Violência psicológica e o mito do “machismo sutil”

Natalia Conti

 

É comum, quando mencionamos algo sobre violência contra a mulher, que se forme uma imagem mental sobre agressão física ou sexual. O estupro, o espancamento, na cabeça das pessoas, são os problemas por excelência deste tema. As agressões sexuais, sobretudo são identificadas como um problema de quando se está num beco escuro e se depara com um desconhecido agressor. Há dois nós aí, o primeiro sendo o do “desconhecido”, e o segundo, a ideia da violência estar associada somente ou principalmente a danos físicos.

O escopo de violência exercido sobre as mulheres é amplo, podendo alcançar os níveis físico, sexual, moral e psicológico. Além disso, os dados caracterizam fortemente a localização da violência em âmbito doméstico e/ou entre pessoas conhecidas. São eles pais, irmãos, tios, amigos, colegas de trabalho, maridos, namorados, companheiros de militância, etc. Este texto parte da necessidade em compreender o âmbito da violência entre pessoas conhecidas, retirando, contudo, o problema do âmbito privado; e em avançar na compreensão da violência psicológica e moral como práticas devastadoras para a vida das mulheres, com particularidades nas novas gerações.

 

 “machismo sutil”

Segundo o Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil, 23% de mulheres atendidas foram vítimas de violência psicológica. Constitui-se a segunda forma mais frequente, seguida da violência física. Trata-se de 45.485 mulheres no último ano. Entre os casos registrados de violência psicológica, 47,8% foram vítimas de pessoas conhecidas, de círculos próximos, sendo que 10% delas sofrem com esta violência diariamente. Nos casos relatados de violência doméstica, sexual ou física, o aspecto do terror psicológico também é frequente, compondo o que conhecemos por ciclo da violência. O ciclo da violência é um encadeamento de acontecimentos em um relacionamento afetivo (não necessariamente entre casais), tendo início normalmente em agressões verbais, tensão psicológica, se intensificando em violência física e/ou sexual, ameaças de ruptura, e terminando com um momento denominado “lua de mel”, em que o agressor busca reatar a relação afetiva, sendo carinhoso e dizendo que tudo vai ficar bem, garantindo a interrupção e não repetição das agressões, quando o novo ciclo tem início.

A violência psicológica envolve xingamentos, tentativas de desmoralização da mulher, de afetar sua autoestima, grosserias, controle de sua vida pessoal e afetiva, invasão de espaços de privacidade, perseguição, ameaças de abandono frente a comportamentos que não seguem a maneira esperada, diminuição ou subestimação de suas capacidades em espaços públicos e práticas paternalistas e de tutela. Por não ter consequências evidentes e explícitas, é tratada como um mal menor, de efeito sutil, ou comumente não identificado como machismo, mas como “desvios” ou “desequilíbrios”, portanto, justificáveis. Entretanto, os danos causados às vítimas vão desde transtornos psicológicos, depressão, isolamento, até restrições cotidianas de seus espaços de convivência e trabalho.

Por ser uma prática encarada pelo senso comum como natural, fruto dos conflitos existentes em qualquer relação entre parceiros, amigos, familiares, etc., é mais difícil de ser combatida. Invisível, assume a forma de um fantasma onipresente na vida das mulheres. E justamente por ser invisível e encarada como socialmente aceitável, as próprias mulheres não reconhecem muitas vezes que são vítimas de relações abusivas.

 

As gerações mais jovens

Ao observar os movimentos de mulheres na última década no Brasil, percebemos um salto no número de organizações, coletivos, blogs, publicações ligados à ideia do feminismo. Dentro da dinâmica internacional, hoje já reconhecida como uma nova onda de luta feminista, o boom de visibilidade do tema passou e foi mediado centralmente pela internet e as redes sociais. Mulheres, em sua maioria jovens, puderam através da internet, tomar contato de forma rápida com lutas contra o machismo em curso no mundo inteiro; lutas viralizadas, atingiram os mais provincianos rincões do machismo no Brasil. A SlutWalk canadense, de 2011, traduzida como Marcha das vadias no Brasil, colocou na pauta de todos os jornais do mundo o problema do assédio e da culpabilização das vítimas de violência. Além disso, a possibilidade de encontrar pares nesta luta e de denunciar casos de machismo foi potencializada pelas redes sociais.

Há, no entanto, o revés desta moeda. É verdade incontestável o papel das redes sociais como canais para a organização de lutas feministas e tomada de consciência individual e coletiva sobre a opressão de gênero e sexualidade; outra verdade incontestável é o fato de que as redes sociais potencializam também a organização de setores conservadores, de práticas misóginas e, em âmbito mais estrito, a possibilidade de controle e violência psicológica contra as mulheres, sobretudo jovens nestes meios. Há ao menos dois fenômenos sobre os quais é importante tratar para pensar a violência psicológica exercida sobre as novas gerações, o stalking e o revanchismo.

O revanchismo acontece normalmente por ex-namorados ou ex-parceiros sexuais, inconformados com o fim da relação, que como forma de vingança colocam vídeos e fotos de suas parceiras nuas na internet. Enquadra-se na prática de violência psicológica e moral, destruindo a autoestima da mulher e condicionando seu cotidiano ao permanente constrangimento, vergonha e julgamento públicos. O revanchismo reflete, além da barbárie evidente, a concepção de que a vida sexual das mulheres é uma questão da qual elas têm de se envergonhar. Todos os dias, acompanhamos relatos de vítimas muito jovens, adolescentes. Muitas delas abandonam os estudos, e outras tantas, completamente desmoralizadas, chegam ao suicídio.

 

O Stalking como violência machista

Stalking é uma prática de perseguição e controle, envolvendo comportamentos de assédio persistente, a partir de diferentes formas de abordagem e contato, vigilância e monitoramento de uma pessoa. A constância da perseguição, mesmo aparentemente inofensiva, caracteriza ameaça e intimidação, e em toda circunstância oferece algum risco. Em se tratando de um fenômeno pouco conhecido como ameaçador, a despeito do avanço em relação à legislação sobre o tema em várias partes do mundo, a legislação do Brasil não reconhece o stalking como violência.

Potencializada pela internet e as redes sociais, possibilita o controle e o acesso permanente às vítimas, em sua maioria esmagadora, mulheres. O termo stalking ou stalker, com as redes sociais, banalizou-se ao ser reconhecido como uma prática de vasculhar o perfil de alguém que nos interessa sexual ou afetivamente. No entanto, é uma questão que habita o corredor da violência psicológica, gerando, do mesmo modo que outras violências, diversos transtornos às vítimas, desde restrições no estilo de vida até impactos na saúde psicológica.

O stalking é uma forma de aviso para violência futura, assumindo uma escala de aproximação que pode chegar à violência física e sexual. Estudos surgem no sentido de aprofundar a leitura sobre estes fenômenos, e cumprem o papel de pressionar o poder público de países como Portugal, por exemplo, a dar resposta legal. É o caso de “Stalking: Boas práticas no apoio às vítimas. Manual para profissionais”, de Gangeia, Matos, Ferreira e Azevedo. Um elemento que ganha notoriedade nas elaborações são os casos que têm como desenlace o homicídio da vítima, sobretudo naqueles em que existe relação prévia, ou seja, a vítima possuía um relacionamento com o agressor. Outras características importantes são o foco num só alvo e a natureza implícita das ameaças, como a ocorrência de “encontros casuais” ou contato indesejado. Percebam que a exposição da vítima em redes sociais, seja pela visibilidade de seus círculos de amigos, fotos, locais que frequenta e até mesmo marcar o local onde se encontra no momento – “checking”, ampliam a margem de risco.

Segundo Grangeia e Matos, por se tratar de violência não reconhecida como tal, as vítimas frequentemente não buscam ajuda, impedindo que estas consigam reconhecer o cenário de violência, sentindo-se envergonhadas ou mesmo culpadas pela situação vivida.

(…) o stalking é ainda um termo amplamente desconhecido e, apesar de muitos profissionais lidarem habitualmente com estas situações na sua prática, as suas especificidades permanecem muitas vezes incógnitas. Por outras palavras, o conhecimento da existência do stalking enquanto manifestação de violência interpessoal

nem sempre se traduz num saber prático, estritamente relacionado com a atuação junto das vítimas e dos/as stalkers. (…) O mesmo estudo indica que ser alvo de stalking é tipicamente uma experiência geradora de medo (43,3% das vítimas relataram ter ficado um pouco assustadas e 25% referiram ter ficado muito assustadas) com implicações sobretudo a nível da saúde psicológica e do estilo de vida. Não obstante o nível de impacto experienciado, a procura de ajuda verificou-se apenas em menos de metade dos casos (40,7%), privilegiando-se sobretudo fontes de apoio informal em detrimento das forças policiais, profissionais de saúde mental ou dos serviços de apoio à vítima. A discrepância entre o sentimento subjetivo de medo e de insegurança com a procura efetiva de apoio poderá ser entendida se tivermos em consideração que o stalking não é facilmente identificado e reconhecido como uma manifestação de violência interpessoal (…). (cf. Grangeia e Matos, 2011)

Desse modo, a busca por ajuda é protelada até o momento em que coisas mais graves, em um quadro criminal, aconteçam, como uma agressão física ou invasão de domicílio, por exemplo. As autoras tratam ainda da necessidade em avaliar os riscos, de modo a diminui-los. Esta avaliação deve ser feita a partir de uma série de sinais. Levar em consideração apenas a avaliação do próprio agressor pode resultar em subestimação do risco, visto que é comum a negação ou diminuição de sua responsabilidade. Conhecer os acontecimentos e os relatos da vítima é o primeiro passo para construir um mapa dos riscos. A percepção da vítima sobre o risco é sempre um importante foco de avaliação, ainda que esta possa, em alguns casos, minimizar a própria condição.

As autoras afirmam a evidência de maior risco quanto mais próxima for a relação do stalker com a vítima, e estabelece motivos geradores que envolvem também diferentes ameaças. Entre eles estão os perfis de “rejeitado”, que não aceita o fim de uma relação ou a negativa para o início de uma; o “ressentido”, que busca formas de vingança; o “desajustado” ou “cortejador”, com práticas inadequadas de abordagem do outro, etc. Curiosamente o rejeitado, o mesmo ator das práticas de revanchismo, é aquele quem oferece o mais amplo leque de riscos às vítimas.

A criminalização do stalking nos Estados Unidos e em diversos países da Europa é hoje uma realidade. Há, no entanto, um hiato na legislação brasileira que não reconhece a sua gravidade e ameaça, sobretudo à vida das mulheres. Em 2011, um grupo de 15 juristas encaminhou uma proposta de lei que, entre outras questões, criminalizava a prática de stalking; a proposta foi limada nos principais pontos no senado, tendo caído a criminalização. A única legislação que engloba o problema no país é a contravenção penal de “perturbação de tranquilidade”, prevista no artigo 65 do Dec.-lei n.3.688/41 (Lei das Contravenções Penais), que afirma que alguém que lhe perturbar a tranquilidade, pode ser punido com prisão simples de quinze dias a dois meses, ou multa.

Através da Lei Maria da Penha (Lei n.11.340/2006) seria possível encontrar uma ferramenta para abordar o tema, a partir dos artigos: 

Art. 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Art. 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

No entanto, por não ser reconhecida como prática criminalizada, além das próprias restrições da alçada de intervenção da Lei Maria da Penha, o problema não se enquadra a partir dela. Infelizmente, combinado aos cortes feitos por Dilma às verbas que deveriam garantir a implementação da lei e a proteção das mulheres, a violência psicológica ainda é vista como questão menor.

 

Conclusão 

O problema da violência psicológica é ainda mata fechada que deve ser desbravada e encarada pelo poder público no Brasil e também pelas organizações e entidades que travam a luta contra o machismo no movimento de trabalhadores e estudantes. Em grande parte, são estas formas de expressão do machismo que intimidam e desencorajam muitas mulheres todos os dias. Não podem de maneira alguma ser tratadas como sutis ou como desvios.

As gerações mais jovens, principalmente, expostas a experiências de luta compartilhadas mundialmente pelas redes sociais, e também à violência misógina, preparam suas batalhas e organizam seus exércitos, se posicionam, seja do ponto de vista do oprimido ou do opressor. Vivemos tempos de avanço da ofensiva conservadora no Congresso Nacional, com a votação de pautas como a da Diminuição da Maioridade Penal; restrição ao atendimento para mulheres vítimas de estupro e mesmo a restrição ainda maior ao aborto para estas vítimas; instituição de um estatuto da família. É necessário visibilizar e fortalecer da luta dos setores oprimidos, e dentro dos movimentos e organizações dar o combate consequente às diferentes formas de machismo e violência contra as mulheres. Estes setores são o rastilho de pólvora que explodem e desatam os processos de luta em curso.

Na semana do dia 25 de Novembro, dia de luta contra a violência machista, uma ampla campanha ganha corpo nas redes sociais pela denúncia de abusos cometidos por pessoas conhecidas e próximas às mulheres (#meuamigosecreto). Uma vez mais as mulheres vão às ruas do país pedir o Fora Cunha. De modo algum esta pode ser uma conclusão.  Está dado o desafio: avançar na compreensão e no combate à violência psicológica. Nas lutas e na vida, nem uma a menos!

 

Referências

Dec.Lei n.3.688 – Lei das Contravenções Penais
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3688.htm (acessado em 20/11/2015)

Lei n.11.340/2006 – “Lei Maria da Penha”
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm (acessado em 20/11/2015)

Mapa da violência 2015 – Homicídio de mulheres no Brasil
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf (acessado em 20/11/2015)

MATOS, Marlene; GANGEIA, Helena. RISCOS ASSOCIADOS AO STALKING: VIOLÊNCIA, PERSISTÊNCIA E REINCIDÊNCIA.

http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/30967 (acessado em 20/11/2015)

MATOS, Marlene; GRANGEIA, Helena; FERREIRA, Célia; AZEVEDO, Vanessa. Stalking: Boas práticas no apoio às vítimas. Manual para profissionais. Porto: 2011, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

http://www.igualdade.gov.pt/IMAGES/STORIES/DOCUMENTOS/DOCUMENTACAO/PUBLICACOES/STALKING.PDF (acessado em 20/11/2015)