo – em construções sociais e nunca se absteve da mais alta causa da época histórica na qual tocou-nos a todos vivermos e lutarmos. Sua cinematografia recriou sentido e forma para a ortodoxia do que vem a ser a centralidade político-intelectual da classe trabalhadora, a centralidade teórico-metodológica do marxismo revolucionário e, cada vez mais, a centralidade axial-valorativa do internacionalismo proletário. E isso tudo, ainda e quando não diga muito, não é mesmo pouco. O diagnóstico acima esboçado, em negrito, passou à prova da história e não poderia ser mais certeiro. Loach conquistou um lugar único na história das ideias socialistas e dos intelectuais radicais do marxismo mundial. E o fez antes do que com o recurso a conceitos abstratos construindo imagens concretas. Se tivéssemos que responder a seus detratores, à direita e à esquerda, diríamos que o camarada Ken, sem nunca se perder no mundo, encontrou a si mesmo. O caminho é perigoso. Mas a caminhada vale a pena. O que a vida – e a luta – quer de nós é rigor e paixão. Por fim, o Loach romântico e o Loach revolucionário convivem em um longo e verdadeiro relacionamento duradouro que, como a história, não-nunca há de ter um fim. Ao fim e ao cabo temos que dar os dois braços a torcer: isto é, sim, e irremediavelmente, toda uma história de amor.
Notas:
[1] Kenneth (“Ken”) Loach nasceu na cidade de Nuneaton, no Condado de Warwick (“Warwickshire”), na Inglaterra, em 17 de junho de 1936. Seu pai trabalhou como eletricista em uma fábrica de máquinas-ferramenta. (Loach permanece ainda fiel a suas origens proletárias através de toda sua carreira.) Depois de dois anos de serviços na Aeronáutica Real, estudou Direito na Universidade de Oxford. Neste período há uma grande efervescência política ente estudantes, artistas e intelectuais da esquerda britânica – majoritariamente influenciados pelo Partido Trabalhista e pelo Partido Comunista da Grã-Bretanha – em função da invasão soviética à Hungria, da ofensiva anglo-franco-israelense contra o Egito de Nasser e do discurso de Kruschev contra Josef Stálin. Loach passou a se interessar por arte dramática neste mesmo ínterim, durante a faculdade – chegou mesmo a presidir o Experimental Theatre Club –, abandonando qualquer expectativa em relação ao exercício profissional da jurisprudência. Atuou e dirigiu brevemente em muitas companhias teatrais da região de Birmingham e, depois, integrou-se à TV ABC, iniciando-se como diretor-júnior aos 25 anos. A estatal concorrente preparava-se para lançar um segundo canal e, então, Loach foi contratado. Assim, em 1963, Loach entrou para a BBC inglesa, como bolsista-estagiário, onde dirigiu dezenas de programas, capítulos de seriados, dramas e documentários produzidos por Tony Garnett, futuro colaborador. Assim começa a carreira fílmica do jovem Loach. Em 1967 fez sua estréia no cinema com o longa-metragem “A Lágrima Secreta” (ou Poor Cow, no original), e alternou, até 1988, sua carreira cinematográfica com a televisão. Sua consagração internacional adveio com os longas-metragens “Kes” (1970) e “Vida em Família” (1971). Loach sempre se caracterizou por sua perspectiva crítico-revolucionária sem, no entanto, rebaixar a arte audiovisual ao nível do real-socialismo de matiz stalinista. Impôs-se, assim, como um dos cineastas socialistas mais respeitados de toda sua geração. A partir de 1990 concentrou sua atividade como diretor de cinema, tendo realizado nesse período três documentários para a televisão. Dirigiu, entre outros, “Terra e Liberdade” (1995), “Meu Nome é Joe” (1998) e “Pão e Rosas” (2000). “Agenda Secreta” (1990) e “Chuva de Pedras” (1993) receberam o prêmio do júri no Festival de Cannes em seus respectivos anos. Sua longa e variada filmografia abrange um amplo espectro de problemáticas derivadas da vida quotidiana das camadas sociais populares e parte do desenvolvimento de um método de trabalho próprio, coletivo, no qual se dilui a noção autoral (e, portanto, “aurática”) do cinema tradicional. A pesquisa estética em sua concepção – sempre aliada à investigação sócio-histórica (pesquisa bibliográfica, entrevistas abertas, relatos orais autobiográficos etc.) das particularidades envolvidas em cada proposta de trabalho –, envolve desde a locação até a escolha de atores (e, por vezes preferencialmente, não-atores) para a filmagem. Suas técnicas – e os pressupostos que a sustentam – aproximam-no do teatro dialético de Bertold Brecht. Consagrou-se como o mais alto expoente da tradição estético-social do cinema realista britânico – dentro da escola de John Grierson –, muito embora rejeite o que considera apenas um rótulo. Apenas um Beijo – aclamado na França, Alemanha e Brasil – é a sua 18ª película cinematográfica e a 5ª em colaboração com o roteirista Paul Laverty. Juntos, já tinham trabalhado em Canção para Carla, Meu Nome é Joe, Pão e Rosas e Sweet Sixteen. Loach faz parte de uma jovem geração de artistas e intelectuais socialistas britânicos que – sob determinadas circunstâncias históricas – romperam com o reformismo trabalhista e as vulgatas stalinistas e, mediante uma progressiva radicalização, aproximaram-se da tradição trotskista. Recentemente participou do movimento antiguerra (“Stop the War”), exibiu seus filmes mais recentes no Fórum Social Europeu de Londres, em 2004, e se integrou à plataforma político-eleitoral “Respect Coalition”. As inquietudes militantes de tipo loachiano fizeram ainda que fosse um dos membros fundadores do novo partido Left Unity. Na arte socialista e na política radical ainda vamos ouvir muito a seu respeito.
[2] O poema Ae fond kiss (“Um beijo apaixonado” ou “Um terno beijo”, de 1791) – ao qual o título original do filme alude – é de autoria do paradigmático representante do pré-romantismo escocês, o poeta Robert Burns (1759-1796), considerado “um herói nacional” por David Daiches. Robert Burns – de origem social camponesa – nasceu em 25 de janeiro de 1759 em Alloway, Condado de Ayr (“Ayrshire”), na Escócia. Seu amplo registro poético encontrou expressões lírica, cômica e até mesmo fescenina (pornográfica). O universo léxico-semântico da poesia nacionalista de Burns funde palavras de influência gaélica/ersa, escandinava, holandesa e francesa (presentes no escocês, mas não no inglês) e a oralidade – bastante particular – da prosódia quotidiana do povo escocês, no século XVIII. Através da tradição oral dos bardos escoceses, defendeu os movimentos revolucionários de 1789, 1830 e 1848; reverberando seus ideais de liberdade e justiça contra toda forma de opressão e tirania, principalmente advindas da Coroa Inglesa e da Igreja (apesar de religioso, Burns era profundamente anticlerical). Segundo Paul Laverty, roteirista do filme homônimo, tratar-se-ia de “um poema de Robert Burns dedicado ao ser amado a quem somos obrigados a abandonar. É mais uma ode do que um grito de protesto contra uma sociedade que separa dois seres que se amam. Sua melancolia paira sobre a história de amor entre Qasim e Roisin”. No filme, a referência ao poema – considerado a “essência das canções de amor”, por Lord Byron – é explícita, já que Roisin ensaia um recital – junto aos alunos – que tem o poema de Burns como motivo poético, letra esta associada à ária escocesa “Rory Dall’s Port” (1756). As freiras católicas da escola onde Roisin trabalha censuram a utilização de Burns – “alcoólatra e adúltero”, em suas palavras – em recital do colégio. A separação de Robert Burns e Agnes Craig M’Lehose (“Nancy”, a mulher homenageada no poema), por sua vez, também se dá por motivos religiosos, familiares e, enfim, igualmente tradicionais. A perspectiva sincrônico-diacrônica e a dialética entre singular-universal assumem, desta forma, nítidos contornos. Inexplicavelmente, a distribuição internacional produziu pôsteres e cartazes de divulgação do filme sob o letreiro de Just a kiss (“Apenas um Beijo”) – forma adotada para o lançamento no Brasil – no qual se diluí a referência e o argumento centrais que animavam o título original. O leitor brasileiro poderá encontrar uma coletânea bilíngüe – com obras escolhidas – do importante poeta do século XVIII, sob colaboração de um especialista: Burns, Robert. 50 poemas de Robert Burns. Tradução, Introdução e Notas por Luíza Lobo. Colaboração e Seleção de Ross Roy. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
[3] “(…) aquela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver, sendo continuamente renovada em todos as etapas da vida, desde a infância, sob pressões definidas e no interior de significados definidos, de tal forma que o que as pessoas vêm a pensar e a sentir é, em larga medida, uma reprodução de uma ordem social profundamente arraigada a que as pessoas podem até pensar que de algum modo se opõem, e a que, muitas vezes, opõem-se de fato” (Williams, Raymond. You Are a Marxist, Aren’t You?, in: ___. Resources of Hope. Londres: Verso, 1989, tradução de Maria Elisa Cevasco).
[4] Newsinger, John. Scenes from the class war: Ken Loach and socialist cinema. International Socialism Journal, London, Issue 83, 1999, tradução nossa.
[5] Ao dia 11 de setembro de 2001, as Torres Gêmeas do gigantesco edifício comercial World Trade Center, na cidade de Nova Iorque (EUA), assim como parte do maior complexo militar em todo o mundo, o Pentágono de Washington D.C. (EUA), foram destruídos; as primeiras pela colisão de um avião civil de passageiros – seqüestrado para promover um ataque suicida – e, o segundo, provavelmente por uma explosão interna. Supõe-se que o terceiro alvo seria a Casa Branca, numa orquestração contra os principais signos de sustentação do imperialismo norte-americano em suas supremacias econômica, militar e política. O Pentágono prontamente acusou a rede terrorista Al Qaeda, com sede no Afeganistão, de ter protagonizado os atentados. Em seguida, promoveu-se uma ofensiva militar genocida contra o povo afegão, sob a justificação ideológica da “guerra contra o terrorismo”. O recrudescimento do imperialismo norte-americano pode ser comprovado em suas dimensões econômica, política e militar; sendo que sua expressão mais significativa hoje pode ser representada pela doutrina Bush de “guerra preventiva” e a ofensiva militar de milhares de tropas anglo-americanas ao Golfo Pérsico, pela ocupação neocolonialista do Iraque e mediante os “planos de paz” impostos por Israel e Estados Unidos, via Nações Unidas, à Palestina.
[6] Wood, Ellen Meiksins. What is the “postmodern” agenda? – an introduction. Monthly Review, London, N° 47, v. III, tradução nossa.
[7] Não se trata da primeira incursão de Loach sobre o tema. No projeto coletivo de título “11’09’’01 – September 11th”, onze diretores de diferentes nacionalidades (sendo Sean Penn o único dos EUA) – e reconhecidos por sua perspectiva crítica – foram convidados a realizar curtas-metragens sobre o ocorrido com apenas uma orientação: seus filmes deveriam totalizar exatamente 11 minutos, 9 segundos e apenas 1 quadro (em clara alusão à data: 11/09/01). Loach tratou, em sua contribuição, de comparar o ocorrido a um outro e distante 11 de setembro: o dia do golpe de Estado livrado pelo General Augusto Pinochet no Chile – sob auspício logístico-operacional e financeiro dos EUA – há mais de 30 anos. Os demais diretores convidados foram Samira Makhmalbaf, Claude Lelouch, Youssef Chahine, Danis Tanović, Idrissa Quedraogo, Alejandro González Iñarritu, Amos Gitaï, Mira Fair e Shohei Imamura. O filme foi exibido no Brasil no canal de TV a cabo HBO e levou alguns anos para ser liberado no interior dos EUA.
[8] Marx, Karl (1844) Introdução à Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, várias edições, grifos nossos.
[9] Shakespeare, William (s/d). Romeu e Julieta, várias edições, grifos nossos.
[10] Para ficarmos com um só exemplo, a noção de “amor-camaradagem” de Alexandra Kollontai – representante do movimento de mulheres socialistas, que em muito antecede tanto o primeiro sufragismo burguês quanto o próprio feminismo contemporâneo ou suas mais recentes manifestações – seria um interessante eixo norteador para desenvolver uma alternativa estética de resolução cognitiva neste sentido. No marco da Revolução Russa de Outubro de 1917, Kollontai formou parte do primeiro governo bolchevique, junto a Lenin e Trotsky – sendo a primeira ministra (“comissária do povo”, eleita pelo congresso geral de soviets operários e populares) mulher da história da humanidade –, e escreveu numerosos trabalhos sobre a (nova) sexualidade e a (nova) mulher, entre os quais destacamos: Os fundamentos sociais da questão feminina (1909), A sociedade e a maternidade (1921) e Autobiografia de uma mulher sexualmente emancipada (1926).
Löwy, Michael e Sayre, Robert. Revolta e Melancolia. Boitempo, São Paulo, 2015.
Abaixo um atalho em aberto da Sweet Sixteen para o filme da dupla Ken Loach e Paul Laverty:
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