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TEORIA

A definição marxista de classe operária

 

Escrito em 1986 por Rolando Astarita, o presente texto versa sobre a definição de classe operária. Mais conhecido como Osvaldo Garmendia, nome que utilizava o economista marxista argentino, hoje professor de economia na UBA (Universidade de Buenos Aires) seu texto é resposta a uma polêmica teórica suscitada pela Liga Socialista. Seção da Liga Internacional dos Trabalhadores da Suécia, reunia diversos exilados chilenos que haviam fugido para lá depois do golpe de 1970. Ela se relaciona diretamente a uma intervenção de Nahuel Moreno [*] em uma reunião do Comitê Executivo da Liga Internacional dos Trabalhadores de abril de 1986. (pode-se verificar seu link aqui)

Tema recorrente e muito debatido entre os marxistas desde o tempo do próprio Marx, nos parece adequado tornar o texto conhecido no Brasil,  apesar de ter sido publicado há  quase 30 anos. Sua primeira versão foi publicada na revista Correio Internacional, editada na Argentina e dirigida por Nahuel Moreno, poucos meses antes de seu falecimento. O texto foi recuperado pelo Arquivo Leon Trotsky e está online no idioma original.

Waldo Mermelstein

 

[*] Duas citações diretas da fala de Moreno indicam isto. “La pequeñoburguesía es una expresión muy amplia. Hay gran discusión teórica, que inclusive [deben estar haciendo] Marx y Trotsky allá, junto a San Pedro, porque Marx en el siglo pasado y Trotsky en este siglo parecieran dar definiciones distintas del problema de [la] pequeñoburguesía. Trotsky hablaba de una moderna clase media, de una moderna pequeñoburguesía, que eran los empleados de cuello blanco, como se les dice en la sociología yanqui —Wright Mills, etcétera—. Y para Marx todo el que recibía un salario era miembro de la clase obrera. Es decir, para Marx lo que definía al obrero era recibir un sueldo o un salario. [Para] Trotsky no. Justamente en su referencia a los puntos débiles del Manifiesto Comunista señala como uno de esos puntos ese hecho: que surgió una moderna clase media. Yo me inclino por Marx. Entonces, para mí, [la moderna clase media] es proletariado. Los bancarios son obreros, pertenecen a la clase obrera, para mí. En eso estoy con Marx y no con Trotsky.” cuja transcrição pode ser encontrada aqui e “Marx y Trotsky han dado definiciones aparentemente distintas de clase obrera y pequeño burguesía. Trotsky hablaba de una moderna pequeño burguesía, que eran los empleados de cuello blanco, como se dice en la sociología yanqui. Y para Marx todo el que recibía un salario era miembro de la clase obrera. Nosotros nos inclinamos por la definición de Marx.” a transcrição direta pode ser encontrada aqui.

 


Carta dos suecos contra a posição do SI

 

Estocolmo, 1º de agosto, 1986

Queridos companheiros,

É com alegria e curiosidade que saudamos o fato de que a Correio Internacional também faça referência às discussões de conceitos mais fundamentais que se fazem no SI. Vemos essas discussões como um elemento indispensável que o SI realiza no campo da teoria e que já enriqueceu as seções nacionais em uma série de terrenos. Basta recordar as discussões acerca da revolução democrática, a relação governos-regimes, a teoria da época da revolução socialista mundial, a teoria acerca da frente única revolucionária, etc., para fazer esta constatação.

Justamente por isso encaramos cada vírgula, mesmo quando esteja dentro de parênteses, com muita seriedade. O último exemplo é a forte impressão que nos deu o SI através de sua posição genérica no que diz respeito aos pontos de partida para a análise de classes, entre outras coisas, através da colocação de que é preferível a concepção de Marx a de Trotsky – sob o entendimento de que as proposições de Trotsky durante as décadas de 20 e 30 por exemplo, são equivocadas. Talvez esta determinação de posição afete justamente a nós, ao BP da LS, de maneira particularmente forte, porque a DN da LS adotou em maio de 86 uma resolução sindical “SF, LO och kampen om arbetsplatserna” (A LS, a LO (central sindical) e a luta pelos locais de trabalho), que toma como ponto de partida uma análise compacta de classe, na qual as definições e as classificações vão muito além da posição que se publica na referência da Correio Internacional.

Para motivar o SI a dar detalhes mais profundos sobre sua posição mencionamos aqui alguns aspectos que estiveram presentes na discussão da direção sueca durante a análise da moderna estrutura de classes. Trata-se particularmente dos pontos de partida para as delimitações a que chegamos com relação à composição da classe operária. É o que importa neste contexto (nosso objetivo é, posteriormente, quando outras tarefas mais urgentes estiverem solucionadas, apresentar ao SI toda nossa análise tal como foi apresentada na resolução sindical).

1) É mais fácil defender em palavras a análise de classe de Marx ante a de Trotsky (ou Lenin), do que fazê-lo na prática. Fundamentalmente porque Marx jamais concluiu nenhuma análise de classes global e inclusive não toca ou, quando o faz, é extremamente sucinto, na questão sobre as delimitações diretas da composição da classe operária. Mas também porque o raciocínio de Marx em torno da questão – as posições que aparecem durante o curso da crítica da economia política e que podem servir como ferramentas para delimitações e classificações na análise de classe – é muito genérico e até contraditório, se não se leva em conta os contextos dentro dos quais foram escritos.

O Capital segue uma ordem que se estende fundamentalmente através de dois níveis. Os primeiros tomos giram ao nível do capital em geral (a análise do valor), enquanto que o terceiro tomo gira ao nível dos muitos capitais (a concorrência, os preços, o lucro, a renda, etc.). Entre esses dois níveis existe o famoso problema de transformação. O clássico passo em falso entre os “economistas marxistas” foi o de pôr imediatamente em prática a análise do valor, sem levar em conta o problema de transformação, no desenvolvimento da economia e da sociedade.

Isto significa, entre outras coisas, que não se pode empilhar os três tomos do Capital um em cima do outro e lê-los de ponta a ponta. Mas também tem outro significado nessa profundidade de estudo, que não se pode arrancar passagens de um ou outro tomo sem primeiro contextualizar o trecho. Quando citamos O Capital e particularmente o primeiro e segundo tomos (que giram essencialmente em torno do valor), temos, por conseguinte, que ter um cuidado completamente distinto do que quando citamos por exemplo Lenin e Trotsky, que levam a teoria marxista à prática nos fenômenos atuais. Os escritos de Marx, independentemente de quão categóricos pareçam em sua forma, nunca são palavras definitivas, finais, mas sempre têm que referir-se ao contexto determinado, ligando-se às colocações que se faz da mesma questão em outros momentos da descrição. Se Marx tivesse conseguido concluir seus planos, com um quarto e inclusive com um quinto e sexto tomos (ver, por exemplo, Zur Enstehungsgeschichte des markschen “kapital” Europäische Verlagsanstalt GmbH, Frankfurt Am Main) – aproximadamente, A história da Criação de O Capital, de Roman Rosdolsky – a coisa teria sido diferente. No entanto, agora temos que levar em consideração o fato de que O Capital não foi além da investigação básica.

Mesmo em seu estado incompleto, O Capital é um ponto de partida extraordinário e fonte inesgotável para analisar problemas sociais concretos. Mas, como já se disse, isso supõe clareza sobre a disposição da obra. Se usamos o primeiro e segundo tomos para apoiar nossas posições em uma determinada questão, temos que abarcar primeiro o significado do nível do capital em geral. Então temos que diferenciar o primeiro tomo do Capital, que analisa o capital geral em sua particularidade, do segundo tomo, que analisa o capital geral em sua totalidade. Porque sem essa compreensão podemos cometer o erro de extrair citações que para seu significado completo exigem relações com outros trechos de O Capital.

Um dos tantos exemplos disto é o estudo do trabalho produtivo e improdutivo, que, além de tudo, também constitui uma linha de orientação para a análise de classes. Se não se leva em consideração o nível do capital em geral em sua particularidade, se pode tirar a conclusão de que Marx considera o trabalho do professor como trabalho produtivo quando no primeiro tomo diz:

Se nos permite pôr um exemplo externo à órbita da produção material, diremos que um professor de uma escola é operário produtivo se, além de moldar as cabeças das crianças, molda seu próprio trabalho para enriquecer o patrão. O fato de que este aplique seu capital em uma fábrica de ensino em vez de investi-lo em uma fábrica de salsichas, não altera em nada os termos do problema (capítulo catorze da quinta seção).

Uma consideração mais próxima, que apropriadamente aparece no resto da apresentação de Marx, mostra que essa classificação se refere exclusivamente a quais são as consequências que tem a produção de valor para o capitalista particular (ao nível do capital em geral em sua particularidade). A partir de seu ponto de vista, isto é, de como a produção do valor repercute sobre ele, tem pouca importância se ele investe seu dinheiro em uma fábrica de salsichas ou em uma fábrica de ensino. O principal é que ele enriquece através de arrancar dos produtores (os empregados) um sobretrabalho, que é a diferença entre a receita e os custos da exploração. Na medida em que o professor, através de sua contratação, traz receitas que excedam os custos, o capitalista alcança um dividendo – um lucro – através do mesmo trabalho não-pago do professor.

Mas quando transferimos a análise a um nível mais amplo, que toca ao estado do modo de produção e à reprodução em geral, surgem imediatamente dois complementos essenciais, que delimitam ainda mais o trabalho produtivo. O primeiro é que o trabalho produtor de mais-valia está ligado à criação de mais produto, expresso no valor de uso ao qual está ligado o valor de troca (dentro do qual também se esconde a mais-valia). De modo que se cria um excedente social que mantém o desenvolvimento da formação social. Um trabalho que não participa da criação de mais produto não é produtivo. Segundo, e segue ao dito anteriormente, há uma série de fatores ou esferas que certamente são necessários para o capital, mas desempenam esse papel necessário de um modo improdutivo (compare-se o tratamento de Marx à renda e ao surgimento do lucro comercial no terceiro tomo do Capital). É toda a esfera de circulação e as atividades que se financiam através de orçamento (por exemplo o poder judiciário, a saúde, a educação, etc.). Nessas esferas não se produz – para dize-lo com Marx – nem um pingo de novo valor. Ali só recircula o valor já produzido (em forma de dinheiro), mesmo o acordo entre o dono do capital e o assalariado depende do grau de trabalho não remunerado. Esse trabalho pode ser produtivo para o capitalista, enquanto o enriqueça, sem transferir seu caráter improdutivo fundamental em relação ao modo de produção e à produção propriamente dita.

A isto deve-se agregar depois a discussão de Marx sobre a subordinação formal e real do trabalho ao capital. Isto constitui mais uma importante delimitação. Como exemplo se pode mencionar o empregado economista da empresa, que ganha seu sustento vendendo seu trabalho em forma de cálculos sobre partes das áreas da exploração. Ele está formalmente subordinado ao capital, sem estar por ele subordinado e integrado realmente à produção de mais-valia. Para chegar à esta compreensão do problema que desenvolvemos, nos inspiramos nos seguintes textos:

Introdução a Grundrisse (Aspecto Fundamental) e o capítulo “Mais-valia e força produtiva. A relação quando elas aumentam. – Resultado -. Força produtiva de trabalho. – Na medida em que diminui o trabalho necessário se torna mais difícil a realização do capital”, o esquema de reprodução no segundo tomo do Capital, quarta e quinta seções do terceiro tomo do Capital, o capítulo catorze de “Teorias sobre a mais-valia”, o apêndice especial à “Teorias sobre a mais-valia” que trata a questão do trabalho produtivo e improdutivo assim como o artigo incompleto “O resultado imediato do processo de produção”. (Diante do estudo das últimas obras mencionadas queremos destacar especialmente a diferença entre os lugares onde Marx menciona a posição dos economistas clássicos frente a, por exemplo, os fisiocratas, dos lugares onde ele dá sua própria visão do problema).

A dificuldade de tomar posição por Marx ante a posição de Trotsky (ou Lenin) não se faz menos problemática pelo fato de que há vários exemplos que contradizem o caráter proletário do professor (e das camadas médias em geral). Já no primeiro tomo Marx se antecipa à futura apresentação do problema através da seguinte apreciação sobre o coletivo dos empregados de fábricas:

(…) A distinção essencial é a que se estabelece entre os operários que trabalham efetivamente nas máquinas-ferramentas (incluindo também nesta categoria os operários que vigiam ou alimentam os motores) e os simples peões que ajudam estes operários mecânicos (e que são quase exclusivamente crianças). Entre os peões se contam sobre o pouco mais ou menos todos os alimentadores (que se limitam a abastecer as máquinas com os materiais trabalhados por elas). Além destas classes, que são as principais, há o pessoal, pouco importante numericamente, encarregado do controle de toda a maquinaria e das reparações contínuas: engenheiros, mecânicos, carpinteiros, etc. Trata-se de uma categoria de trabalhadores de nível superior, que em parte têm uma cultura científica e em parte são simplesmente artesãos, e que se move à margem da órbita dos operários fabris, como elementos agregados a eles.

Em uma nota Marx agrega também o seguinte comentário lacônico a seu próprio raciocínio:

Esta categoria a que nos referimos serve de ponto característico de apoio à fraude estatística, fraude que se poderia analisar em detalhe, se houvesse interesse; de um lado, a legislação fabril inglesa exclui expressamente de seu raio de ação, como elementos que não são operários fabris, estes que acabamos de enumerar no texto; por outro lado, os Returns publicados pelo parlamento incluem não menos expressamente na categoria de operários fabris, não só os engenheiros, mecânicos etc., mas também os diretores de fábrica, representantes comerciais, vigilantes de armazéns, embaladores, etc., em uma palavra, todo o pessoal, com a única exceção do patrão.

Note bem: os engenheiros de então “controlam e reparam a maquinaria”. Atuavam como médicos descalços na vida da fábrica. Hoje têm um lugar completamente distinto na divisão do trabalho e se separaram da produção da mais-valia. Desta maneira, este raciocínio se torna muito claro para nós.

Para resumir este ponto: se vamos usar o trabalho produtivo como uma das linhas de orientação para a análise de classe – e essa é nossa posição – temos primeiro que entender todo o tratamento de Marx com relação ao problema e não nos determos em uma proposição que é contradita por várias outras.

2) Na resolução sindical da LS se faz referência a várias exposições, tanto de Lenin, como de Trotsky, que excluem grandes setores assalariados da classe operária. Essas observações são feitas na época imperialista, que, acima de qualquer outra coisa, também cria sua própria divisão especial do trabalho sobre a influência geral da produção capitalista no trabalho – uma divisão do trabalho que surge da acumulação monopolista, do parasitismo e do processo de putrefação generalizado. Antes de abandonarmos esta forma de ver o problema, antes de desenvolvermos outro ponto de vista para a análise do desenvolvimento da estrutura de classes durante a época imperialista, temos que analisar cuidadosamente a forma de nossos mestres de abordar o problema. Seria prestar um desserviço a nosso movimento a negligência com essa questão. Todas as rupturas com a tradição deveriam convenientemente passar pela via da crítica às deficiências das tradições.

3) A LS escolheu seguir a ordem de ideias de Lenin e Trotsky, não só por manter a tradição, mas também porque o vemos congruente com as indicações de Marx e a resposta apropriada para o impacto do sistema imperialista sobre a estrutura de classes. A LS parte da subjacente tendência à proletarização que se dá sob o imperialismo e que formalmente compreende a mais e mais setores no trabalho assalariado. Mas nós continuamos mostrando a posição contraditória que a maioria dessas camadas assalariadas apresentaram através de seu emprego em atividades que estão indissoluvelmente ligadas com o sistema imperialista – com o parasitismo e a putrefação -. Depois de ter introduzido esta divisão do trabalho imperialista nos aproximamos de uma compreensão de categoria real, as camadas médias assalariadas que separamos da classe operária, mas que não comparamos com a pequena burguesia.

Mesmo se constatamos que já durante a sociedade de transição a grande parte dessas camadas serão incorporadas fácil e flexivelmente à massa proletária, através da dissolução da divisão do trabalho imperialista e da execução do trabalho de construção socialista, elas não podem, por sua atual posição social, por sua dinâmica estratégica e histórica incorporar-se à classe operária. Que elas, apesar disso, pertencem à base social da revolução socialista se desprende de nossa análise geral da contradição entre o trabalho e o capital e as formas que adquire na época da revolução socialista mundial.

Frente a essas e outras questões ligadas a elas esperamos mais esclarecimentos por parte do SI.

Birô Político da Liga Socialista


Uma definição dinâmica

Osvaldo Garmendia

A carta dos companheiros da LS da Suécia aborda interessantes problemas teóricos, que estão sendo amplamente debatidos na atualidade pelos marxistas. Os mesmos se referem à própria definição de classe operária – e poderíamos estende-la à definição de classe em Marx -, ao papel que cumprem os conceitos de trabalho produtivo e improdutivo na delimitação da classe operária, e até ao próprio conceito de trabalho produtivo.

Apesar da carta dos companheiros não ser de todo clara, de sua leitura se compreende que utilizam um critério muito restrito para delimitar o que é a classe operária, no qual o conceito de trabalho produtivo desempenha um papel muito importante. Embora, discutiremos mais a fundo este conceito posteriormente, deixamos claro desde agora que Marx chama de trabalhador produtivo todo trabalhador assalariado produtor de mais-valia.

Em princípio, os companheiros consideram que são classe operária aqueles setores que são trabalhadores produtivos. Mas, em seguida, nos esclarecem que o conceito de trabalho produtivo deve restringir-se ainda mais. Segundo eles, deve-se considerar o nível de análise em que se coloca a definição de Marx no primeiro tomo do Capital; ao considerar-se níveis mais concretos de análise, deveria se considerar maiores restrições à definição de trabalho produtivo, sob pena de terminar considerando o professor que trabalha sob uma relação assalariada, como um trabalhador produtivo tal como o considera Marx no primeiro tomo de O Capital.

Desta maneira, os companheiros acrescentam: “dois complementos essenciais, que delimitam ainda mais o trabalho produtivo. O primeiro é que o trabalho produtor de mais-valia está ligado à criação de mais produto, expresso no valor de uso ao qual está ligado o valor de troca (dentro do qual também se esconde a mais-valia). De modo que se cria um excedente social que mantém o desenvolvimento da formação social. Um trabalho que não participa da criação de mais produto não é produtivo”. Em segundo lugar excluem da definição de trabalho produtivo as esferas nas quais se realiza a circulação do capital, e também toda a esfera que “se financiam através de reveny (explicam que reveny é um rendimento que ‘se baseia no uso improdutivo da mais-valia, ou seja, para o consumo e não para a acumulação’),” por exemplo o poder judiciário, a saúde, a educação, etc.”.

A estas restrições acrescentam “a discussão de Marx sobre a subordinação formal e real do trabalho ao capital”, pela qual se exclui também, por exemplo, o empregado economista da empresa, “que ganha seu sustento vendendo seu trabalho em forma de cálculos sobre partes das áreas da exploração. Ele está formalmente subordinado ao capital, sem estar por ele subordinado e integrado realmente à produção de mais-valia.”.

Então nos propõem tomar o conceito de trabalho produtivo como uma das linhas de orientação para a análise de classe” (grifo deles), para finalizar a carta dizem que separam as “camadas médias assalariadas” da classe operária, mas “que não comparamos com a pequena burguesia”. E mais taxativamente, todavia esclarecem que “…elas não podem, por sua atual posição social, por sua dinâmica estratégica e histórica incorporar-se à classe operária”.

 

A aplicação da definição

 

Antes de entrar na discussão teórica acerca dos problemas colocados, creio que é conveniente pôr à prova a definição dos companheiros sobre o que apontam considerar como classe operária, após a exclusão de todos os trabalhadores que não sejam produtivos, cujo trabalho não se realize em um produto, e que este ingresse na acumulação capitalista, seja como reprodutor da força de trabalho, ou do capital constante. (Recordemos que falam do trabalho que cria um excedente social que mantém o desenvolvimento da formação social).

Para começar, os companheiros não deixam claro se as esposas, os filhos dos operários e os operários aposentados entram em sua definição de classe operária, já que não estão trabalhando diretamente na produção. Voltaremos depois neste problema, mas sigamos agora atendo-nos à definição. Deveríamos excluir todos os empregados do comércio e bancários, os trabalhadores de escritório em geral – pelo menos em sua ampla maioria -, e o conjunto dos empregados assalariados do Estado. Entre estes, não entrariam na definição de classe operária os trabalhadores que consertam ruas, ou os que constroem pontes ou portos, já que seu trabalho não é diretamente produtor de mais-valia, já que é pago com as receitas do Estado.

Mas o critério se restringe ainda mais, já que devem produzir produtos que entrem no excedente social. Sabe-se que Marx excluiu das indústrias que produzem para a reprodução social as indústrias que produzem artigos de luxo, ou seja, produtos consumidos pela burguesia. Portanto, deveria se excluir também os trabalhadores das industrias armamentistas, além de todos aqueles que estão empregados pelo capitalismo produzindo coisas absolutamente inúteis do ponto de vista do excedente social. Além disso, entraríamos em problemas complexos na tentativa de definir, por exemplo, os trabalhadores da indústria automobilística. Por exemplo, se um trabalhador constrói um automóvel que vai ser vendido a um capitalista para seu uso pessoal, é improdutivo, se constrói um automóvel que vai ser utilizado em uma empresa, é produtivo. Encontraríamos trabalhadores incluídos por momentos na classe operária, e excluídos em outros momentos.

No que se refere ao conjunto da sociedade, estas restrições nos levariam à conclusão de que mesmo no país capitalista mais adiantado, os Estados Unidos, a classe operária seria uma ínfima minoria da população economicamente ativa.

Uma polêmica parecida com a que fazem os companheiros o fez Nicos Poulantzas, que definiu a classe operária como os assalariados manuais, não supervisores, que pertencem ao setor produtivo – englobando dentro do setor produtivo os trabalhadores que estão empregados nas empresas produtoras de artigos de luxo -. De acordo com este critério, E. O. Wright[1] demonstra que a classe operária constitui menos de 20% da força de trabalho norte-americana. Recordemos que a definição dos companheiros é ainda mais restritiva que a que dá Poulantzas, o que ainda excluiria possivelmente a metade dos trabalhadores manuais incluídos nessa cifra.

No outro extremo, e deixando na indefinição os trabalhadores manuais que não são produtivos, segundo a definição que dão os companheiros de trabalho produtivo e considerando somente o amplo setor de assalariados empregados no setor de comércio, bancário, escritórios de empresas, estatais, vendedores, técnicos, etc., teríamos que este setor – que Poulantzas define como nova pequena burguesia, e os companheiros como camadas médias – se hipertrofia até chegar a 70% da população economicamente ativa.

Desta maneira, chegaríamos à conclusão de que o capitalismo, longe de provocar a proletarização crescente, tende a gerar setores médios. E na elaboração dos companheiros o problema se complica ainda mais, já que nem sequer dão uma definição de classe rigorosa, já que falam de “camadas”.

Tiramos como conclusão da definição de classe dos companheiros que já não se dão as leis da acumulação do capitalismo abordadas por Marx. O capitalismo não gerou classe operária, mas gerou um produto social bastante raro, chamado “camada média”, cuja definição de classe permanece no limbo. Não quero entrar agora em uma discussão acerca do conceito marxista de camada ou estrato, mas assinalo que enquanto Marx disse no Manifesto que o desenvolvimento capitalista tendia à eliminação das camadas e estratos que existiram historicamente nas sociedades pré-capitalistas resumindo a luta de classes no enfrentamento entre operários e burgueses, os companheiros da LS nos levam à conclusão de que aconteceu exatamente o oposto: proliferam os assalariados pertencentes às camadas médias, enquanto a classe operária se vê mais e mais reduzida, mesmo no país de maior desenvolvimento capitalista, os Estados Unidos. Os companheiros, que possuem um conhecimento de Marx profundo, deveriam tentar explicar por que não se cumpriu a lei proposta no Manifesto, e retomada por Marx em suas obras posteriores. Deve-se levar em conta que não se trata de um problema menor, mas precisamente da tendência histórica do desenvolvimento da acumulação capitalista, o que é fundamental a partir da análise social e da atividade política do partido.

Estas contradições são consequência, na realidade, das definições e dos critérios adotados pelos companheiros. Começaremos analisando a determinação mais geral de classe operária, para depois passar a analisar outras categorias que os companheiros utilizam.

Trabalho assalariado 

Sabe-se que para o marxismo, e para Marx, uma classe não se compõe de pessoas que necessariamente tenham renda igual. Já em A Sagrada Família escreveu que “o senso comum grosseiro transforma a distinção de classes no tamanho do porta-moedas”, posição esta que vai manter até o fim de suas obras. Tampouco se pode unificar um grupo pela mesma fonte de renda – ver a respeito a breve indicação de Marx em seu capítulo inacabado sobre classes do III tomo de O Capital -.

Para o marxismo o fundamental é a relação que o grupo tem com o processo social de produção. Como se sabe, em toda sociedade na qual existe exploração, existe uma apropriação do excedente produzido pelos produtores por parte dos exploradores. Os distintos modos de produção se distinguem pela forma específica em que este excedente é arrancado, e, portanto, esta forma e este modo de produção vão determinar, por sua vez, as classes sociais. Marx diz no terceiro tomo de O Capital que “a forma econômica específica em que se arranca do produtor direto o trabalho excedente não pago determina a relação senhor e servo”, ou seja, determina uma relação entre duas classes, uma explorada e outra exploradora; esta forma específica determinará também a classe operária. Generalizando, Marx acrescenta que “a relação direta existente entre os proprietários dos meios de produção e os produtores diretos é sempre…a que nos revela o segredo mais escondido, a base oculta de toda construção social”.

Historicizando, o feudalismo é um modo de produção no qual o produtor direto possui seus próprios meios de produção, assim, como diz Marx, só a “coação extraeconômica, qualquer que seja a forma que a reveste, pode arrancar destes produtores – os servos – o trabalho excedente para o proprietário nominal”. O escravismo, diferentemente, é um modo de produção no qual o produtor não só não é dono das condições de seu trabalho, como também, nem sequer de sua própria pessoa.

Em oposição a estes modos de exploração, o capitalismo é o primeiro na história em que a exploração adquire uma forma puramente econômica. O produtor está despojado das condições, dos meios de produção – diferente do servo feudal – e estabelece uma relação livre, contratual, através do mercado, vendendo sua força de trabalho ao capital.

Por este motivo a forma assalariada é uma forma específica do modo de produção capitalista. Eis aqui a primeira diferença importante com os companheiros. Eles falam diretamente da distinção entre trabalho produtivo e improdutivo para determinar o que é classe operária, sem deter-se a analisar primeiro a determinação mais geral que é a da forma assalariada que tem a exploração sob este modo de produção. Problema importante, e também de se estranhar em companheiros que elaboraram um ponto importante ao situar corretamente os níveis de análise pelos quais Marx caminha. Aqui temos a determinação mais geral e assinalada pelo companheiro Moreno, em seu informe, como central na discussão.[2] A extensão e o predomínio da forma da exploração do trabalho assalariado pelo capital, são a característica primeira e distintiva – tanto a partir do ponto de vista histórico, como teórico – do modo de produção capitalista.

Isto não quer dizer que todo trabalho assalariado implique a existência de um operário. Marx afirmou que, assim como se convertiam em mercadoria produtos que em si não eram mercadorias –por não possuir trabalho necessário para produzi-las-, da mesma maneira a forma de trabalho assalariado podia abarcar personagens que em si não são operários, “desde prostitutas até reis”, passando por soldados, funcionários, etc.. Mas só sob o capitalismo a extração do trabalho excedente através da relação salarial se converte na forma geral. Portanto, em sua determinação mais genérica, capital implica trabalho assalariado e vice-versa.

Assim como a produção de mercadorias se estende cada vez mais aos mais amplos ramos da produção, da mesma maneira o faz o trabalho assalariado, o que constitui o índice mais seguro da extensão da relação capitalista de exploração, ou seja, da extensão do processo de proletarização.

Dito isto, devemos assinalar que esta relação salarial de exploração implica a produção de mais-valia, da qual o capitalista se apropria. Para analisar de que maneira se estende este processo de produção de mais-valia – e, portanto, a reprodução ampliada da relação trabalho assalariado-capital – é essencial discutir a categoria de trabalho produtivo.

Trabalho produtivo e improdutivo

Marx define trabalho produtivo no capitalismo como o trabalho que produz mais-valia para o capitalista, o que se torna rentável para o capital. Suas definições são explícitas:

Dentro do capitalismo, só é produtivo o operário que produz mais-valia para o capitalista ou que trabalha para fazer rentável o capital”.[3]

Ao contrário, trabalho improdutivo é aquele que não se troca por capital, mas por renda, quer dizer, por salários ou lucros. Em “Teorias sobre a mais-valia”, e em “Resultados do processo imediato de produção”, Marx volta a dar as mesmas definições.

Isto implica que para Marx o caráter de trabalho produtivo ou improdutivo não tem absolutamente a ver com o caráter material do trabalho ou do produto, mas está definido por seu caráter social, pela relação social sob a qual se realiza. Marx diz:

Portanto estas definições (se refere as de trabalho produtivo e improdutivo) não derivam das características materiais do trabalho (nem da natureza de seu produto nem do caráter especial do trabalho como trabalho concreto) mas da forma social definida, das relações sociais do produtor em que se realiza o trabalho. Um ator, por exemplo, ou inclusive um palhaço, segundo esta definição é um trabalhador produtivo se trabalha a serviço de um capitalista (um empresário) a quem devolve mais trabalho do que recebe dele em forma de salários; um alfaiate que trabalha a domicílio, vai à casa do capitalista e remenda as calças, com o qual produz um simples valor de uso, é um trabalhador improdutivo.[4]

Temos aqui a segunda diferença muito grande com os companheiros da LS. Apesar de possuírem um conhecimento muito grande de Marx, não viram que Marx constantemente define o trabalho produtivo como aquele que produz mais-valia, e em todos os níveis de análise – sempre que se trate da produção capitalista – mantém esta definição de trabalho produtivo, e, portanto, do que é um trabalhador produtivo.

Mais ainda, Marx diz explicitamente que os trabalhadores que estão empregados nas empresas que produzem artigos de luxo são também operários produtivos.

… é completamente lógico…que segundo os economistas consequentes aqueles que trabalham em fábricas de artigos de luxo, por exemplo, sejam trabalhadores produtivos, ainda que as pessoas que consomem tais objetos sejam desperdiçadores improdutivos. O fato é que estes trabalhadores verdadeiramente são produtivos na medida em que incrementam o capital de seu patrão, improdutivos no que concerne ao resultado material de seu trabalho. De fato este trabalhador ‘produtivo’ está tão pouco interessado na merda que tem que fabricar, como o próprio capitalista que o emprega[5]…”.

E no capítulo sobre “Resultados imediatos…”, resume assim as fontes deste erro tão frequente entre os economistas:

A mania de definir o trabalho produtivo e o improdutivo de acordo com seu conteúdo material reconhece três fontes:

1) a concepção fetichista, peculiar ao modo de produção capitalista e derivada da essência do mesmo, segundo a qual as determinações formais econômicas tais como ser mercadoria, ser trabalho produtivo, etc., constituem uma qualidade inerente em e para si aos depositários materiais destas determinações formais ou categorias.

2) Que se considera-se enquanto tal o processo laboral, só é produtivo o trabalho que desemboca em um produto (produto material, já que aqui se trata unicamente da riqueza material).

3) Que no processo real da reprodução – considerando seus verdadeiros elementos – a respeito da formação da riqueza, existe uma grande diferença entre o trabalho que se manifesta em artigos reprodutivos e o que o faz em meros artigos luxuosos (de luxo)”.[6]

 

A importância desta definição

Esta definição tem grande importância na análise de Marx. À medida em que o capitalismo avança, mais e mais trabalhos que anteriormente eram realizados por trabalhadores improdutivos, caem nas garras do capital e passam a ser realizados por trabalhadores produtivos. Os exemplos são muitos, começando pelos da produção de artigos de consumo massivo. É uma tendência geral do capitalismo, que os estudos marxistas mais sérios não deixam de confirmar. Por exemplo, nos Estados Unidos, até princípios do século, grande parte da reprodução da força de trabalho operária era abastecida pelas pequenas hortas; o trabalho da mulher do operário abarcava múltiplas tarefas, como a de fazer pão, vinho sabão, etc., na casa. Progressivamente, estas tarefas passaram a ser feitas por operários produtivos, que trabalham para empresas capitalistas. Atualmente, já se chega à própria preparação das comidas, e a mulher do operário vai trabalhar para o capital; assim aumenta a proletarização, já que se converte em proletária a mulher do operário, e são proletários produtivos os que fabricam bens de consumo – muitos dos quais a estatística burguesa engloba incorretamente sob o rótulo de trabalhadores do setor de serviços -. Insistimos que esta definição de trabalhador produtivo é independente do caráter material do produto, ou seja, se fabricam bíblias, aquecedores, livros, óperas ou programas de computadores.

Como vemos, esta categoria tem muita importância no estudo de quais são as tendências na formação da classe operária. A fim de aprofundar esta análise, Marx introduz o conceito de subordinação formal e real do trabalho ao capital. Esta distinção é importante para analisar as tendências à crescente proletarização de trabalhadores tais como os professores, os da saúde, etc. Vamos vê-la mais de perto.

As formas transitórias e a proletarização

Devemos assinalar que para Marx a classe operária não é uma “coisa”, mas uma relação social – “se define o operário em relação ao capitalista”, escreve em Grundrisse – e como toda relação social, sofre um processo de formação e consolidação, na qual pode haver formas transitórias, as quais devemos definir por sua dinâmica.

Acreditamos que é essencial entender este aspecto do pensamento de Marx, porque constitui a essência de seu método. Não é por acaso que em O Capital, quando fala da submissão do operário ao capital, a apresente como um processo histórico, no qual existem formas intermediárias prévias de exploração por parte do capitalista: o trabalhador a domicílio não está subordinado ainda ao capital, mas é explorado pelo capital comercial e em muitos casos deixa de ser um pequeno burguês dono de seus meios de produção, quer dizer, é uma forma social intermediária, a caminho da proletarização.

Esta definição dinâmica da classe operária não só se desprende do estudo da obra de Marx, mas também foi formulada explicitamente por ele. Assim como o caráter do trabalho enquanto trabalho abstrato está socialmente determinado – não existe o trabalho abstrato enquanto tal em sociedades pré-capitalistas – da mesma maneira se determina mais e mais o caráter do operário na medida em que seu trabalho passa a ser trabalho abstrato, geral, produtor de mais-valia para o capitalista.

…o trabalhador mesmo é absolutamente indiferente com respeito ao caráter determinado de seu trabalho; para ele este carece enquanto tal de interesse, salvo por ser trabalho em geral, e como tal, valor de uso para o capital – constitui, pois, a característica econômica do operário: é operário em oposição ao capitalista. Não é esta a característica do artesão, do membro de uma corporação… Esta relação econômica – a característica que o capitalista e o operário apresentam enquanto extremos de uma relação de produção – se desenvolve por conseguinte com tanto mais pureza e adequação quanto mais o trabalho perde todo caráter artesanal; sua destreza particular se converte cada vez mais em algo abstrato, indiferente, e se volta mais e mais a uma atividade puramente abstrata, puramente mecânica, e, por conseguinte, indiferente à sua forma particular.[7]

Vemos aqui como Marx define o operário em relação com o capitalista, e como propõe que esta relação se desenvolve, na medida em que o trabalho se converte em abstrato.

Daqui a importância dos conceitos de subordinação formal e real para entender o processo de formação da classe operária, e o próprio conceito de classe operária. Para Marx subordinação formal do operário ao capital significa que o capital incorpora o trabalhador sob sua relação, arrancando-lhe diretamente a mais-valia, ainda que sem modificar sua forma de trabalho; esta relação implica a existência do trabalho assalariado.

Por último, a subordinação real do trabalho ao capital implica que este último determina e modifica totalmente as formas de trabalho do operário. Este já não só não é mais dono de suas condições de trabalho, mas além disso se vê totalmente subordinado, submisso ao capital; os ritmos de trabalho lhe são impostos pela máquina e pela divisão do trabalho dentro da fábrica; estamos assim na presença do modo de produção especificamente capitalista.

Em base a estas categorias é que Marx inclui trabalhadores como o professor de escola, ou o escritor que trabalha para o capitalista como formas transitórias, ainda mantendo a definição de trabalhador produtivo. Isto é importante, porque não é, como o dão a entender os companheiros da LS, que Marx modifica sua definição de trabalho produtivo, adicionando-lhe restrições. Nada disto, ele a mantém, mas acrescenta determinações que permitem avançar no estudo de formas intermediárias, e não para fixa-las em categorias estáticas – que tanta afeição causa a um marxismo acadêmico – mas para que nos permita definir dinâmica e dialeticamente as categorias sociais.

Assim, um grande escritor que produz um livro para um capitalista, se aproxima do pequeno burguês dono de suas condições de trabalho, que vende seu produto a um capitalista, mas um escritor que trabalha por sob encomenda, se aproxima do operário produtivo, e aquele que escreve em série – como os que fazem trabalhos coletivos como guias ou enciclopédias – pode ser considerado totalmente subordinado ao capital. Vejamos o que Marx diz a esse respeito:

Milton, digamos, que escreveu O Paraíso Perdido, era um trabalhador improdutivo. Ao contrário, o escritor que proporciona trabalho como de fábrica a um livreiro é um trabalhador produtivo. Milton produziu o Paraiso Perdido como um bicho produz seda, como manifestação de sua natureza. Mais adiante vendeu o produto por 5 libras e deste modo se converteu em comerciante. Mas o escritor proletário de Leipzig que produz livros… por encomenda de seu livreiro, está próximo de ser trabalhador produtivo, pois sua produção está subordinada ao capital e não é realizada, senão para valoriza-lo.

Depois de aludir ao cantor e ao professor de escola que trabalham para o capitalista como trabalhadores produtivos, Marx acrescenta:

Ainda assim, a maior parte destes trabalhadores, a partir do ponto de vista da forma, apenas se subordinam formalmente ao capital: pertencem às formas de transição.[8]

Devemos notar com especial atenção, como Marx fala do “escritor proletário, que realiza um trabalho produtivo e está próximo de ser um trabalhador produtivo”; assim demarca a contradição da forma que analisa, e também qual é a tendência a que aponta e como existe uma graduação de formas sociais que vão desde as formas mais contraditórias até as que se subordinem totalmente à relação capitalista.

O problema na atualidade

No entanto, não haveria pior erro que pretender deixar tal como está a definição de Marx sobre esses tipos de trabalho, sem tentar aplica-la ao que acontece atualmente. No apêndice 12 do tomo I de Teorias…, Marx não só assinala o caráter transitório destas formas, mas também assinala – depois de fazer alusão ao professor de escola precisamente – que “todas estas manifestações da produção capitalista nesta esfera são tão insignificantes em comparação com o total da produção, que se pode prescindir por completo delas.[9] Atualmente, no entanto, estas formas se desenvolveram em grau incomparável com o século passado, e já não são insignificantes. E devemos analisar em que direção o fizeram, continuando a análise e em especial o método dialético que Marx sugere nas citações que fizemos.

Acreditamos que não há dúvidas de que estes trabalhadores produtivos hoje estão mais e mais subordinados ao capital, não só formal, mas também realmente. As relações capitalistas se estenderam ao ponto de ditar as condições de trabalho a milhões de professores, enfermeiros e trabalhadores da saúde – e ainda a médicos, ainda que estes pertençam, todavia, a formas transitórias enquanto assalariados sob relação capitalista, subordinados “apenas formalmente” ao capital.

Poderiam nos questionar sobre o problema dos trabalhadores da educação ou de saúde sob relação salarial, mas pagos pelo Estado. Depois trataremos este tema, dos trabalhadores subordinados ao capital de maneira indireta, através do Estado, mas acreditamos que o dito até aqui permite ampliar muitíssimo a definição de classe operária que os companheiros deram.

Esta discussão sobre a crescente subordinação às relações capitalistas de todos estes trabalhadores produtivos é a base social que permite compreender porque avançaram tanto a sindicalização e a luta de amplas camadas destes trabalhadores. Não são donos de seus meios de trabalho, não são donos de suas condições de trabalho, vendem sua força de trabalho ao capital, estão submetidos a este, criam mais-valia, o que mais se necessita para engloba-los na classe operária?

Por outro lado, as formas transitórias a que nos referimos são muito importantes na análise das tendências do capitalismo. Há proletários que possuem uma pequena propriedade, que ajuda a sua manutenção, mas o determinante é sua relação assalariada sob o capital. Esta forma, que foi analisada com profundidade nos últimos anos, já havia sido abordada por Engels com relação aos operários alemães no século passado.[10]

Outras formas são mais claramente transitórias, por exemplo, insistimos, a relação de exploração através do comerciante. Em todas elas, é importante assinalar não só que são transicionais, mas também sua dinâmica, que é a de crescente subordinação à relação capitalista, ou a crescente exploração por vias indiretas. Assim Lenin, posteriormente englobará os operários que trabalham para o comerciante dentro do conjunto da classe operária explorada pelo capitalismo. Agreguemos que Lenin também estende o conceito de classe operária ao conjunto dos trabalhadores explorados pelo capital.[11]

O problema dos trabalhadores do comércio e bancos

Vimos a importância que tem a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, para analisar as tendências no capitalismo. Mas deixamos de lado o problema dos trabalhadores que estão subordinados à relação capitalista, mas que não produzem diretamente mais-valia porque ajudam o capitalista na realização da mesma na esfera da circulação das mercadorias ou do capital monetário.

Em geral Marx nunca utilizou as categorias de trabalho produtivo e improdutivo para separar da classe operária este tipo de trabalhadores. Já vimos que estas categorias lhe servem para analisar a tendência geral de muitos trabalhos a converter-se em trabalhos realizados de forma capitalista. Mas os empregados do comércio, embora tenha dito que não produzem mais-valia, os englobou na classe operária. Para Marx existia a mesma relação que existe entre um capitalista industrial e um capitalista comercial. Apesar de só o primeiro estar à frente do setor no qual se produz mais-valia, ambos pertencem à classe capitalista. E embora na época em que Marx escreveu, os empregados do comércio não estavam totalmente subordinados à relação capitalista – como tampouco o estavam em geral os empregados do escritório da fábrica, como veremos depois – Marx não duvidou em marcar a tendência à crescente subordinação ao capital destes trabalhadores.

Para demonstrar o que afirmamos, nos vemos na obrigação de citar de novo textos de Marx:

Em certa medida, um trabalhador do comércio não difere dos demais assalariados. Antes de tudo porque seu trabalho é comprado pelo capital variável do comerciante, e não pelo dinheiro que este investe como renda… Depois, porque o valor da força de trabalho do empregado do comercio… se determina como no caso de todos os demais assalariados…” (…) “…entre ele e os operários empregados de maneira direta pelo capital industrial tem que existir a mesma diferença que entre este último e o capital mercantil, e, portanto, entre o capitalista industrial e o comerciante.[12]

Mais ainda, como também o diz Marx, estes trabalhadores realizam sobretrabalho para o capitalista, ainda que este trabalho não se materialize em mais-valia. Podemos agora generalizar o que desenvolvemos anteriormente sobre a especificidade do modo de produção capitalista. Havíamos dito que este se caracterizava pela exploração através da relação salarial. Esta apropriação do trabalho excedente pode dar-se através da apropriação da mais-valia produzida pelo operário produtivo ou pode haver trabalho excedente entregue gratuitamente pelo operário ao capitalismo, trabalho excedente este que não se objetiva em mais-valia, mas permite ao capitalismo realiza-la, e desta maneira reduzir seus gastos falsos (faux-frais), como dizia Marx. Mais ainda, cobra uma significação nova à definição de Marx de trabalho produtivo do primeiro tomo de O Capital, que já citamos, na qual o conceito de trabalho produtivo inclui também o que trabalha “para fazer rentável o capital”.

Vemos assim que todos esses trabalhadores estão submetidos à relação salarial de exploração sob o capital, o que autoriza Marx a engloba-los na mesma classe, produzam ou não mais-valia. E à medida em que avança o capitalismo, avança a proletarização e, assim, a exploração de todos os setores.

Com relação à esta tendência, Marx é igualmente claro:

O trabalhador comercial propriamente dito pertence à categoria dos assalariados mais bem pagos, daqueles cujo trabalho qualificado se encontra acima do trabalho médio. Apesar disso, com o progresso do modo de produção capitalista, seu salário tende a diminuir, inclusive a respeito do trabalho médio. Isso se deve, antes de tudo, à divisão do trabalho no escritório…

Com poucas exceções, a força de trabalho destas pessoas se torna desvalorizada com o progresso da produção capitalista”.[13]

E em nota de rodapé, Engels acrescenta: “Estas previsões a respeito da sorte do proletariado comercial, escritas em 1865, foram confirmadas mais adiante”. Vemos que ainda que Marx não chegue a falar de proletariado, vinte anos mais tarde Engels vê o processo de subordinação real ao capital tão avançado a ponto de falar de “proletariado comercial”.

O que foi dito sobre a análise com relação aos trabalhadores comerciais, se estende aos bancários.

Análise dos empregados de escritório depois de Marx

Como vimos, Marx não falava de classe média, mas, pelo contrário, a incluía dentro da classe operária, e marcava a tendência à crescente proletarização desta força de trabalho.

Cremos que foi na Segunda Internacional onde se começou a falar das novas classes médias. Segundo Gurvitch[14], Bernstein identificava as classes sociais com os agrupamentos de afinidade econômica, e sobretudo pela identidade de salário ou renda, a partir do que tentou demonstrar que o capitalismo engendrava cada vez mais classe média – o que servia muito bem a seu propósito de demonstrar que o desenvolvimento do capitalismo permite uma melhora geral e o fortalecimento da democracia.

Kautsky, por sua vez, argumentava contra Bernstein que o caráter de classe era atribuído pelo papel que desempenhava um grupo na produção, mas concordava com Bernstein no crescimento da importância das classes médias. (Também em Gurvitch). H. Braverman[15] argumentava também que nas discussões na Segunda Internacional que se deram antes da Primeira Guerra, sobre o caráter de classe dos empregados de escritório, os considerou em geral como classes médias.

Finalmente, Trotsky, a partir de uma perspectiva oposta à II Internacional, afirma em seu comentário

Há noventa anos do Manifesto”, escrito em 1937, que “…o desenvolvimento do capitalismo acelerou ao extremo o surgimento de legiões de técnicos, administradores, empregados do comércio, em resumo, a chamada ‘nova classe média

No entanto, deixando de lado o problema de supervisores e pessoal de níveis de direção intermediária, – que devem ser tratados aparte – é necessário perguntar-se se o desenvolvimento do capitalismo confirmou a predição de Marx, e que Engels ratificara, ou se pelo contrário, tinham razão os dirigentes da Segunda Internacional, e Trotsky. Para isso, deve-se analisar o desenvolvimento real destes setores.

Os empregados de escritório, vendedores, etecetera, na atualidade

De acordo com os estudos de Braverman que tratou o tema profundamente, o desenvolvimento capitalista confirmou plenamente o que predisse Marx, desmentindo a Segunda Internacional e Trotsky.

Para começar, o próprio trabalho de escritório mudou radicalmente. No século XIX ainda era possível catalogar os empregados de escritório como setores médios, ainda que já tenhamos visto que Marx – apesar de considerar que não eram “simples operários” como afirma em Grundrisse – os assimilava à classe operária. Mas ainda podia discutir-se o problema. Efetivamente, diz Braverman que

nos séculos dezoito e princípios do dezenove, ‘escriturário’ ou ‘chefe de escritório’ era o título do gerente em algumas indústrias britânicas: ferrovias e serviços públicos. Era comum que os escriturários fossem pagos pelo gerente de seu próprio salário, de acordo com sua posição de subgerentes ou ao menos assistentes do gerente, e alguns eram favorecidos com gratificações ao terminar alguns trabalhos ou com heranças depois da morte do dono…” (…) “…em um sentido amplo, em termos de função, autoridade, pagamento, categoria do emprego (um emprego de escritório era geralmente por toda a vida), perspectivas, para não mencionar ‘status’ e inclusive roupa, os escriturários estavam mais próximos do patrão do que do trabalho na fábrica.[16]

Isto mudou radicalmente, começando pelo número de escriturários. Se ainda ao final do século o trabalho em escritórios era insignificante numericamente, sua importância cresce com o correr do século, em pé de igualdade, como veremos, com o processo de proletarização.

O censo de 1870 nos Estados Unidos classificava somente 82.000 – 0,6% de ‘todos os trabalhadores com renda’ – em ocupações de escritório. Na Inglaterra, o censo de 1851 contava entre 70.000 a 80.000 escriturários ou seja 0,8% dos empregados com renda. Ao final do século a proporção de escriturário na população trabalhadora havia subido a 4% na Inglaterra e a 3% nos Estados Unidos… Para o censo de 1961 havia na Inglaterra cerca de 3 milhões de escriturários, quase 13% da população empregada; e nos Estados Unidos em 1970, a classificação de escriturários tinha se elevado a mais de 14 milhões de trabalhadores, quase 18% dos empregados com renda, sendo igual em tamanho, entre as grandes classificações da escala ocupacional, ao grupo de operadores de todo tipo.[17]

No que diz respeito ao salário, diz

…em dados reunidos pelo Escritório de Estatísticas do Trabalho em maio de 1971…o salário semanal para um escriturário de tempo integral era mais baixo que o de qualquer tipo de trabalhador dos chamados ‘colarinho-azul’.[18]

No que diz respeito às condições gerais de trabalho – além de recordar uma vez mais que são assalariados subordinados formalmente ao capital, aumentou brutalmente a submissão real do trabalho de escritório ao capital, incorporando-se os métodos da divisão do trabalho e a mecanização.

Os processos do trabalho na maioria dos escritórios são facilmente reconhecíveis em termos industriais, como processos de fluxo contínuo. Principalmente consistem no fluxo de documentos requeridos para efetuar e registrar transações comerciais, acordos contraturais.[19]

Os trabalhos de datilografo, operar máquinas de calcular, envelopar, arquivar, ou ainda os trabalhos modernos como os de operador de computadores se fazem cada vez mais em série, de forma monótona e alienante, onde o trabalhador se vê amputado de suas qualidades integrais para ser aplicadas unilateralmente a um trabalho que detesta. “As funções de pensamento e planejamento se concentraram em um grupo cada vez menor dentro do escritório e para a massa dos empregados ali, o escritório se converteu em um lugar de trabalho manual assim como a fábrica mesma”.[20]

No que diz respeito aos empregados em vendas, podemos ver o mesmo processo. Tudo isto não elimina o fato de que sejam trabalhadores improdutivos a partir do ponto de vista de que não produzem diretamente mais-valia – ainda que os empregados de escritório ligados ao departamento produtivo a produzam! -, mas pertencem à classe operária, formal e realmente, para usar as categorias de Marx, e cada vez em maior medida, porque sua dinâmica é de crescente proletarização.

Os funcionários intermediários das empresas

Os companheiros da LS citam Marx, quando se refere às estratificações dentro da empresa. Nessa citação, Marx fala da distinção entre os operários das máquinas e ferramentas, dos peões que alimentam as máquinas, e dos “trabalhadores de categoria superior” como engenheiros, mecânicos, carpinteiros, etc. Marx diz que esta categoria de trabalhadores “se move à margem da órbita dos operários da fábrica, como elementos agregados a eles”. Pode-se pensar em base à essa citação, que se trata de uma camada distinta socialmente da do resto dos operários, quer dizer, não pertencente à classe operária? O próprio Marx se apressa em esclarecer que não é assim, posto que agrega: “Como se vê, esta divisão do trabalho é puramente técnica (Grifo de Marx). Os companheiros da LS, que tão bem conhecem Marx, não citaram, no entanto, esta frase, que está na sequência da citação que apresentam na carta e que encerra o conceito que está desenvolvendo. Com isso Marx está nos dizendo que a divisão que introduziu se refere às camadas dentro do proletariado, ou seja, dentro de uma mesma classe. Desta forma, a nota de Marx que citam os companheiros não faz mais que confirmar o que dissemos.

Isto não significa que se deva considerar os capatazes, supervisores e demais funcionários hierárquicos como classe operária. Aqui a diferença é significativa. Estes setores cumprem uma função em parte produtiva, enquanto suas funções derivam das necessidades do próprio processo de produção; em toda sociedade será necessário coordenar o processo produtivo. Mas além disso cumprem uma função de vigilância e de controle, de exploração da classe operária, e na medida em que o fazem se opõem à classe operária. Este caráter contraditório está destacado na atualidade pelo fato de que quase todos estes setores não só recebem como pagamento o valor de uma força de trabalho qualificada, mas também participam em parte da mais-valia que se extrai da classe operária. A partir deste ponto de vista, aqui sim podemos falar de modernas classes médias. Seu próprio trabalho, as modalidades gerais sob as que se desenvolve, não estão totalmente subordinadas ao capital. O rótulo “modernas” se justifica, por outro lado, porque são um produto do capitalismo – diferente da antiga pequena burguesia que tende a ser varrida pelo desenvolvimento capitalista.

No que se refere à categoria dos gerentes, Marx já havia assinalado que o fato de que recebam um salário não deve ocultar que cumprem a função de representar o capital enquanto explorador da força de trabalho, em oposição a simples propriedade do capital, que encarnam os acionistas e demais parasitas. A partir deste ponto de vista, estes altos gerentes se incorporam à classe capitalista. Agreguemos que na atualidade, estes setores se integram mais e mais à parte da classe capitalista proprietária do capital, já que muitas vezes são remunerados com participações nos pacotes acionários das empresas.

Este caráter de classe distinto ao da classe operária dos supervisores se manifesta à nível dos interesses de classe que defendem.

Assim como os baixos empregados de escritório, vendedores, trabalhadores produtivos como professores, da área da saúde, etc., enfim todas as categorias que estivemos vendo até agora, se identificam mais e mais com os interesses de classe do conjunto do proletariado, os interesses de classe do capataz ou do supervisor oscilam, se enfrentam aos do capitalista enquanto são produtores de mais-valia, se enfrentam aos do operário enquanto representam os interesses do capital na produção e cumprem tarefas de vigilância, que os fazem participantes em parte da mais-valia. Esta posição contraditória pode levar a que em momentos de crise estes setores se alinhem com a classe operária, e, mais ainda, que setores intermediários cheguem a encabeçar lutas sindicais enfrentando o capital.

Os trabalhadores estatais

Devemos analisar a que classe pertencem os milhões de empregados estatais.

É evidente que estes trabalhadores não estão incluídos diretamente na relação trabalho assalariado-capital. (Deixamos à margem os operários de empresas estatais, que são trabalhadores produtivos, já que produzem mais-valia sob a forma material de eletricidade, água, etc.).

É evidente que não os podemos assimilar à classe operária pela magnitude de sua renda, nem pela fonte da mesma. Em relação a este último, se analisamos um ministério, por exemplo, não podemos dizer que o porteiro do mesmo, o funcionário intermediário e o ministro pertencem à mesma classe porque todos têm como fonte de renda a parte do orçamento estatal que financia o Ministério.

Mas também é certo que a relação trabalho assalariado-capital não abarca completamente a determinação das classes sociais. Constitui seu fundamento, sua base material, determina o núcleo da classe, mas esta não se limita só aos grupos incluídos na relação econômica específica. Gurvitch, que assinalou isto, assinalou também que Marx não falou nunca de classes econômicas, mas de classes sociais. Por exemplo, ao ministro ou ao alto funcionário assimilamos à classe burguesa, ainda que ele pessoalmente não seja dono de meios de produção e não esteja incluído pessoalmente na relação de produção. Da mesma maneira, Marx se refere à classe operária em seu conjunto incluindo a mulher e os filhos do operário, ainda que não participem diretamente na produção. Podemos dizer que estão incluídos indiretamente, através da relação social que mantêm com o operário.

Voltando agora ao caso dos trabalhadores estatais, devemos analisar que relação eles mantêm com o modo de produção-exploração capitalista.

Ainda que Marx não tenha tratado o tema profundamente, nos deixou algumas indicações valiosas que nos ajudarão em nossa investigação. No tomo II de Grundrisse se refere aos operários que constroem estradas pagas pelo Estado. Afirma que são trabalhadores improdutivos porque não estão subordinados a uma relação capitalista e porque não produzem mais-valia (esclarecemos, sempre e quando a estrada não seja vendida como uma mercadoria); são operários que produzem as condições gerais necessárias para a produção de mais-valia. Marx nos disse explicitamente que são trabalhadores que estão em outra relação econômica que o resto dos assalariados pelo capital, mas não deixa de esclarecer que “é um assalariado livre como qualquer outro” e, muito importante, como qualquer outro rende sobretrabalho, ainda que este tempo de sobretrabalho, contido no produto “seja impossível de trocar. Para o operário mesmo, comparado com os demais assalariados, se trata de sobretrabalho.[21]

Temos então que são operários que produzem as condições gerais do capital, assalariados que rendem sobretrabalho, portanto, explorados pelo capital, ainda que indiretamente. Isto os leva a ter interesses de classe idênticos aos de qualquer outro trabalhador empregado diretamente pelo capital.

Ainda que Marx não tenha desenvolvido estas ideias, posteriormente Lenin também se referiu aos trabalhadores estatais, e distinguiu com cuidado a camada de funcionários médios – provenientes das camadas médias, com privilégios e regalias – da massa de trabalhadores oprimidos, com salários de fome. Os funcionários médios e altos pertencem às classes médias e à burguesia, e constituem propriamente a burocracia do Estado burguês, que “administra e controla”, e que participa em maior ou menor medida da exploração da classe operária. Por debaixo deles existe uma imensa massa de trabalhadores que só vendem sua força de trabalho, e que embora não realizem trabalho produtivo – não nos referimos aos operários de empresas estatais, que são operários produtivos pura e simplesmente – são necessários à reprodução do capital. Por este motivo Lenin fala dos empregados de correios como pertencentes à classe operária.[22]

Assim teríamos que há operários estatais que criam as condições gerais para a produção capitalista – podemos dizer que criam o capital constante “social”, como estradas, portos, etc., – outros trabalham nas condições gerais de manutenção do aparato estatal capitalista, e por último, os trabalhadores da educação e da saúde do Estado permitem ao capital a reprodução da força de trabalho a baixo custo. Todos eles rendem sobretrabalho, apesar de não produzir mais-valia, e são explorados indiretamente pelo capital.

Para ser mais claro, em que se diferenciam os interesses de classe de uma professora assalariada com os de um capitalista da educação, de uma professora assalariada pelo Estado?

De forma geral, os trabalhadores estatais passam ao setor privado, e inversamente, sem que mudem suas formas gerais de trabalho. A relação fundamental segue sendo a de compra e venda da força do trabalho, em ambos âmbitos rendem sobretrabalho, com a diferença de que no setor privado, sob a relação capitalista, este se materializa em mais-valia, enquanto que sob a relação estatal permite ao capital economizar os “faux frais” à que sempre está obrigado o modo de produção capitalista. De conjunto, todos os trabalhadores são explorados então pelo capital, alguns de forma direta, outros, indireta.

Isto explica a profunda solidariedade entre trabalhadores estatais e privados. Dois interesses comuns que os tornam irmãos na luta de classes – que não se manifestam entre diferentes classes sociais – e a sindicalização crescente destes setores. Mais ainda, alguns dos setores de trabalhadores estatais tanto dos países atrasados como dos países imperialistas estiveram na vanguarda das lutas salariais e reivindicativas nos últimos anos, em que toda a administração estatal entrou em crise.

Possivelmente os maiores exemplos são os dos trabalhadores da educação da Colômbia e do Peru, que há décadas constituem a vanguarda indiscutível de seus respectivos movimentos sindicais nacionais. Note-se que não falamos de um fenômeno passageiro, de uma vanguarda circunstancial da luta de classes. Os companheiros da LS deveriam dar uma explicação estrutural de por que uma camada média pode desempenhar este papel de vanguarda durante tanto tempo. É evidente que é necessária para isso uma explicação que arranque estes setores da posição que ocupam na produção capitalista. Cremos que a análise dos companheiros é incapaz de explicar isto.

A nível de resumo

Não pretendemos com o escrito esgotar a discussão, mas simplesmente aportar alguns elementos ao debate e apresentar as conclusões a que chegou nosso estudo do tema. Estas conclusões são necessariamente provisórias, e esperamos que os companheiros nos aportem mais elementos e argumentos de suas posições, que estamos seguros, nos ajudarão a avançar.

Ao finalizar sua carta, os companheiros nos dizem que as camadas médias “não podem, por sua atual posição social, por sua dinâmica estratégica e histórica incorporar-se à classe operária”. Nós, no entanto, terminaremos resumindo a posição desenvolvida neste artigo dizendo que, por sua posição social, estes trabalhadores estão subordinados ao capital, que sua dinâmica foi marcada por uma crescente proletarização, e que esta deve abarcar cada vez mais setores, que por sua dinâmica histórica, têm uma crescente identidade de interesses com os operários produtivos manuais, porque passam a integrar uma mesma classe, e devemos agregar que sua dinâmica política, respondendo a esta condição social, é a da crescente fusão de todas as camadas do proletariado na luta de uma só classe que que se transforma progressivamente em “classe para si”.

[1] E. O. Wright. “Clase, crisis y Estado” [Classe, crise e Estado]. Edit. Siglo XXI, Espanha, 1983.

[2] Ver Correo Internacional [Correio Internacional] Nº20, junho 1986.

[3] “El Capital” [O Capital], tomo I, pag. 246. F.C.E.

[4] “Teoría sobre la plusvalía” [Teoria sobre a mais-valia]. Tomo I, pag. 133, Edit. Cartago.

[5] “Grundisse…” [Grundrisse…] Tomo I, pág. 214. Edit. Siglo XXI.

[6] Capítulo VI (inédito), págs. 86-87. Edit. Siglo XXI.

[7] “Grundisse…” [Grundrisse…] Tomo I, pag. 237. Ed. citada

[8] Capítulo VI, págs. 84-85. Ed. citada

[9] Teorías… [Teorias…] Tomo I, pag. 347. Ed. Citada.

[10] Engels os engloba diretamente dentro do proletariado, ver “El problema de la vivienda em Alemania” [O problema da moradia na Alemanha].

[11] Ver “¿Quiénes son los amigos del Pueblo?…” [Quem são os amigos do Povo?…], Obras completas, tomo I. Edit. Cartago.

[12] El Capital [O Capital]. Tomo III, pag. 309. Edit. Cartago.

[13] Idem, págs. 315-316.

[14] Gurvitch: “El concepto de classes sociales” [O conceito de classes sociais]. Edit. Nueva Visión. Buenos Aires, 1970.

[15] H. Brauerman: “Trabajo y capital monopolista” [Trabalho e capital monopolista]. Edit. Nuestro Tiempo. México, 1984.

[16] Ob. Citada, págs. 338-339.

[17] Idem, pag. 339.

[18] Idem, pag. 341.

[19] Idem, pag. 358.

[20] Idem, pag. 362.

[21] “Grundisse…” [Grundrisse…] Tomo II, págs. 22 e 23.

[22] Ver “El estado y la revolución” [O estado e a revolução].