Soraya Misleh |
As mulheres são invisibilizadas nos processos de luta, e na Palestina a regra não é exceção. Pelo contrário, diante das representações sobre as mulheres árabes, descritas pelo intelectual palestino Edward Said em “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”, é lugar comum a ideia de que elas estão distantes das ruas e mantêm-se submissas em seus lares. No caso das palestinas, nessa construção de um “Oriente” atrasado e de bárbaros ante um “Ocidente” civilizado, que serve à dominação imperialista, quando são reconhecidas como participantes da resistência (em exceção a um universo erroneamente considerado homogêneo), são taxadas de “mulheres bomba”, “terroristas”.
As palestinas e árabes em geral não estão confinadas ao espaço privado pela sua natureza, tampouco são terroristas. Enfrentam os mesmos desafios que as mulheres de todo o mundo diante de sociedades patriarcais e conjugam essa luta contra a opressão de gênero à por libertação e justiça. Nessa direção, historicamente, pululam exemplos de sua integração à heroica resistência contra a ocupação, a colonização e o apartheid israelenses.
Enfrentam-se com um feminismo que serve à dominação, ao não enxergar a diversidade do mundo árabe e fundar-se em estereótipos sobre as mulheres árabes. São movimentos de mulheres que baseiam sua “solidariedade internacional” na concepção falsa de que suas congêneres árabes devem ser salvas dos atrasos impostos por uma região de bárbaros, sob a bandeira dos “direitos humanos”. Contra tal caricatura, no mundo árabe, ganha espaço o chamado “feminismo anticolonial”.
As mulheres na história
Passo importante nessa desconstrução é o reconhecimento da localização das mulheres palestinas na história. Como aponta a feminista egípcia Nawal El Saadawi, em “A face oculta de Eva – As mulheres do mundo árabe”, foram elas pioneiras nos protestos contra os primeiros assentamentos sionistas ao final do século XIX – a serviço da colonização de terras e conquista do trabalho, que integravam o projeto sionista de limpeza étnica para constituição de um estado exclusivamente judeu na Palestina (Israel). Já em 1903, período que marca o começo da segunda onda de imigração sionista, criaram uma associação de mulheres.
Nos anos 1920, sua atuação se fortaleceu e formaram vários comitês populares para articular protestos e demais ações de desobediência civil, bem como garantir auxílio a feridos em manifestações. Em 1921, Emilia As-Sakakini e Zalikha Ash-Shihabi formaram a primeira União de Mulheres Árabes-Palestinas, que organizou protestos contra o mandato britânico, a colonização sionista e a Declaração Balfour – em que a Inglaterra garantia a constituição de um lar nacional judeu em terras palestinas. Ativistas famosas na época incluem Maryam Izz-Din Al-Qasam, Nabiha Nasir e Aqilah Al-Budeiri.
Em agosto de 1929, participaram de manifestação reprimida violentamente pela Grã-Bretanha. Entre os 116 participantes mortos, nove eram mulheres. Muitas outras foram feridas, presas ou espancadas. No mesmo ano, aconteceu entre 26 e 29 de outubro o primeiro Congresso de Mulheres Árabes em Jerusalém, com o objetivo central de organizar o movimento de mulheres face à situação política no terreno, com o aumento da colonização sionista. As mais de 300 participantes concordaram em chamar o boicote a produtos britânicos e estabelecer um centro de informação ao mundo sobre o que estava ocorrendo na Palestina, bem como em promover novos protestos. A conferência aprovou o envio de uma delegação formada por 14 mulheres para entrega ao Alto Comissariado Britânico de suas demandas: o cancelamento da Declaração Balfour, o impedimento da imigração sionista e a substituição de um procurador-geral judeu por seu conhecido racismo. Após a reunião, as 14 mulheres se somaram a outras 100 em uma carreata pelas ruas de Jerusalém, com parada em frente a embaixadas estrangeiras.
Na década seguinte, a luta se ampliou. Em abril de 1933, mulheres de diversas partes da Palestina marcharam em Jerusalém contra a visita aos lugares sagrados pelo general britânico Edmund Allenby. Na revolução de 1936-1939 contra o mandato britânico e a colonização sionista – cujas causas e análise da derrota estão explicitadas pelo revolucionário Ghassan Kanafani em “A revolta de 1936-1939 na Palestina” –, as mulheres também se destacaram. Em 4 de maio de 1936, 600 estudantes realizaram uma conferência em Jerusalém e protagonizaram uma greve que durou seis meses. Em outras partes da Palestina, organizaram grandes marchas e comitês populares. Além de promoverem protestos, recolhiam fundos para assistência às famílias dos mortos e prisioneiros e auxiliavam no transporte de insumos básicos e armas. Nas aldeias, lutavam lado a lado com os homens para defender suas terras. Uma dessas heroínas é Fatma Ghazal, morta em combate no dia 26 de junho de 1936.
Outro nome que merece destaque na história palestina é o de Fatma Khaskiyyeh Abu Dayyeh. Na revolução de 1936-1939, ela esteve no comando do local de armazenagem das armas dos revolucionários e em 1948, durante a nakba (catástrofe palestina, representada pela criação do Estado de Israel), chefiou um grupo misto de 100 combatentes. Também se formaram no período brigadas exclusivas de mulheres, que se colocaram na linha de frente contra a expropriação de suas terras. Entre elas, “The Sisters of Al-Qassam”, de Haifa; e “Zahrat Al-Uqhuwan” (o crisântemo), um grupo secreto fundado em Yafa em 1947 como uma instituição de caridade para ajudar os estudantes palestinos pobres, mas que tornou-se um braço armado depois que uma de suas fundadoras, Moheeba Khorsheed, testemunhou o assassinato de uma criança palestina.
Já diante da consolidação do projeto sionista, em 1965, foi criada a União Geral das Mulheres Palestinas, atrelada à Organização para a Libertação da Palestina (OLP). No início seu papel ainda era, contudo, limitado, reservado à assistência social e aos cuidados com a saúde. Mas a política não foi deixada de lado. Ao final dos anos 1960 e início dos 1970, diversas delas partiram para a ação direta, diante da omissão internacional à violação cotidiana de direitos humanos e a expansão israelense, que em 1967 resultou na ocupação por parte dessa potência bélica de toda a Palestina histórica. A mais conhecida em todo o mundo é Leila Khaled. Então com apenas 24 anos, participou do sequestro de aviões em troca de prisioneiros políticos e colocou em evidência a causa palestina. Foi detida em uma das ações e saiu após outra operação do gênero.
Nas intifadas (levantes) de 1987-1993 e 2000-2004, novamente as mulheres foram às ruas. Na primeira, as que viviam nas áreas rurais assumiram papel central, mas as que residiam na região urbana também marcaram presença. Para se ter uma ideia, um terço das baixas era da parcela feminina. O número de mulheres detidas passou de centenas do início da década de 1970 para milhares nos anos 1980.
Nos últimos 45 anos, foram 10 mil presas políticas. Em 2011, houve troca de prisioneiros e passaram a nove. A partir de outubro último, com o início da nova intifada, 106 foram detidas – um incremento de 70% em relação a 2013 – e hoje permanecem nos cárceres israelenses 60 delas, as quais têm se somado às constantes greves de fome contra as más condições a que são submetidas, assim como os 7 mil palestinos detidos ilegalmente pelas forças de ocupação. Na intifada em curso, as mulheres, em sua maioria jovens, são 40%.
Ao longo de toda essa trajetória, elas se destacaram também em outras trincheiras de luta, como no campo das palavras. No âmbito cultural, entre as que merecem ser lembradas encontra-se Fadwa Touqan, que nasceu em 1917 na cidade de Nablus, na Cisjordânia, e faleceu em 2003. Nas palavras de Moshe Dayan, chefe do exército israelense em 1967, seus versos eram mais subversivos do que dez atentados.
Muitas heroínas
As mulheres são as que mais sofrem em situações de emergência humanitária, conflitos armados e frente à ocupação da Palestina. Mas não se intimidam. Representando quase metade da população total de 3,9 milhões nos territórios palestinos ocupados militarmente em 1967 (1,8 milhão), estão reunidas em diversas organizações, por educação, saúde, trabalho, contra a ocupação e o sexismo. Ali, assim como nos campos de refugiados, em que são milhares, na diáspora ou onde hoje é Israel, sempre se fizeram e fazem ouvir e notar, desafiando o projeto sionista.
Em visita à Palestina, a voz feminina é decisiva: “Antes saíamos de nossa terra, porque achávamos que voltaríamos em breve. Hoje podem destruir nossas casas, roubar nossas oliveiras, nos agredir, não vamos embora. Nem que tivermos que morar numa tenda, aqui é nossa terra.”
A história palestina de resistência é repleta de nomes de heroínas, que se recusaram e se recusam a permanecer em silêncio e inertes até que a Palestina seja livre. Para além dos nomes registrados na história, há milhares anônimas. Nawal El-Saadawi, em “A face oculta de Eva”, conclui: “A extensa lista de mártires serviria para encher as páginas de todo um capítulo. Seus feitos intrépidos um dia serão admirados pelas futuras gerações.” Neste 8 de março – Dia Internacional da Mulher –, lembrá-las é o mínimo. É papel de cada uma que acredita em um mundo justo inspirar-se em seu legado.
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