Filipe Augusto |
Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.
Bertolt Brecht
Considerada uma das principais obras historiográficas para a compreensão da questão do negro produzidas no século XX, Os Jacobinos Negros. Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos, obra seminal de C.L.R. James, se mostra uma leitura indispensável quando se trata do estudo do racismo, principalmente num momento no qual o Brasil lidera a ocupação do Haiti pelas tropas da MINUSTAH[1].
Tal obra destaca-se não como simples registro histórico de uma sequência de fatos e líderes do processo revolucionário haitiano, mas como um escrito fundamental para se compreender a relação entre raça e classe dentro do sistema escravista nas Américas. Relata também a importância que o escravismo teve para a acumulação de capital e formação do capitalismo contemporâneo, com uma clara tomada de posição em favor dos trabalhadores, colocando-os como sujeitos e agentes ativos no processo histórico.
Do trotskismo ao pan-africanismo
James foi um intelectual negro nascido em 1901 em Trinidad e Tobago, cujos escritos variaram desde os historiográficos, como a obra aqui resenhada, passando por ensaios e textos jornalísticos, cuja variedade de temas abrangia desde os esportes até os artigos políticos e sociais.
À época da escrita do livro James, que já era marxista, tinha passado a residir na Inglaterra há alguns anos, tendo a partir do Independent Workers Party tido forte influência do trotskismo. Tal fato se mostra claramente no livro, tanto pelas comparações dos líderes à Lênin e Trotsky quanto com a Revolução Russa, além de uma certa dose de mecanicismo na aplicação da teoria da revolução permanente ao processo haitiano, o qual trataremos mais adiante.
Em 1938 conseguiu angariar recursos para ir à França, onde reuniu farta documentação para a confecção de Jacobinos Negros, além de ter ampliado seu contato com a historiografia francesa. Utilizou como base de estudos da revolução francesa principalmente as obras de Michelet e George Lefebrve, além da imensa correspondência entre as lideranças revolucionárias tanto de São Domingos quanto da França.
Posteriormente viria a sofrer influência e atuar no movimento pan-africanista. Em meados da década de 60 escreve um apêndice no qual compara Toussaint à Fidel Castro, não indo porém muito longe nas comparações com a Revolução Cubana. Isso porque as experiências socialistas já não figuravam mais entre seus principais objetos de estudos, entendia tal revolução como parte dos processos de independência em curso Caribe e na África.
Imperialistas em luta pelo botim
Os trechos mais interessantes e originais do livro se encontram em seus primeiros capítulos. Nestes o autor estabelece a contextualização da colônia de São Domingos dentro do Antigo Regime, sendo responsável por nada menos do que 11 das 17 milhões de libras exportadas pela França. O tráfico negreiro a partir da costa da Guiné, o chamado Exclusivo colonial e a escravidão foram as bases econômicas sob as quais floresceu a burguesia francesa, e que contraditoriamente possibilitaram sua revolução pautada pelo lema de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Os demais imperialismos que competiam pelas Índias Ocidentais também não são poupados, com a Espanha, que dominava a porção oriental da ilha de São Domingos, tentando aproveitar a rebelião para expandir seus domínios e, com sua derrota, ter visto o Haiti anos depois abrigar e armar Simon Bolívar para a libertação de suas colônias.
Quanto à Inglaterra, claro fica que, após a independência dos EUA, o comércio de açúcar a partir de São Domingos duplicou, com tal imperialismo num primeiro momento se voltando para a Índia. Assim que puderam os ingleses foram à guerra para disputar a colônia francesa, deixando bem clara sua intenção de restaurar a escravidão. As tendências abolicionistas inglesas ficaram então em segundo plano, tendo se sobressaído seus interesses comerciais. Certamente, tendo em mãos uma colônia escravista tão lucrativa, não teria a Inglaterra o mesmo ímpeto em impor mundialmente o sistema de trabalho assalariado.
O racismo como legitimador das posições de classe
Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.
Karl Marx (Marx)[2]
O papel das classes sociais é analisado de maneira brilhante por C.R.L. James, tanto em São Domingos quanto na França ao longo dos anos da revolução. Na colônia, na qual as cores se confundiam com as classes, haviam meio milhão de escravos negros, tendo mais da metade deles advindos da África entre 1880 e 1890. Os brancos de origem europeia, com um equilíbrio numérico entre latifundiários ricos e degredados pobres, constituíam 30 mil, mulatos e negros livres 40 mil, contando este segundo grupo com membros tão ou mais ricos que os brancos.
O preconceito de raça tinha um papel social extremamente concreto, seja para manter sob tacão de ferro e métodos bárbaros a submissão dos escravos, quanto para a aristocracia manter sua posição social frente a uma burguesia mulata crescente. Da mesma forma, os mulatos também reproduziam tal ódio racial no trato com os negros, no afã de se diferenciarem a qualquer custo dos escravos.
Tais posições sociais ensejaram as variações nas alianças de classes dentro do processo revolucionário. Durante praticamente toda a primeira década da revolução, a grande maioria dos mulatos se posicionaram ao lado dos brancos contra os negros insurretos, principalmente na região Norte onde a revolução era mais forte.
Na porção ocidental, na qual a ocupação territorial era mais dispersa e os negros possuíam maior dificuldade de organização, os mulatos revoltosos sempre foram direção do processo revolucionário. Não sofrendo maior ameaça desde baixo, reprimiram com ferocidade seus rivais brancos. Contraditoriamente na porção Sul e principalmente na Norte, Toussaint e seus aliados tinham uma postura muito mais leniente para com os brancos, buscando costurar alianças setoriais e não unificar seus inimigos.
Porém na primeira década do século XIX, após a invasão do exército napoleônico, a fúria da burguesia francesa, ansiosa por recuperar os lucros dos tempos da escravidão, aliada à avidez dos antigos proprietários emigrados, acabou obrigando as lideranças mulatas a se unirem aos negros para derrotar os invasores.
Vemos assim que as questões de raça e classe se misturavam, mas em última estância eram os fatores econômicos e políticos que determinavam as alianças. Foi a violência dos defensores do Antigo Regime, encarnados pelos brancos, que culminou com o próprio extermínio ou deportação dos mesmos ao final do processo.
Sans-culottes e negros unidos contra a escravidão
Quanto à análise das posições das classes sociais francesas, foi com a revolução na metrópole que a cisão entre a aristocracia feudal e a burguesia se reproduziu na colônia, com os conflitos abrindo espaço para a rebelião negra tomar palco. Mesmo com a proclamação da igualdade entre os homens pelos revolucionários, os burgueses que dirigiam o processo nos primeiros anos não permitiram a abolição da escravidão colonial. Foi somente no período jacobino, com a pressão dos sans-culottes organizados na Coluna de Paris em prol dos negros, que foi proclamada pela Convenção a abolição da escravidão, mesmo com a oposição velada do burguês Robespierre.
Vale dizer que quando a abolição foi oficializada ela já era praticada de fato em São Domingos, pois antes do início de todo o processo boa parte dos negros já se refugiava em quilombos, a partir dos quais foram iniciadas as primeiras rebeliões. Nas insurreições posteriores a grande maioria dos trabalhadores negros já havia se levantado em armas e se libertado. Processo muito semelhante ao brasileiro, tanto no que tange à formação e papel dos quilombos, quando pela libertação ser fruto de um processo de luta, ainda que em ritmos distintos, sendo somente depois institucionalizada em lei.
Porém, foram somente as massas francesas, as quais nada tinham a ganhar com a escravidão, que saudaram e institucionalizaram tal liberdade, objeto sempre da aguerrida oposição da burguesia marítima e comercial francesa. Após a deposição dos jacobinos, tal burguesia continuou sua luta pelo retorno do antigo sistema colonial, e com Bonaparte conseguiu que a França pegasse em armas pelo retorno da escravidão.
Da mesma forma, os negros não viam os trabalhadores franceses como seus inimigos, sendo que os administradores que se colocaram ao seu lado contra a metrópole, Laveux e Sonthonax, foram considerados heróis pelos haitianos. Há relatos, inclusive do próprio Toussaint L’Ouverture, de que Sonthonax chegou a lhe propor o extermínio dos crioulos brancos, a fim de que não servissem de base de apoio para a invasão da burguesia francesa, herdeiro do terror revolucionário que tal administrador era.
Uma revolução democrático-burguesa negra?
Cabem alguns reparos a metodologia da análise do desenvolvimento das forças produtivas haitianas por parte de C.L.R. James. Este analisa como correta a proteção dada aos brancos por Toussaint L’Ouverture e a imposição do trabalho compulsório aos negros em prol da manutenção dos conhecimentos técnicos e do incremento da produção. Compara com a repressão à Kronstad e a adoção da NEP por Lênin na Rússia, caindo num anacronismo ao igualar o modo de produção escravista da colônia de São Domingos com o sistema capitalista da Rússia imperialista de Kerensky.
Porém James tem grandes méritos ao aplicar a metodologia da Teoria da Revolução Permanente[3] ao processo haitiano. Errou também ao igualar de maneira inapropriada os escravos amontoados nas fazendas do Norte de São Domingos à classe operária que inundava as fábricas europeias. Porém a forma como analisa a continuidade do processo revolucionário e seu desenvolvimento interno, as alianças de classe, as relações com os imperialismos, são aplicações nas Índias Ocidentais extremamente originais das ferramentas de análise utilizadas por León Trotsky em suas teses, enriquecendo-as com a mais variada gama de autores sobre a realidade haitiana e dotando-as com as cores locais.
Tal metodologia pode ser extremamente útil na análise do papel do negro e sua posição no interior das classes sociais em toda a América Latina, assim como no estudo da dinâmica dos processos revolucionários e as relações raciais envolvidas. Ainda que não se deva esquecer que a inserção do negro nas sociedades de classes se deu de maneira diferenciada nas diversas colônias, o método de estudo aplicado por James nos serve de herança. Certamente será de utilidade inconteste para a construção de nossas próprias generalizações teóricas a respeito do desenvolvimento e da dinâmica interna da revolução na América Latina.
Referências:
JAMES, C.L.R. Os Jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São
Domingos. São Paulo, SP. Boitempo Editorial, 2000.
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap01.htm. Acesso em 06 de nov. 2015.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, SP. Editora Paz e Terra, 1998.
TROTSKY, Leon. A Revolução Permanente. São Paulo, SP. Editora Sundermann, 2013.
Notas:
[1] Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti
[2] O 18 Brumário de Luís Bonaparte.
[3] Tese 2: Para os países de desenvolvimento burguês retardatário e, em particular, para os países coloniais e semicoloniais, a teoria da revolução permanente significa que a solução verdadeira e completa de suas tarefas democráticas e nacional- libertadoras só é concebível por meio da ditadura do proletariado, que, assume a direção da nação oprimida e, antes de tudo, de suas massas camponesas.
Tese 3: Tanto a questão agrária como a questão nacional conferem ao campesinato, como enorme maioria da população dos países atrasados, um papel primordial na revolução democrática. Sem a aliança entre o proletariado e o campesinato, as tarefas da revolução democrática não podem ser resolvidas, nem mesmo ser colocadas a sério. Essa aliança das duas classes, porém, só se realizará numa luta implacável contra a influência da burguesia nacional-liberal.
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