Carlos Zacarias de Sena Júnior* |
Na história do movimento comunista, a questão das políticas de frentes (única, popular e nacional) sempre foi um tema por demais espinhoso, de maneira que, se para Lenin e para Trotsky, dois dos principais líderes da Revolução Russa, a política da frente única (FU) deveria ser usada com máxima flexibilidade tática desde 1921, para os comunistas conselhistas e a ultraesquerda a FU significava uma espécie capitulação à socialdemocracia e/ou aos seus governos. Não por acaso, Lenin dedicou boa parte do seu livro sobre o esquerdismo, escrito em 1921, para combater aquilo que acreditava ser a doença infantil das correntes comunistas do período.[i] Ainda no interior da Internacional Comunista (IC), nova fratura seria evidenciada desde a ameaça e ascensão de movimentos e ditaduras de tipo fascistas, inicialmente na Itália e posteriormente na Alemanha, quando Trotsky e seus partidários defenderam a frente única com os operários socialdemocratas, contra a política do “terceiro período” do Komintern, cujas correntes stalinistas acusavam a socialdemocracia de ser uma irmã gêmea do fascismo. A virada decisiva viria, no entanto, somente em 1934/1935, ocasião em que o Partido Comunista Francês, com o beneplácito da IC, adotou a política de frente única com a socialdemocracia e, posteriormente, de frente popular com os chamados “radicais” que formavam um partido de coloração pequeno-burguesa na França. Mas em que circunstâncias as políticas frentistas foram adotadas pelo movimento comunista internacional? Onde se encontra a principal divergência que fez com que se bifurcassem as principais heranças do movimento operário da terceira-internacional?
O objetivo deste trabalho é situar a discussão no contexto das primeiras formulações da tática de frente única no interior da Terceira Internacional. Pretende-se que a análise das elaborações originais de Lenin e Trotsky sejam confrontadas com a proposição de frente popular e frente nacional no momento de uma virada histórica ocorrida durante o refluxo da primeira onda revolucionária (1917-1923) e de ascenso da contrarrevolução. O argumento central aqui proposto diz respeito ao fato de que a inflexão tática promovida pela IC nos anos 30 significou também uma reformulação estratégica do movimento comunista, já que este definiu como horizonte a defesa da democracia e a realização de alianças cada vez mais amplas com setores da burguesia dita progressista.
Na história do movimento comunista, a trajetória das formulações frentistas remonta aos primeiros anos de funcionamento do Komintern e, em larga medida, foi adotada pelas Seções Nacionais de diversos países e em diversas conjunturas. Fundada em 1919, a Internacional Comunista, ou Terceira Internacional, consagrou a liderança do Partido Bolchevique e da via revolucionária russa no quadro da movimentação operária européia no primeiro quartel do século XX. A vitória dos bolcheviques na Revolução de Outubro de 1917 foi um dos feitos mais extraordinários de toda a história da humanidade. Até então, nenhuma ação planejada, fundada numa organização política conscientemente organizada e centralizada para uma determinada finalidade, havia chegado tão longe nos seus propósitos. Nem mesmo as organizações atuantes na Revolução Francesa de 1789 chegaram perto do que foi o Partido Bolchevique, dirigido por Lenin, e do papel que esta organização cumpriu nos eventos espetaculares daqueles anos que mudaram a história do mundo no século XX. Regidos por uma estrutura que agregava revolucionários profissionais, submetidos ao “centralismo democrático”, o modelo leniniano de partido denotou uma substancial eficácia da sua organização, ao menos no quadro russo das duas primeiras décadas do século passado.
O sucesso da Revolução de Outubro disseminou, portanto, ao longo das décadas seguintes do século XX, o paradigma das revoluções operárias e socialistas que envolveriam imensos contingentes humanos, explorados pelo capital e eventualmente oprimidos por regimes autocráticos, como era o caso do tzarismo na Rússia, da mesma forma que ensejou a criação de uma era de revoluções e de organizações revolucionárias, inspiradas no bolchevismo, que não tardariam a ser experimentadas no restante da Europa na primeira vaga revolucionária aberta entre 1917 e 1923. Todavia, as esperanças alimentadas por Lenin e Trotsky de que a revolução mundial não faltaria e viria em auxílio da Rússia dos sovietes, foram frustradas pelas derrotas das revoluções húngara (1919), italiana (1920) e, principalmente, da revolução alemã de 1919/1921. Caberia, então, à Internacional Comunista fazer o balanço destas primeiras derrotas e buscar as respostas e proposições táticas de acordo com cada circunstância e cada nova conjuntura.
Foi somente no seu III Congresso, em 1921, que o Komintern pôde avaliar os aspectos das derrotas que parcialmente se iam abatendo sobre a classe operária em diversos países europeus. Ainda no bojo da situação revolucionária inaugurada com o fim da Primeira Guerra Mundial e com a Revolução Russa de 1917, a Terceira Internacional e suas principais lideranças puderam produzir as primeiras formulações com base no balanço das revoluções que se processavam na Europa. Foi, sobretudo, através do documento “Tese sobre a situação mundial e a tarefa da Internacional Comunista”, cuja redação ficou sob a responsabilidade de Trotsky, que a IC entreviu que, apesar da permanência da situação revolucionária no plano internacional, a “poderosa onda” não conseguia, entretanto, “derrotar o capitalismo mundial, nem mesmo o capitalismo europeu”.[ii] Ainda que caracterizando as derrotas como parciais, o documento trazia questões fundamentais ao movimento comunista internacional na medida em que indagava, pela primeira vez desde o impulso revolucionário de 1917, até que ponto a burguesia poderia restabelecer o equilíbrio social no pós-guerra, ou, então, se haveria a possibilidade de uma época prolongada de crescimento do capitalismo. O texto concluía a premissa com uma constatação: “Não decorre disso a necessidade de revisar o programa ou a tática da Internacional Comunista?”.[iii]
A tese escrita por Trotsky apontava a necessidade de se combinar o realismo político com a atividade revolucionária nas democracias ocidentais que, sob alguns aspectos, eram caracterizadas como distintas do caso russo.[iv] Concretamente, na maioria dos países europeus, as organizações comunistas se defrontavam com situações políticas bastante diversas das encontradas pelo Partido Bolchevique ante o Estado autocrático na Rússia, com a classe operária dispondo de amplos e complexos mecanismos de manifestação, o que erguia uma portentosa concorrência das correntes ditas revolucionárias com as agremiações da socialdemocracia europeia. Na Alemanha, por exemplo, o Partido Social Democrata (SPD), além de hegemonizar o movimento operário, chegou a liderar o governo burguês de coalizão na República de Weimar e, em alguns momentos inclusive, compor maioria parlamentar.[v] Apesar da percepção quanto às diferenças, as resoluções do Komintern não chegaram a indicar um caminho que negasse a necessidade da ruptura revolucionária e privilegiasse a atuação parlamentar, pois o que se procurava era, apenas e tão-somente, incorporar à tática das organizações comunistas, os mecanismos de acumulação de forças nas épocas em que a crise revolucionária não se tivesse aberto.
No III Congresso, portanto, consagrou-se a tática que indicava aos Partidos Comunistas uma política que os levasse a se constituírem em maiorias no seio da classe operária. Sob o dístico de “às massas”, recusava-se todo o sectarismo e o putschismo aventureiro, praticado por algumas das Seções Nacionais da Terceira Internacional e, ao mesmo tempo, procurava-se encaminhar o movimento comunista para dentro dos organismos de massas, os sindicatos principalmente, para a partir dali formarem a necessária frente única que encontrasse o termo da realpolitik e da ação revolucionária almejada. No estrito terreno da classe operária, o essencial de ambas as políticas era o pressuposto de que o Partido Comunista deveria caminhar para se constituir em força hegemônica no seio do proletariado, ganhando a maioria da classe para o seu projeto. Os Partidos Comunistas, surgidos do grande ascenso revolucionário do pós-guerra, viram-se, pela primeira, vez na iminência de elaborarem uma tática que não fosse meramente ofensiva, mas uma tática apropriada a um período de relativa estabilização do capitalismo, tática esta que combinasse medidas defensivas, com a preparação da ofensiva revolucionária pela classe trabalhadora.
Não foi por outro motivo que a tese da frente única operária foi ratificada no IV Congresso do Komintern, em 1922, e posteriormente retomada no VII Congresso da Internacional Comunista, em 1935, especialmente depois da constatação dos equívocos contidos na linha política do “terceiro período”, vigente no âmbito internacional desde o VI Congresso da IC, ocorrido em 1928. Depois da ascensão de Hitler na Alemanha, em 1933, a contra-revolução européia marchava a passos largos para o extermínio do movimento operário, mas o Komintern só percebeu isso depois da catástrofe que foi a chegada dos nazistas ao poder e o esmagamento do movimento operário alemão e de suas organizações, apesar dos alertas de Trotsky e de Gramsci que pregavam no deserto, cada um ao seu modo, contra os desacertos da linha “esquerdista” do “terceiro período”.[vi]
Foi somente em 1935, em seu sétimo Congresso, que a IC pôde, finalmente, reavaliar a rota que apontava a social-democracia como “ala esquerda” do fascismo, ou “social-fascismo”, e restabelecer o caminho da frente única para derrotar o inimigo comum do movimento operário, o nazi-fascismo. Foi o dirigente do Partido Comunista da Bulgária, Jorge Dimitrov, membro do Comitê Executivo da Internacional Comunista (CEIC), quem formulou as premissas da nova tática, consubstanciadas no texto “A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista na luta pela unidade da classe operária contra o fascismo”, apresentado como Relatório ao VII Congresso da IC, em 2 de agosto de 1935.[vii] Pelo texto de Dimitrov, reconhecia-se que o fascismo, ainda que sendo uma expressão da contra-revolução e uma característica do capitalismo em sua época de crise, necessitava de uma definição distinta das outras formas de dominação burguesa, tendo em vista que o fascismo, como assegurava o dirigente do CEIC “não é a vulgar substituição de um governo burguês por outro, mas sim a substituição, feita por estadismo [sic], da dominação da classe burguesa – a democracia burguesa – por uma outra forma desta mesma dominação, a ditadura terrorista declarada”.[viii]
A partir desta caracterização, o “Relatório” de Dimitrov prosseguia apontando as responsabilidades históricas dos chefes da socialdemocracia que, com sua política de colaboração de classes com a burguesia, desarmavam a classe operária ante a ascensão do inimigo.[ix] Também os Partidos Comunistas foram parcialmente criticados no texto do comunista búlgaro, acima de tudo porque teriam subdimensionado o perigo fascista e desacreditado das suas possibilidades nos países de democracia burguesa clássicas.[x] O corolário da nova situação caracterizada pela Internacional Comunista, a partir do documento de Dimitrov, era a luta pela frente única para a defesa da classe, na condição em que tal política soubesse identificar o momento de sair da defensiva e partir para a ofensiva contra o capital, “orientando-nos rumo à organização da greve política de massas”.[xi]
Se a nova tática emanada da Terceira Internacional recuperava os principais elementos da formulação frentista do III Congresso de 1921, ela não se deteve, entretanto, na indicação de uma política de frente única, entendida pelos seus formuladores originais como uma tática exclusiva para o interior do movimento operário. Ao contrário, a compreensão de Dimitrov era a de que a ascensão do nazi-fascismo, além de representar a vitória da contrarrevolução sobre a vaga revolucionária, significava, também, a derrota de uma parcela da própria burguesia “aterrorizada perante a realização da unidade de luta da classe operária, aterrorizada perante a revolução e já sem a possibilidade de manter a ditadura sobre as massas por meio dos velhos métodos da democracia burguesa e do parlamentarismo”.[xii] Neste sentido, os Partidos Comunistas eram instados a criarem “uma vasta frente popular antifascista sobre a base da frente única proletária”, ou seja, seria necessário que as organizações operárias atraíssem para o campo frentista os amplos setores do campesinato e da pequena burguesia urbana, ainda que as organizações representantes desses segmentos se encontrassem sob a influência da burguesia e seus partidos.[xiii]
Com efeito, a política de frente popular que previam alianças amplas com os setores da burguesia tida progressista, passou a ser a tática privilegiada dos Partidos Comunistas na conjuntura de ascensão das ditaduras fascistas ou filo-fascistas pelo mundo nos anos 30. Não por acaso, os exemplos mais evidentes da aplicação de tais políticas, bem como os seus desdobramentos mais importantes naqueles anos, foram os casos francês e espanhol, sob os governos de Leon Blum e de Francisco Largo Caballero, respectivamente. Nestes casos, longe de ser uma política essencialmente defensiva, a Frente Popular significou para os Partidos Comunistas a aceitação da possibilidade de participação em governos de países ocidentais, sem que, entretanto, tivesse havido uma revolução social com a consequente derrota da burguesia, o que veio de fato a ocorrer na Espanha e esteve perto de se concretizar na França, muito embora a FP vicejasse como campo político de apoio ao governo de Blum.[xiv] Nestas circunstâncias, em muitos países, os PCs formavam com outros partidos da socialdemocracia, e mesmo da burguesia, amplas coalizões sob a forma de frentes populares que, ainda assim, não impediam a polarização crescente e a ascensão das massas revolucionárias enfurecidas.[xv] Sendo assim, a instabilidade permanente de tais governos de FP ou apoiados pelos membros destas frentes interclassistas, e mesmo a guerra civil, como foi o caso da Espanha, entre 1936 e 1939, constituíram o traço característico mais importante deste período de governos e coalizões frente-populistas.
As formulações táticas quanto à frente única proletária (FUP ou simplesmente FU), à frente única antifascista (FUA, nos países coloniais e semicoloniais) e à frente popular (FP), adentram o vocabulário e à prática das organizações comunistas internacionais como respostas às diferentes conjunturas que surgiram na Europa e no mundo, desde o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918. Contudo, somente em 1935 é que passariam a se constituir nos programas fundamentais dos Partidos Comunistas do planeta, nas circunstâncias e nas possibilidades em que a URSS se adiantava em propor a perspectiva de uma “coexistência pacífica” longa e duradoura às democracias ocidentais.
No caso da FU, a conjuntura de alguma estabilização depois das primeiras derrotas da revolução mundial, entre 1919 e 1920, colocou a imperiosa necessidade de conjugação de esforços no interior do movimento operário para que os Partidos Comunistas que surgiam pudessem avançar na construção da hegemonia sobre as massas, na preparação da revolução. Já a FP foi a resposta encontrada pela IC ante o nazi-fascismo vitorioso e o principal instrumento de “antifascismo” da tese do “socialismo num só país”, vigente na Rússia, desde a vitória de Stalin sobre a Oposição de Esquerda em 1926. Foi também uma tática adotada pela direção do movimento operário europeu, ante a incapacidade das burguesias liberais destes países de se constituírem em uma alternativa consistente para as massas na conjuntura de crise aguda do capitalismo e de avanço da onda contrarrevolucionária que sucedeu a revolução derrotada em 1923. De outro lado, foi também um instrumento do movimento comunista dos países ditos atrasados, coloniais ou semicoloniais, para a realização das tarefas de libertação-nacional ante o imperialismo, consubstanciada na fórmula da Frente Única Antifascista, que conjugava elementos das táticas frentistas dos primeiros congressos da IC com elementos da época áurea da teoria do “socialismo num só país”. Neste sentido, a tática de frente popular era ainda mais ampliada e se transformava em frente nacional, que englobava, além dos amplos setores da chamada “burguesia progressista”, todos os “democratas sinceros”, fossem liberais, socialistas, republicanos ou monarquistas.[xvi]
Foi ainda no VII Congresso da IC, que o responsável do CEIC para a América do Sul, o holandês Van Min, membro do Conselho Executivo do Komintern, apresentou seu relatório e discutiu as circunstâncias em que, no Brasil, o PC deveria “redobrar os seus esforços no sentido de consolidar a frente única nacional libertadora”. Para o dirigente da IC, no caso do Brasil, seria necessário que se liquidasse “o sectarismo de certos membros do Partido” e se desenvolvesse “sem medo o movimento de massas de choque, sob a bandeira da União Libertadora”, de maneira a “elevar até as formas mais altas de luta pelo poder”.[xvii] De acordo com Van Min:
Um governo da facção Nacional Libertadora ou de outra qualquer União Nacional, se, por motivos políticos que parecem existem, for necessário mudar o nome, para aparentemente aparentar [sic] uma cor mais socialista, o qual possa impulsionar esse movimento, não será ainda uma ditadura revolucionária democrática de operários e camponeses, mas apresentar um governo de caráter e sentimentos anti-imperialistas. Os comunistas brasileiros devem lutar, como estão sabiamente fazendo, pela independência nacional do seu grande país que virá, em futuro próximo, como uma linda pérola a ser engastada no colar das Repúblicas Soviéticas, como atestado de sua alta civilização. […] O trabalho dos camaradas brasileiros representa já uma boa etapa na constituição da frente única e antifascista. Devemos render as nossas homenagens ao camarada Prestes e aos dignos Delegados do Brasil ao Sétimo Congresso Internacional Comunista.[xviii]
Todavia, a União (ou frente) Nacional, não ganhou os contornos precisos de uma nova tática, nem sequer foi formulada nos termos em que o Komintern consagrou a frente única ou mesmo a frente popular como instrumento principal das organizações comunistas. Pelo contrário, a União Nacional foi, antes de tudo, o resultado da ampliação das táticas de frente única antifascista (por vezes chamada pelos comunistas de frente popular antifascista) e de frente popular, surgida nas circunstâncias e nos países em que a luta antifascista envolvia amplos setores da sociedade, desde os agrupamentos “conservadores patriotas”, não identificados com o nazi-fascismo, aos “revolucionários sociais” de toda espécie.[xix] Como insistia Dimitrov: “O Partido Comunista deve apoiar todo o movimento político e de qualquer cor que vise o combate ao fascismo”.[xx]
E, se nos termos da tática de frente única, a posição de hegemonia caberia sempre ao proletariado e suas organizações no caso de virem a formar uma frente com a pequena burguesia e o campesinato, na linha de frente popular, especialmente em algumas situações, admitia-se a possibilidade da hegemonia ser exercida pelo setor dito “progressista” da burguesia. Este foi o caso do PC brasileiro que a partir de 1936, quando da inflexão da linha insurrecional de 1935, que na verdade tinha engendrado o putsch, promoveu uma significativa virada tática com a aplicação da política de frente nacional, que teve profundas implicações estratégicas que significavam a defesa da democracia em abstrato e uma permanente aliança com a burguesia e com os países capitalistas.[xxi]
Com efeito, nos países em que o movimento operário, o campesinato, a pequena burguesia urbana e os setores marginais da burguesia, por suas debilidades, não conseguiam representar uma efetiva alternativa de poder e nem sequer conseguiam manter uma conseqüente política defensiva, a União Nacional adveio como tática principal. Ao mesmo tempo, tal política vicejou mais plenamente nas regiões periféricas do planeta, pois encontrou largo espaço em segmentos da população que passaram a ser mobilizados pelo movimento comunista que apresentava, como alternativa de saída da crise, a ampla coalizão de classes, em defesa da pátria, contra a agressão externa, que incorporaria, além dos componentes tradicionais da FP, a “burguesia nacional” e os “grandes proprietários agrários”, desde que estes fossem entendidos como cumpridores de um papel “progressista” na luta antifascista.
Enquanto uma vaga nacionalista alcançou amplos setores das massas urbanas em diversos países, a bandeira do patriotismo, de certa maneira estranha às correntes oriundas do bolchevismo, a despeito de ser cada vez mais adotada na própria URSS, passou a ser defendida pelos Partidos Comunistas e pelos movimentos revolucionários de diversas partes do mundo.[xxii] Isto porque o caráter do nacionalismo vigente, quando das lutas antifascistas, implicava uma forma de internacionalismo que, muito embora instrumental, já que submetido à tese do “socialismo num só país”, não deixava de se referir ao primado do inimigo comum de toda a civilização. Contribuía, enfim, para a ampliação da tática frente-populista, no caso dos países “coloniais”, ou “semicoloniais”, como o Brasil, a visão etapista e a compreensão quanto às tarefas da revolução, que pressupunham uma necessária antecedência da etapa nacional-libertadora em relação à etapa socialista, o que significava a concepção de que caberia à burguesia nacional a missão histórica de liderar a fase burguesa e democrática da transição, e cumpriria ao proletariado hegemonizar a etapa socialista, projetada para um futuro não enunciado.
Não teriam sido outros os motivos que levaram as organizações comunistas pelo mundo a adotarem, sistematicamente, no plano interno, a política de Frente Popular ampliada, que era a União Nacional, na conjuntura da guerra, especialmente quando a IC lutava para superar os equívocos de sua linha esquerdista do “terceiro período”. A crença no potencial revolucionário da burguesia nacional, acrescentada de fatores específicos vistos nos países periféricos, como o debilitamento do movimento comunista ante as ditaduras de tipo fascista e filo-fascista e a postura de oposição ao regime de uma parcela da burguesia de alguns países, reforçaram o sentimento dos comunistas de que, a partir de uma crise de grandes proporções, poder-se-ia abrir uma nova etapa da revolução, porquanto, com o avançar das correntes progressistas, se complementariam as tarefas “democráticas” da revolução, com a “libertação nacional” e a superação dos “vestígios feudais”, “semicoloniais” e da “submissão imperialista” vigentes nesses países.
Dessa forma, os Partidos Comunistas pelo mundo buscaram localizar-se junto a esses movimentos antifascistas, como a primeira corrente a empunhar com veemência a bandeira da “Frente Nacional Antifascista”, que tinha a democracia como o tema principal, nem que para isto fosse necessária uma aliança com os principais representantes das burguesias desses países. Deste momento em diante, uma fratura substancial foi aberta entre as correntes que reivindicavam o legado da Terceira Internacional, pois enquanto um setor permaneceu construindo, a unidade com o que seria um campo da democracia contra o imperialismo e a reação, outro permaneceu acreditando que os trabalhadores só podem contar com suas próprias forças, não devendo confiar nunca no inimigo de classe, e talvez este seja o principal impasse da nossa época.
* Texto originalmente publicado nos Anais do V Colóquio Marx e Engels da Unicamp em 2007 com o título “Frente única, Frente Popular e Frente Nacional: anotações históricas sobre um debate presente”.
[i] LENIN, V. I. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. 5 ed. São Paulo: Global, 1981, passim.
[ii] Cf. III Internacional Comunista. Manifestos, teses e Resoluções do 3.º Congresso. São Paulo: Brasil Debates, 1989, v. 3, p. 53 (Introdução de GOLIN, Tau).
[iii] Id., ibid., p. 54.
[iv] Id., ibid., p. 54-59.
[v] HOBSBAWM, Era dos extremos. O breve século XX: 1914-1991. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 74-75.
[vi] Cf. TROTSKY, Leon. Revolução e contra-revolução. Lisboa, Porto, Luanda: Centro do Livro Brasileiro, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, v. 3, p. 259-279.
[vii] DIMITROV, Jorge. A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista na luta pela unidade da classe operária contra o fascismo. Relatório apresentado no VII Congresso Mundial da Internacional Comunista, em 2 de agosto de 1935. In: Obras escolhidas. Lisboa: Estampa, 1976, v. 3, p. 9-90.
[viii] Cf. DIMITROV, A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional Comunista…, p. 12.
[ix] Id., ibid., p. 19-20. No texto de Dimitrov, não se avaliam as responsabilidades históricas da IC quanto à linha do “terceiro período” e do social-fascismo, apenas se apontam alguns erros sectários presentes na política da Internacional.
[x] Id., ibid., p. 21-22.
[xi] DIMITROV, A ofensiva do fascismo e as tarefas da Internacional…, in: Obras escolhidas, Op. cit., p. 35 (grifos no original).
[xii] Id. ibid., p. 10.
[xiii] Id., ibid., p. 38 (grifos no original).
[xiv] Cf. HOBSBAWM, Era dos extremos…, Op. cit., p. 150.
[xv] Cf. Id., ibid., p. 148-161.
[xvi] Em alguns países, como Portugal por exemplo, a luta contra o fascismo implicou no chamamento de uma aliança com os monarquistas.
[xvii] “Trecho principal do discurso proferido no VII Congresso Internacional Comunista pelo Delegado holandês Van Min, Membro do Conselho Executivo do Komintern e Relator dos assuntos referentes a América do Sul”. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), GVc. 1935.07.25.
[xviii] “Id., ibid., p. 2-3.
[xix] Cf. HOBSBAWM, Era dos extremos…, Op. cit., p. 162.
[xx] “Relatório de Dimitroff” (sic). CPDOC/FGV, GVc. 1935.07.25, p. 15-16.
[xxi] Cf. SENA JR., Carlos Zacarias F. Os impasses da estratégia: os comunistas e os dilemas da União Nacional na revolução (im)possível. 1936-1948. CEFICH/UFPE, Tese de Doutorado, 2007.
[xxii] HOBSBAWM fala de um patriotismo de esquerda sintetizado nas frentes nacionais que “abrangiam todo o espectro político, excluindo apenas os fascistas e seus colaboradores”. HOBSBAWM, Era dos extremos…, Op. cit., p. 138.
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