Valério Arcary |
Os trabalhadores não pararam de lutar frontalmente contra o capitalismo e o imperialismo.
Graças a estas lutas heroicas, a classe operária dos países desenvolvidos conseguiu colossais
conquistas democráticas e mínimas – as oito horas de trabalho e o voto, entre
outras- e o surgimento de poderosos sindicatos e organizações políticas(…)
Nada disso significa que a burguesia fez concessões pela sua iniciativa.
Pelo contrário, cada avanço do proletariado foi o resultado de uma luta feroz contra ela.[1]
Nahuel Moreno
Adeus 2015. Um ano que não deixará saudades. Não foi um ano fácil. Desemprego beirando os dez milhões, inflação acima de 10% ao ano, epidemias em expansão, catástrofe apocalíptica em Mariana, e muito mais. Previsível que os votos de ano novo de todos nós sejam prudentes. Já escolhi os meus. Se é para pedir com um copo de espumante, não sou de pedir pouco. Desejo, ardentemente, que em 2016 a classe trabalhadora se levante e mostre a sua força.
É verdade que a vibrante ocupação de escolas pela juventude paulista nos trouxe um sopro de esperança. Já tínhamos visto as animadas manifestações de rua das organizações feministas contra Cunha. As corajosas greves de carteiros, de bancários e petroleiros. Tivemos as intrépidas greves de professores no primeiro semestre, com o destaque para a destemida resistência no Paraná.
A epígrafe de Moreno é uma inspiração. Ela nos recorda que todas as conquistas e direitos conquistados pelas gerações que nos antecederam foram conquistados através de muita luta coletiva. Os capitalistas não cedem nada de boa vontade. Não aceitam fazer nenhuma concessão, senão quando se vêem obrigados. Se temos ainda uma previdência social, um SUS, uma rede nacional de escolas públicas, se foi construída uma precária, porém, valiosa rede nacional de ensino superior e ensino tecnológico públicos, se existe um salário mínimo, enfim, tudo o que preservamos ainda no Brasil de mínimos direitos é porque houve muita luta. Não foi Vargas, não foi Jango, não foi Lula e, certamente, não foi Dilma Rousseff. Os líderes políticos que em diferentes etapas de nossa história estiveram no poder para realizar a gestão do Estado não nos deram nada de graça. Tudo foi conquistado pelos que vieram antes de nós. Este abcdário político frequentemente se perde, porque a consciência política dos trabalhadores está sempre em disputa.
Acontece que o fim de ano pode ser um período propício para conclusões pessimistas. Ele abre o período em que a maioria dos ativistas aproveita para tirar uns dias de descanso, porque estão exaustos. E o cansaço, o stress, a fadiga são maus conselheiros. É previsível que muitos milhares estejam perguntando se tanta luta, tanta militância abnegada, tanta entrega e doação valeram a pena. E esse humor pode abrir a guarda para o pessimismo.
Também é bom não esqueçer que um dos esportes preferidos da maioria da esquerda reformista mundial é o cepticismo diante da longevidade do capitalismo. Um pouco de perspectiva histórica pode nos ajudar a ter sentido das proporções.
A transição socialista, ou seja, a passagem do poder de uma classe privilegiada para uma maioria despojada, algo muito diferente da passagem de uma classe proprietária para outra classe proprietária, prometia, previsivelmente, ser um processo difícil. Extremamente difícil.
São, em geral, necessários grandes intervalos de tempo para que a classe trabalhadora possa se recuperar da experiência de derrotas, e consiga gerar uma nova vanguarda, recuperar a confiança em suas próprias forças, e encontrar disposição para arriscar de novo pela via da organização coletiva, da solidariedade de classe, e da mobilização de massas.
Resumindo o problema: a questão da longevidade do capitalismo parce incontornável. Cento e cinquenta anos teriam sido mais que o bastante? O argumento é forte, mas não é novo. O impressionismo é perigoso em política. E é fatal em teoria.
Os receios e as angústias diante dos desafios da luta de classes se alimentam na força de inércia que atua, poderosamente, no sentido de manutenção e conservação da ordem. As forças de inércia histórica, se apóiam, por sua vez, em muitos fatores (materiais e culturais). Eles não devem ser subestimados. É porque são grandes que as transformações históricas foram sempre lentas e dolorosas. Até que se precipitam, vertiginosamente, como um furacão.
O movimento dos trabalhadores se afirmou como o mais importante movimento social pelo menos desde meados dos anos oitenta do século XIX. O tema do intervalo histórico de cento e cinquenta anos merece, porém, alguma reflexão. Porque pode parecer muito sensato retirar conclusões teóricas pessimistas, se consideradas essas escalas de temporalidade. Teria fracassado a esperança marxista de que o proletariado seria o sujeito social da luta anticapitalista?
O tema do intervalo histórico é ainda mais pertubador se considerarmos que os últimos cento e cinquenta anos, pela sua intensidade qualitativa, valem por dois ou três séculos. As medidas da História não são lineares como as dos calendários e relógios, em que todas horas têm sessenta minutos.
Os medos, as vascilações e as inseguranças do proletariado diante dos confrontos decisivos permanecem sendo o argumento final que sustenta o desalento, a desesperança e o cepticismo nas perspectivas de triunfo de uma estratégia revolucionária: a classe operária teria faltado ao encontro com a História.
Só que não. Essas conclusões estão erradas, tanto metodológica, quanto historicamente. Do ponto de vista do método, a figura filosófica de um proletariado, ontologicamente, reformista ninguém no Brasil, nos últimos anos foi mais longe que Jacob Gorender. Ele fechou uma caracterização que não pode ser, teoricamente conclusiva, pelo menos, enquanto o sujeito social existir e lutar.
“Não há dúvida de que, levado pela paixão revolucionária e pelo exagero na apreciação de indícios objetivos, Marx fez a proposição de uma necessidade histórica, que se desprendeu da fundamentação empírica e discursiva. Desta maneira, preparou o mais difícil impasse que a doutrina por ele fundada hoje enfrenta. As explicações a respeito da força do reformismo no seio da classe operária, embora esclarecedoras, não foram, segundo penso, ao fundo da questão. É incontestável a influência da ideologia burguesa e das concessões materiais prodigalizadas pela burguesia de países como a Inglaterra do século XIX, privilegiada pela obtenção de ganhos extraordinários. Porém, mais a fundo, vamos encontrar algo que os teóricos revolucionários do marxismo evitaram admitir e, no entanto, nas circunstâncias atuais, já é impossível negar. Isto é, que a classe operária é ontologicamente reformista. Toda a experiência histórico-mundial demonstra que, dia a dia, no transcurso cotidiano de sua existência, a classe operária não ultrapassa as fronteiras da ideologia do reformismo.”(grifo nosso)[2]
Se o capitalismo viesse a evoluir, hipoteticamente, no sentido de um novo modo de produção, seja ele qual fosse, e sejam quais fossem as novas relações sociais de produção, de tal forma, que prescindisse do proletariado e, por isso, se extinguisse o trabalho assalariado, então sim, seria possível, retrospectivamente, um balanço dessa natureza.
Mas enquanto existir luta um sujeito social não pode renunciar nem se render, tem que se mover na defesa de seus interesses. E, nesse sentido, a última palavra ainda não foi dada. O proletariado pode voltar a agir, revolucionariamente, como já fez inúmeras vezes no passado. Neste nível de abstração, não importa examinar se o mais provável serão derrotas ou vitórias nas lutas futuras. Para realizar este cálculo é necessário verificar muitas variáveis. Isso é possível, e há boas razões para não ser pessimista. Mas o essencial é considerar se é possível, e até provável que elas venham a ocorrer. A luta é sempre uma aposta no futuro.
As lutas decisivas, portanto, as ondas revolucionárias que estão por vir, poderão tardar mais ou menos. As duas últimas ondas da revolução mundial sacudiram a América do Sul e os Estados de língua e cultura árabe do Mahgreb e Oriente Médio. Não podemos saber se atingirão regiões periféricas no mercado mundial, ou algumas das sociedades no centro do sistema. Serão, no entanto, inevitáveis. E dependerão de uma feroz luta política
O que se quer dizer com uma aposta na política? Isso significava, para o marxismo clássico, que o capitalismo empurrava o proletariado, apesar de suas hesitações, pela via da experiência material da vida, das crises e catástrofes cíclicas, na direção da luta de classes. A História está repleta de episódios de rendição política de forças, movimentos, frações, partidos, lideranças e chefes. Mas as classes em luta “não se rendem”.
Recuam, interrompem as hostilidades, diminuem a intensidade dos combates, duvidam de suas próprias forças, mas, enquanto existem, acumulam novas experiências, reorganizam-se sob novas formas e voltam à luta. As classes podem agir, por um período, maior ou menor, contra os seus próprios interesses. Mas não podem renunciar definitivamente à defesa dos seus interesses: as classes não fazem “seppuku”. As batalhas, os combates, cada luta, são nessa escala e nessa proporção, em uma perspectiva histórica, sempre batalhas parciais e transitórias, vitórias ou derrotas momentâneas. As relações de forças se alteram, e podem ser mais desfavoráveis ou menos, as derrotas e as vitórias podem ser políticas ou históricas, com seqüelas mais duradouras ou mais superficiais.
Entretanto, não existe a possibilidade histórica do suicídio político para uma classe social. Uma classe social pode ser “destruída materialmente”, para usar uma expressão brutal, em função de um processo de desenvolvimento ou regressão histórica profunda, e deixar de existir enquanto sujeito social. Isso também já ocorreu variadas vezes na História. Mas, sempre, de forma involuntária: enquanto existir, ou seja, enquanto for econômica e socialmente necessária, resistirá e lutará.
Uma aposta na política, para o marxismo, em nossa opinião, significava que o proletariado, mesmo com todas as imensas limitações objetivas e subjetivas que o condicionavam, mais cedo ou mais tarde, se veria diante da última alternativa, o caminho da revolução. Poderia precisar de um longo período de aprendisagem sindical parlamentar para esgotar todas as outras vias, para vencer as ilusões, por exemplo, nas possibilidades de reformar o capitalismo. Poderia, também, dispensar ou abreviar, as décadas de experiência na colaboração de classes: porque as lições se transmitem por variadas formas, e mais intensamente, na medida em que a dinâmica internacional da luta de classes se acentua.
Os proletariados aprendem com os processos de luta de classes uns dos outros, em diferentes países, e não necessariamente teriam que repetir sempre os mesmos caminhos. Mesmo em um mesmo país, as “vantagens do atraso” permitem que destacamentos da classes trabalhadora aprendam com a experiência dos sectores que se lançaram à luta na frente de forma pioneira.
Há, todavia, momentos na História em que as massas, exasperadas por décadas de exploração e perseguição, perdem o medo. E se inclinam, então, perante a “última alternativa”. É aí que a revolução surge aos olhos de milhões não só como necessária, mas como possível. Quando e em que circunstâncias, é um dos temas mais difíceis. Mas esses momentos são mais freqüentes do que se pensa. E quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, perde até o medo de morrer, toda a sociedade mergulha em um turbilhão e em uma vertigem da qual não poderá emergir sem grandes convulsões e mudanças.
E se esse sentimento for compartilhado por milhões, então, essa força social se transforma em força material, em uma força material terrível, maior do que os exércitos, do que as polícias, do que as mídias, as igrejas, maior do que tudo, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias. Que a maioria das revoluções do século XX tenham sido derrotadas não demonstra que não venham a ocorrer novas ondas revolucionárias no futuro. Elas virão e serão tão ou ainda mais fortes que aquelas que deixamos para trás.
Para todos, feliz 2016!
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[1] Atualização do Program de Transição. Disponível em: http://www.nahuelmoreno.org/textos. Consulta em 29/12/2015.
[2] GORENDER, Jacob, Marxismo sem Utopia, São Paulo, Ática, 1999, p.37/8.
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