Patrick Galba de Paula* |
Por que a economia mundial assumiu a sua forma estratificada atual? O que explica as diferenças econômicas entre os países e regiões do mundo? O que é o subdesenvolvimento? E a globalização e o imperialismo? É possível analisar estas questões partindo da teoria social de Marx expressa em O Capital? Neste texto trataremos a última questão, como requisito para o tratamento das anteriores, buscando analisar em que condições e de que forma a constituição da economia mundial na qual vivemos atualmente pode ser analisada dentro deste quadro teórico e categorial.
Por motivos que ficarão mais claros ao longo do texto, partimos da ideia o tratamento da questão, nos marcos da teoria social de Marx, não depende qualquer “expansão” da teoria (com a inclusão de um setor externo numa teoria formulada para explicar uma economia nacional, como ocorre, p. ex., nas diversas correntes da macroeconomia), mas de uma concretização. Um caminho para entender isto é retomar elementos do “método da crítica da economia política” de Marx, proposto em seus escritos dos anos 1850-60. Ressalte-se, entretanto, que se fala aqui em um método de estudo para um objeto específico (o capitalismo), e sendo assim, sua adequação já depende da apreensão das características deste objeto (no caso, do fato de que suas leis fundamentais tendam a submeter todas as relações sociais à sua lógica). Não se trata, portanto, de uma “epistemologia” ou de uma metodologia geral de pesquisa.
Em linhas gerais, é possível resumir o método da “concreção” (ou retrodutivo) de Marx nos seguintes pontos:
a) Parte-se do pressuposto de que em todas as sociedades fundadas no trabalho humano, o modo pelo qual os indivíduos humanos vivos se relacionam entre si e com a natureza para produzir e reproduzir suas condições de existência (modo de produção) é o aspecto fundamental que permite explicar como estas sociedades funcionam (MARX, 1982, p. 26-28);
b) Para compreender este modo de produção (o objeto de análise), parte-se de suas características concretas fundamentais buscando analisá-las em suas formas mais simples e abstratas. O objetivo desta etapa é estabelecer as leis de movimento do objeto (o capital), ou suas tendências (caminho do concreto ‘real’ ao abstrato)[1];
c) Uma vez tendo descoberto estas leis de movimento mais fundamentais, o estudo se volta para a compreensão de como ocorrem as manifestações concretas destas tendências. Como existem na realidade distintas tendências (algumas delas contraditórias), além de determinações de origens outras, a questão aqui é descobrir quais sínteses entre as tendências internas e as demais determinações foram necessárias para que o real tomasse a sua forma concreta, buscando reproduzir no pensamento as sínteses históricas que efetivamente ocorreram (caminho do abstrato ao concreto, “concreção” ou “retrodução”);
d) Tal “reconstrução” do real se daria na ordem dos níveis mais altos para os mais baixos de abstração (basta lembrar que o plano original de Marx ia do “capital em geral” – noção que pode ter sido posteriormente abandonada pelo autor – até os níveis mais concretos do Estado, e do mercado mundial).
Assim, uma “teoria da economia mundial” fundada em tal método deveria buscar compreender como ocorrem as manifestações concretas das leis internas do modo de produção explicando / especificando as sínteses entre as distintas tendências internas e outros fatores / tendências que foram necessárias para que o real tomasse sua forma atual. Note-se que o pressuposto aqui é que tal economia mundial seja ela própria produto do desenvolvimento do capital.
De acordo com a teoria proposta por Marx em “O Capital”, as principais tendências do modo de produção capitalista, ou suas leis de movimento, poderiam ser resumidas, ou agrupadas, da seguinte forma:
1- A produção (e reprodução social) é “regulada” pela chamada “Lei do Valor”: No nível de abstração de uma sociedade mercantil simples (formada por produtores autônomos, em suma sem trabalho assalariado) a adequação da produção (oferta) às necessidades sociais (demanda) se daria, principalmente, através dos preços das mercadorias e seria em geral função da produtividade do trabalho[2], no que poderia ser chamado de lei do valor “simples”. Assim os valores seriam a base a partir da qual ocorrem as oscilações de preços que permitem que a produção venha a se adequar às necessidades e as taxas de lucros (se for possível falar em taxas de lucros neste caso) dos setores produtivos são distintas. Já no nível de abstração de uma sociedade capitalista, onde o capital já subsumiu o trabalho e controla o processo de produção, a mobilidade do capital entre os distintos setores faz com que surja uma tendência à equalização das taxas de lucros. Esta tendência faz com que surjam os “preços de produção”, que são uma forma de manifestação do valor mediada pela formação (tendencial) de uma taxa média de lucros, uma categoria intermediária entre os valores e os preços de mercado[3].
2- Ocorre uma tendência de que a riqueza existente concentre-se na forma de capital, que implica numa tendência expansiva da produção e na formação de um mercado mundial capitalista (MARX, 1983, III-1, p. 250; 2011, p. 332), e de que ocorra uma centralização do capital nas mãos de poucos (formação de monopólios) (MARX, 1983, III-1, p. 199-200);
3- Há também uma tendência de crescimento da composição do capital (aumentos de produtividade e do uso de máquinas), que resulta, entre outras coisas, na tendência à queda das taxas de lucro etc (MARX, 1983, III-1, p. 163-176).
Assim, percebe-se que a formação da uma economia mundial capitalista com certas características é uma tendência colocada pelo modo de produção capitalista, ou seja, pode-se perceber tal tendência analisando o objeto em suas formas mais abstratas.
Para Marx o surgimento do capitalismo como modo de produção tem como pré-suposto a existência de um “mercado mundial”. Este primeiro “mercado mundial”, entretanto, é caracterizado pelo predomínio do capital comercial. Isto fica evidenciado com o tratamento dado por Marx ao comércio exterior, no livro III de O Capital, onde analisa as contra-tendências à lei tendencial de queda da taxa média de lucros (MARX, 1983, III-1, p. 180), onde sua unidade de análise é uma economia nacional (Marx também fala em taxas de lucro “nacionais”, por exemplo, no capítulo 8 do livro III). Nestes trechos, o efeito do comércio exterior está relacionado às influências recíprocas que as distintas economias nacionais exercem umas sobre as outras. Marx parte do fato de que as taxas médias de lucros são nacionais, somente assim o comércio exterior pode ter uma “duplicidade do efeito” e influenciar nas taxas médias nacionais.
Este fato levou diversos autores marxistas a afirmar, de forma equivocada, que a “teoria de Marx” se assemelharia a um “modelo de uma economia fechada e homogênea, completamente capitalista” onde “não há espaço para quaisquer diferenças nas condições econômicas entre países diferentes” (BREWER, 1990, p. 26), um “sistema fechado (…) que nunca se estendeu para a totalidade das relações capitalistas, de modo a incluir o imperialismo” (HARVEY, 2001, p. 297-300), ou de que – “a teoria do valor não se aplica às relações entre países, mas apenas dentro de uma economia capitalista competitiva” (SWEEZY, 1942, p. 289). Este tipo de leitura parte do pressuposto de que a “unidade de análise” na qual operaria a lei do valor seria a das economias nacionais, e que Marx seria adepto daquilo que tem sido chamado atualmente de “nacionalismo metodológico”.
Entretanto, a adoção por Marx da economia nacional como unidade de análise em algumas partes de O Capital não é nem um pressuposto da teoria nem sua exigência. Decorre, ao contrário, da situação concreta na qual o autor analisa a evolução da economia mundial, na qual ainda não havia se formado um mercado mundial dominado pela grande indústria.
A formação de um mercado mundial capitalista (MMC), ou seja, subordinado à indústria, aparece para Marx (em sua época) como uma tendência, ainda não confirmada (embora sua concretização parecesse cada vez mais próxima[4]). A característica distintiva fundamental de tal “MMC” em relação ao mercado mundial do qual ele surge é que nele as movimentações internacionais de capitais ocorrem em função das oscilações das taxas médias (setoriais) de lucro, dentro de uma tendência de “equalização” colocada pela mobilidade (nacional e internacional) de capitais.
Portanto, a primeira grande questão para um tratamento marxiano da economia mundial será em que medida ocorreu concretamente a formação de tal “MMC”, suas contradições, e quais sínteses entre a tendência de formação, suas contradições e outras tendências do real foram necessárias neste processo. Apenas respondendo a estas questões se torna possível compreender de que forma a lei do valor influencia no funcionamento da economia mundial.
Observa-se que as principais tentativas de concretização internacional da teoria do valor dividem-se em dois grupos, cada um partindo uma hipótese fundamental distinta no que diz respeito à questão formulada acima. Um primeiro grupo parte da hipótese de que este processo de formação do MMC não tenha se concretizado, em virtude de algum tipo de “bloqueio”, ou seja, a tendência de formação do MMC tenha sido negada por tendências contraditórias. Um segundo grupo considera que tal tendência seguiu operando de forma a dar origem à economia mundial contemporânea que, ainda que de forma desigual e contraditória, estaria submetida às leis gerais do modo de produção capitalista (processo de formação de uma taxa geral de lucros, de preços de produção etc.)[5]. No restante deste texto, o objetivo será analisar criticamente os principais argumentos do primeiro grupo.
Concretização internacional da teoria do valor – A hipótese do bloqueio
Dentre os autores que trabalham com a hipótese de um “bloqueio” na formação do MMC pode-se identificar distintas explicações.
Um primeiro argumento em prol da hipótese do bloqueio é apresentado por Sweezy (1942) e pela escola do “monopoly capitalism” (mas é amplamente aceito por diversos autores marxistas) é a tese do capitalismo monopolista (ou capitalismo monopolista de estado)[6]. O argumento é que ao entrar em sua fase monopolista, o capitalismo teria observado a substituição a regulação da produção pela lei do valor (a posteriori) por uma regulação através do Estado e dos monopólios[7], de modo que a análise da economia mundial deveria partir então para as relações entre os grupos monopolistas e os Estados, e para as disputas entre estes distintos grupos, abandonado a teoria do valor (SWEEZY, 1942, p. 270-271). Supõe-se que a teoria marxiana do valor seria aplicável apenas às “economias competitivas” do “capitalismo concorrencial”, de modo a centralização do capital e a formação de enormes grupos monopolistas teria bloqueado a formação de um MMC que pudesse ser analisado através dela.
Um segundo grupo poderia ser traçado em torno ao argumento de que a resistência da produção pré-capitalista, em certos casos em associação com o capital comercial dos países industrializados, teria levado a uma situação a uma combinação de modos de produção que impediria o avanço das relações capitalistas (KAY, 1975, p. 125-126; WEEKS, 1988, p. 51). O principal argumento apresentado é teórico: Afirma-se que a teoria marxiana conteria a previsão de um processo de convergência nos patamares de desenvolvimento (nivelamento entre países industriais e “dependentes” ou subdesenvolvidos), decorrente da tendência de nivelamento das taxas de lucro e das exportações de capitais dela decorrentes (WEEKS, 2001, p. 10-14). Como este nivelamento ainda não se confirmou, isto indicaria a existência de um bloqueio, ou no mínimo de um atraso deste processo.
Um terceiro grupo também supõe a existência de um bloqueio no processo de formação do MMC, mas afirma que isto não significa que a economia mundial não possa ser analisada partindo da teoria do valor. Em geral, neste grupo, os autores defendem a necessidade de uma “teoria do valor modificada”, ou “ajustada internacionalmente”. O economista soviético I. Dashkovskij parece ter sido o primeiro a propor este tipo de solução em seus artigos de 1927. Dashkoskij argumenta que a natureza especulativa da exportação de capitais na época imperialista que permite apenas o surgimento de preços de mercado internacionais, mas que expressam distintos preços de produção nacionais, mediados por distintas taxas médias de lucro. Afirma também que a operação internacional de lei do valor se expressaria numa tendência de estratificação permanente da economia mundial capitalista decorrente de uma tendência de aumento da renda agrária em detrimento dos lucros industriais nos países “atrasados” (DASHKOVSKIJ, 1927, p. 91).
Mandel (1982) defende um ponto de vista semelhante. Para ele a existência da troca desigual (transferência de valor intersetorial dos países periféricos para os países centrais, uma decorrência da formação de uma taxa média de lucro) atua como um mecanismo importante do subdesenvolvimento, mas argumenta que ela não depende da existência de qualquer nivelamento da taxa de lucros (Mandel, 1982, pp. 248), que não é o único mecanismo do subdesenvolvimento e que após a partilha do globo característica da etapa imperialista do capitalismo o principal mecanismo do subdesenvolvimento passa a ser o controle da acumulação de capital na periferia possibilitado aos capitais dos países industriais pela exportação de capitais (MANDEL, 1982, cap. 2). Além disso, Mandel defende que o subdesenvolvimento e a estratificação da economia mundial não são apenas uma peculiaridade da evolução histórica da expansão capitalista, mas sua forma necessária decorrente de suas leis internas, ou seja, características fundamentais da concretização internacional da lei do valor de Marx na ausência de um nivelamento internacional das taxas de lucros (Mandel, 1982, pp. 46-49).
Apesar de tudo isso, Mandel entende que o processo de constituição de um mercado mundial capitalista foi bloqueado e não pode ser completado. O principal argumento ele e deste terceiro grupo no qual incluímos, além de Dashkovskij e Mandel também o trabalho de Matsui (1970), é empírico: as taxas médias de lucros em distintos países observariam uma enorme discrepância, em especial quando considerados países industrializados, vis-à-vis países exportadores de produtos primários (MANDEL, 1982, cap. 11). Logo, não tendo ocorrido um nivelamento (formação de uma taxa média geral internacional de lucros) não poderia ter se formado o MMC.
Apreciação crítica
Nesta seção será feita uma análise crítica, ainda que de forma sintética, dos principais argumentos em defesa da hipótese de que um bloqueio no processo de formação de um MMC.
a) Fase monopolista do capitalismo impediu a formação de um MMC que pudesse ser analisado através da teoria do valor?
No que diz respeito a este argumento, é possível afirmar que o próprio Marx, em O Capital, coloca em questão toda essa elaboração sobre uma nova fase do capitalismo “monopolista”, apontando que os monopólios também estão, em última instância, submetidos às mesmas leis que os capitalistas “concorrenciais” (MARX, 1983, v. III-2, p. 295-310). Aliás, já na em sua polêmica com Proudhon nos anos 1840, Marx se pronunciou sobre o tema de forma absolutamente distinta da visão do “capitalismo monopolista”, apontando que a síntese entre “concorrência” e monopólios implica em um tipo específico de concorrência, na qual os monopólios seguem submetidos às tendências gerais do modo de produção capitalista (MARX, 1985, p. 141-142).
Autores como Mandel (1992, p. 58-59) e Shaikh (1991, p. 83-86) opinam neste mesmo sentido, demonstrando a ligação entre a noção de capitalismo monopolista contraposta à teoria do valor e os postulados da economia neoclássica, como a noção de “concorrência perfeita”.
O ponto central aqui é que a noção de “concorrência perfeita” (ou sua variação “imperfeita”) difere completamente da noção de concorrência presente na teoria do valor de Marx. As noções de “concorrência perfeita” ou “imperfeita” são “estados” do mercado, ou seja, situações nas quais os ofertantes de mercadorias (capitalistas) são tomadores de preços (estes são “ditados” pelo mercado), a entrada e saída dos mercados é livre, os produtos são homogêneos, todos os agentes tem informação “perfeita” etc. Já para Marx concorrência é um processo através do qual os capitalistas se enfrentam numa verdadeira guerra pela apropriação do mais-valor produzido, independente se são monopólios, oligopólios ou donos de pequenos capitais. Na teoria de Marx todos os capitalistas definem seus preços e quantidades a produzir, e apenas a posteriori podem verificar o acerto de suas decisões. Como não há nenhum equilíbrio prévio, e o ajuste a posteriori (via variações de preços decorrentes das variações de oferta e demanda) sempre encontra uma estrutura de produção modificada, de modo que não há também qualquer tendência ao “equilíbrio”, gerando momentos de crescimento e de crises cíclicas. A guerra pela apropriação do mais-valor gera inúmeras determinações (diversas das tendências do capital decorrem dela) e todos os capitais estão submetidos a ela independente de seu tamanho ou posição no mercado. O que muda em determinadas situações concretas de monopolização é que certos capitais estão em melhores condições para se apropriar de uma parcela maior de mais-valor do que produziram, em alguns casos por longo tempo (por exemplo, a possibilidade, através de preços monopolistas, ou de produção abaixo da demanda, se obtenha um superlucro por mais tempo do que o “normal”). Isto não altera o fato de que todos os capitais estão submetidos à disputa pela apropriação (inclusive inter-setorial) do mais-valor, e sofrem conseqüências dos movimentos de capitais gerados pelas oscilações da taxa de lucros, além de não poderem, ao contrário do que imaginou Sweezy, seguir se apropriando indefinidamente de mais-valor que não tenha sido produzido (haja vista as inúmeras falências que atingem, mesmo capitais em posições monopolistas, nos momentos de crise).
b) Desenvolvimento desigual demonstraria que “tendências de convergência” estão bloqueadas, ou atrasadas?
Aqui, em primeiro lugar, é necessário ressaltar que, embora isto não possa ser demonstrado nos limites desta exposição, não há em lugar algum da teoria social marxiana a proposição da existência de quaisquer tendências de convergência entre os patamares de desenvolvimento das distintas regiões (países) da economia mundial sob o capital.
A interpretação contrária, muitíssimo difundida, parte do pressuposto (expresso ou não) de que Marx de alguma forma teria incorporado a teoria quantitativa da moeda (TQM), o chamado mecanismo de fluxo preço-espécie humeano e, assim, sua teoria resultaria também numa teoria de vantagens comparativas no âmbito do comércio e investimento internacionais (assim como em Ricardo e na escola neoclássica).
Shaikh (1991) demonstra de forma clara que esta última interpretação incorre em um grande equívoco. Uma vez consideradas adequadamente as teorias do valor e da moeda de Marx, a visão do comércio e investimento internacional resultante seria a de uma “lei de vantagens absolutas”, determinada pela produtividade (tecnologia, mais “produtividade direta”, relacionada com a adequação da força de trabalho à produção capitalista), e que geraria tendências crônicas de déficit e endividamento nos países onde a produtividade cresce mais lentamente (países periféricos, chamados eufemisticamente de “em desenvolvimento”, termo que já denota uma suposição de convergência). Estas tendências, por sua vez, dariam origem a pressões sobre a taxa de juros (e não sobre os preços, como prevê a TQM)[8] e fluxos de exportação de capitais (investimentos em carteira, não necessariamente produtivos) para compensá-las (SHAIKH, 1991, p. 155-217). A questão das tendências geradas por estes fluxos de capitais, e por aqueles determinados pelos diferenciais na taxa de lucros nos diferentes países (para os processos de produção, acumulação e apropriação, em especial nas regiões e países periféricos) não será analisada aqui[9]. O ponto é apenas que nada garante que eles gerem tendências de convergência, como as previstas pela teoria das vantagens comparativas (muito pelo contrário).
c) Existência de distintas taxas médias de lucro, quando medidas regionalmente, demonstraria inexistência do MMC?
Este tipo de argumento empírico, por sua vez, depende de um tipo de interpretação específica de como ocorreria a integração econômica internacional. É muitíssimo conhecido o fato de que, na teoria marxiana, o procedimento de síntese entre a circulação e a produção substanciado na teoria dos preços de produção não implica em um nivelamento das taxas de lucros de todos os capitalistas, mas apenas das médias setoriais[10]. Entretanto o “mundo” pós-formação do MMC esperado pelos autores que compartilham desta interpretação é um “mundo” onde as taxas de lucros foram completamente niveladas. Uma previsão de confirmação bastante improvável, para dizer o mínimo.
Em primeiro lugar, é importante notar que mesmo numa situação onde houvesse nivelamento regional das taxas de lucros médias setoriais (um processo de formação de uma taxa geral por uma “via nacional”), grandes diferenças entre estas médias quando medidas em diferentes países (do centro e da periferia do sistema) não necessariamente indicariam a inexistência de um processo formação de uma taxa geral internacional. Para averiguar a existência de tal processo, seria necessário analisar seu movimento relativo, bastando para verificá-lo, que ele fosse tendencialmente de aproximação.
Mas a coisa toda fica ainda mais complexa, e difícil para a sustentação da interpretação em análise. Dentro de uma economia nacional nada indica que as taxas de lucros médias, medidas regionalmente (medias por Estados, ou por províncias, por exemplo), apresentariam tendência de nivelamento, uma vez que os setores de atividades e os níveis de produtividade dentro de cada uma delas se distribuem de forma desigual no espaço e variam no tempo. Nada garante que no processo de formação de uma taxa geral intersetorial venha a ocorrer um processo de nivelamento inter-regional. O mesmo pode-se dizer em relação à economia internacional. Deste modo, taxas médias regionais distintas são absolutamente consistentes com a possibilidade de um nivelamento inter-setorial à escala internacional[11].
Conclusão
Não foi objetivo destas notas demonstrar a existência de um MMC, ou mesmo desqualificar completamente a hipótese de bloqueio em seu processo de formação. Muitos dos pontos levantados por estes autores são relevantes e pertinentes para o debate. Entretanto, da análise feita percebe-se que os principais argumentos até o momento utilizados na defesa de sua tese central não se sustentam diante de uma rigorosa apreciação à luz da teoria social marxiana sobre o modo de produção capitalista, de forma que sua ampla adoção como pressuposto não-demonstrado (intencionalmente ou não) pela maioria dos estudos de inspiração marxista sobre a economia mundial não parece se justificar. A elucidação do funcionamento das leis internas do modo de produção capitalista no processo de formação do mercado mundial, suas expressões concretas e suas contradições segue sendo um importante campo para o desenvolvimento da teoria marxista.
Referências:
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DASHKOVSKIJ, I. (1927). International exchange and the law of value (partes I e II). In: Pod Zramenem Marxizma números 4 (pp. 131-151) e 5 (pp. 59-91). Traduzido para o Inglês por Noa Rodman.
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Notas
* Este texto é uma versão modificada de outro originalmente publicado nos Anais do VIII Colóquio Internacional Marx e Engels – CEMARX – Unicamp em 2015 com o título “Teoria do valor e Economia Mundial – A hipótese do bloqueio na formação do mercado mundial capitalista”.
[1] Os itens b, c e d seguem a formulação metodológica produzida por Marx em sua “introdução geral” de 1858 (MARX, 2011, p. 54-61). Um tratamento mais aprofundado destes aspectos pode ser visto em De Paula (2014, p. 184-189).
[2] Rubin propõe o seguinte esquema para ilustrar estas relações prioritárias de causalidade numa sociedade mercantil simples, onde a regulação é pelo valor-trabalho: Produtividade do trabalho → trabalho abstrato → valor → distribuição do trabalho (RUBIN, 1980, p. 268).
[3] Rubin esquematiza assim as relações fundamentais de causalidade na sociedade capitalista: Produtividade do trabalho → trabalho abstrato → valor → preço de produção → distribuição do capital → distribuição do trabalho (1980, p. 268).
[4] Ver, por exemplo, a nota introduzida por Engels no livro terceiro de O Capital, publicado em 1894, sobre o tema (MARX, 1983, III-2, p. 28). Outra questão, que não aprofundaremos aqui, se dá em torno ao argumento elaborado recentemente por Pradella (2015), a saber, de que a posição de Marx desde os manuscritos de 1861-63, teria desenvolvido uma noção de capital (e concorrência) como um sistema em expansão que polarizava o mundo, centrado (naquele momento) na expansão capitalismo industrial britânico, o que nos parece correto (e neste caso diversos dos argumentos em defesa da “hipótese do bloqueio” já estariam automaticamente excluídos, uma vez que se considerasse apenas o capital “dentro de suas fronteiras”). Mas Pradella também conclui que esta noção de capital teria como decorrência o abandono da perspectiva de um livro sobre o mercado mundial (ou seja, da necessidade de uma concretização da teoria do valor para tratar adequadamente do tema), o que nos parece uma confusão quanto aos níveis de abstração em que se situam os 3 livros de O Capital que foram terminados por Marx.
[5] Em outro trabalho (DE PAULA, 2015) foram analisadas duas das principais interpretações sobre a concretização internacional da teoria do valor pertencentes a este segundo grupo (as de Ruy Mauro Marini e de Anwar Shaikh).
[6] Embora a escola da Monthly review seja responsável pela defesa mais conhecida deste tipo de tese nos meios acadêmicos, interpretações “historicistas” da teoria social marxista (e de O Capital) segundo a qual o capitalismo teria (em distintos momentos) observado mudanças de fase tão profundas que as suas leis internas fundamentais (como a lei do valor) poderiam deixar de operar podem ser traçadas até autores tão antigos quanto Karl Kautsky, que em sua obra sobre a questão agrária, ainda em 1898, afirma que “a lei do valor não tem qualquer efeito porque nos deparamos com o monopólio”, e que “A lei do valor pressupõe a livre concorrência” (KAUTSKY, 1972, p. 89). Seus maiores divulgadores, entretanto, foram os autores dos “manuais” de marxismo produzidos pelo estalinismo. A noção de capitalismo monopolista de Estado veio a se tornar um aspecto fundamental das posições “oficiais” de Moscou sobre o desenvolvimento capitalista e compôs, junto com o unilinearismo e o dualismo, o arsenal fundamental do “marxismo-leninismo” e dos PC’s para a análise do desenvolvimento. Ver, p. ex. Kuusinen (1960, p. 64, 136-144 e 218).
[7] “the most serious aspect of monopoly from an analytic point of view, is that the discrepancies between monopoly price and value are not subject to any general rules” (SWEEZY, 1942, p. 54)
[8] “É na verdade a velha escapatória (the old humbug) de que as mudanças na massa de ouro existente, ao aumentarem ou diminuírem o meio de circulação no país, teriam de fazer subir ou cair, dentro do mesmo país, os preços das mercadorias. Se o ouro é exportado, segundo essa teoria (currency theory) os preços das mercadorias têm de subir, no país para onde vai o ouro e, com isso, o valor das exportações do país exportador de ouro no mercado do país que importa ouro; o valor das exportações deste último no mercado do primeiro, ao contrário, cairia enquanto ele subiria no país para onde vai o ouro. Mas, na realidade, a diminuição da quantidade de ouro apenas aumenta a taxa de juros, enquanto seu aumento a reduz; e se essas flutuações da taxa de juros não fossem levadas em conta na fixação dos preços de custo ou na determinação da procura e da oferta, então elas deixariam os preços de mercado completamente intocados”. (MARX, 1983, III-2, p. 76). Impressiona que, apesar de diversas passagens como essa d’O Capital, existam tantos economistas que “entendam” que Marx era defensor da TQM, como o fazem Screpanti & Zamagni (2005, p. 40-41) em seu aclamado trabalho de HPE, enquanto tantos outros acreditem que esta linha da crítica a esta teoria tenha sido inaugurada por Keynes.
[9] O esclarecimento sobre estas tendências, suas contradições e formas de expressão concreta são justamente alguns dos pontos centrais cuja compreensão permitiria a construção de uma concretização internacional da teoria do valor. Embora este fosse o plano original de Marx de 1857-58 (ver Marx [2011, p. 54-61]), a verdade é que o atraso do marxismo é tal que até hoje esta tarefa não foi completada satisfatoriamente.
[10] Shaikh (2000) vai mais longe e afirma que o elemento fundamental para a migração de capitais de um setor para outro não seria sequer a média setorial, mas as taxas de lucro observadas pelos capitais mais eficientes de cada setor, que Shaikh chama de “capitais reguladores”.
[11] Também este ponto foi melhor desenvolvido por Shaikh (1991, p. 210-217).
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