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TEORIA

98 anos de Outubro: Reflexões às vésperas de um centenário

Henrique Canary

 

É incrível pensar que apenas dois anos nos separam do centenário de Outubro! A Revolução Russa foi o espectro que rondou o mundo ao longo de quase todo o século 20. O pavor de que a experiência soviética se repetisse em outro país assombrou as noites de mais de uma geração de burgueses e reformistas convictos. Esta era, aliás, a aposta dos bolcheviques antes e imediatamente depois da tomada do poder. Não por acaso, já em 1919, ainda em meio à guerra civil, comunistas do mundo inteiro se reuniram em Moscou e fundaram a III Internacional, que deveria se tornar um verdadeiro partido mundial da revolução proletária. Para que essa estratégia se cumprisse, era preciso diferenciar, no entanto, o que havia de universal na Revolução Russa (e que deveria por isso ser repetido em outros países), e o que ela tinha de particular, de especificamente russo (e que não deveria ser copiado mecanicamente por outros partidos e nações). Em seu famoso ensaio O esquerdismo, doença infantil do comunismo, Lenin aborda esse problema:

Atualmente já possuímos uma experiência internacional bastante considerável, experiência que demonstra, com absoluta clareza, que alguns dos aspectos fundamentais da nossa revolução não têm apenas significado local, particularmente nacional, russo, mas revestem-se, também, de significação internacional. E não me refiro à significação internacional no sentido amplo da palavra: não são apenas alguns, mas sim todos os aspectos fundamentais – e muitos secundários – da nossa revolução que têm significado internacional quanto à influência que exercem sobre todos os países. Não, refiro-me ao sentido mais estrito da palavra, isto é, entendendo por significado internacional a sua transcendência mundial ou a inevitabilidade histórica de que o que aconteceu no nosso país se repita em escala universal (…). Naturalmente, seria o maior dos erros exagerar o alcance dessa verdade, aplicando-a a outros aspectos da nossa revolução além de alguns dos fundamentais. (LENIN, 2014, p. 43) (grifo meu, H. C.)

Lenin discute aqui com os ultra-esquerdistas holandeses, alemães, ingleses e italianos, que tentavam imitar mecanicamente, sem qualquer mediação ou adaptação nacional, todos os passos do Partido Bolchevique, e visavam repetir, também mecânica e linearmente, cada um dos detalhes da experiência russa em seus próprios países. Como prova de uma enorme sensatez histórica e senso das proporções, Lenin declara:

Também seria errado não ter em conta que depois da vitória da revolução proletária, mesmo que seja em apenas um dos países avançados, se produzirá, com toda certeza, uma radical transformação: a Rússia, logo depois disso, se transformará não em país modelo, e sim, de novo, em país atrasado (do ponto de vista “soviético” e socialista). (LENIN, 2014, pp. 43-44)

Que distância abismal entre essas geniais palavras, repletas de humildade, e o “messianismo soviético” tão propagado pelo stalinismo! Que golpe dolorido contra a ideologia reacionária de que se poderia construir o socialismo isoladamente em um país atrasado como a Rússia! A Revolução de Outubro não deveria ser, para Lenin, um modelo absoluto. O valor daquela insurreição não estava mais do que em desatar a revolução proletária europeia, ser-lhe a ponta-de-lança. O proletariado russo havia assumido uma posição de vanguarda por um acidente histórico, e deveria ceder este posto humildemente ao proletariado europeu e norte-americano assim que a revolução proletária triunfasse em qualquer um dos países capitalistas avançados.

Em uma série de escritos, Lenin alerta os jovens partidos da Internacional Comunista para que não abandonem o trabalho de elaboração própria, independente; para que levem em consideração, além da experiência russa e internacional, também suas próprias especificidades nacionais. Em novembro de 1922, já bastante doente, ele discursava perante o III Congresso da Internacional Comunista:

Em 1921 aprovamos no III Congresso uma resolução sobre a estrutura organizativa dos partidos comunistas, os métodos e o conteúdo de sua atividade. A resolução é magnífica, mas é russa quase até a médula; ou seja, se baseia nas condições russas. Este é seu aspecto bom, mas também seu ponto fraco. Fraco porque estou convencido de que quase nenhum estrangeiro poderá lê-la. (…) Primeiro, é muito longa, tem cinquenta ou mais pontos. Por regra geral, os estrangeiros não conseguem ler coisas assim. Segundo, inclusive se a leem, não a compreenderão precisamente porque é muito russa. Não porque esteja escrita em russo (foi magnificamente traduzida a todos os idiomas), mas porque está saturada de espírito russo. (…) Tenho a impressão de que cometemos um grande erro com esta resolução, ou seja, que nós mesmos levantamos uma barreira no caminho de nosso êxito futuro. Como já disse, a resolução está excelentemente escrita, e eu assino todos os seus cinquenta ou mais pontos. Mas não compreendemos como se deve levar nossa experiência russa aos estrangeiros. Tudo o que a resolução expõe permaneceu como letra morta. (LENIN, 1982, p. 292)

Olhando hoje para os anos imediatamente posteriores à Revolução de Outubro, fica evidente uma certa “russificação” do movimento revolucionário, apesar dos esforços de Lenin no sentido contrário. O que contribuiu para isso? Em primeiro lugar, a derrota da revolução alemã fez com que a Revolução Russa permanecesse sim, ao contrário do que Lenin prognosticou, como a experiência revolucionária mais rica já produzida pelo proletariado mundial. Por outro lado, a degeneração do Estado soviético e do Partido Bolchevique permitiu à burocracia stalinista estabelecer um controle totalitário sobre a III Internacional, subordinando toda a política dos partidos comunistas nacionais aos interesses diplomáticos da URSS e à preservação do status quo mundial. Nessas condições, uma certa russificação do movimento marxista mundial tornou-se simplesmente inevitável.

O pós-guerra e a hipótese “altamente improvável”

A revolução mundial entrou em uma nova etapa de seu desenvolvimento logo após a derrota do nazismo, em 1945. À medida que o Exército Vermelho avançava sobre os países do leste europeu e os libertava da ocupação hitleriana, ocorriam levantes revolucionários nestes mesmos territórios. Esses levantes expulsavam os antigos proprietários rurais de suas terras e coletivizavam ou repartiam o campo. Nas cidades, algo similar acontecia, primeiro com o estabelecimento do controle operário nas fábricas e, logo em seguida, com a expropriação e nacionalização das grandes empresas. Por sua parte, o Exército Vermelho buscava intervir nesses processos, promovendo “governos de unidade nacional” que restabelecessem paulatinamente a ordem e a propriedade privada nesses territórios, coisa que não foi possível, devido à profundidade do processo revolucionário. Surgia assim, contra a vontade de Moscou, fruto da guerra e da resistência ao nazismo, um novo cinturão de Estados operários ao redor da URSS. A revolução mundial recebia um poderoso impulso. Na Ásia, onde o Exército Vermelho não interviu, a II Guerra Mundial levou diretamente a insurreições anticoloniais que desembocaram, ao final e ao cabo, na expropriação da burguesia e no surgimento de novos Estados operários.

Cada um desses Estados já nasceu sob o controle de uma casta burocrático-militar (leste europeu) ou de um partido-exército hierarquizado e monolítico, sem qualquer liberdade política interna e de base camponesa (China). A burocracia stalinista, que havia adquirido um prestígio monumental graças à derrota imposta ao nazismo, aceitou o triunfo das massas como forma de melhor enganá-las. O surgimento de Estados operários no leste europeu e na Ásia estava dentro de uma certa “margem de tolerância” prevista pelos acordos de Yalta e Potsdam entre a burocracia stalinista e o imperialismo. Desde que nenhuma revolução socialista triunfasse na Europa Ocidental ou no continente americano, o status quo estaria garantido e a convivência pacífica entre a URSS e os EUA seria preservada. Surgia uma nova ordem mundial, a ordem do pós-guerra.

Mas a onda revolucionária mundial, apesar de todos os esforços do aparelho stalinista, acabou chegando à América Latina e resultou na vitória do Movimento 26 de Julho em Cuba em 1959 e na transformação dessa revolução democrática anti-ditatorial em revolução socialista já em 1961 (expropriação da burguesia cubana). O mundo se tornava mais complexo. E com ele, as revoluções. De certa forma, começou a se cumprir parcialmente o prognóstico de Lenin de que novas revoluções enriqueceriam a experiência do movimento revolucionário mundial. Dizemos “parcialmente” porque Lenin previu a vitória da ditadura do proletariado em países capitalistas avançados, coisa que não aconteceu.

O fato é que as revoluções do pós-guerra não se encaixavam perfeitamente no esquema da Revolução de Outubro. Em alguns aspectos, sim. Em outros, não. Em todas elas houve algum tipo de organismo de duplo poder; em todas elas a revolução democrática acabou se transformando, pela própria força dos acontecimentos, em revolução socialista. Mas em outros aspectos eram revoluções muito diferentes: em nenhuma delas havia um partido revolucionário marxista de tipo bolchevique, com centralismo democrático e base proletária. O próprio sujeito social daquelas revoluções não tinha nada a ver com o proletariado industrial que protagonizou o levante de Outubro na Rússia: em geral, foram insurreições camponesas ou populares, nas quais o proletariado não se diferenciava claramente nem cumpria um papel preponderante.

Confirmava-se, desta forma, a “hipótese altamente improvável”, levantada por Trotski no Programa de Transição. Em 1938, referindo-se à possibilidade de direções pequeno-burguesas ou stalinistas romperem o equilíbrio de forças com a burguesia e se colocarem à frente de processos revolucionários, Trotski escrevia:

É possível a criação de tal governo pelas organizações operárias tradicionais? A experiência anterior mostra-nos, como já vimos, que isso é, pelo menos, pouco provável. É, entretanto, impossível negar categórica e antecipadamente a possibilidade teórica de que, sob a influência de uma combinação de circunstâncias excepcionais (guerra, derrota, quebra financeira, ofensiva revolucionária das massas etc.), os partidos pequeno-burgueses, incluídos aí os stalinistas, possam ir mais longe do que queriam no caminho da ruptura com a burguesia. Em todo caso, uma coisa está fora de dúvida: se mesmo essa variante pouco provável se realizasse um dia em algum lugar, e um “governo operário e camponês”, no sentido acima indicado, se estabelecesse de fato, ele somente representaria um curto episódio em direção à ditadura do proletariado. É, entretanto, inútil perder-se em conjecturas. (TROTSKI, 2004, p. 39)

Como se vê, Trotski acreditava que somente uma combinação extraordinária de fatores seria capaz de romper o esquema tradicional de Outubro. E foi exatamente o que se deu: a destruição provocada pela guerra, um poderoso ascenso de massas, a inexistência de uma direção marxista revolucionária consciente e organizada em um partido de tipo bolchevique, um fortalecimento jamais previsto dos partidos stalinistas traidores, a ausência (por simples inexistência ou por derrota histórica) de um proletariado forte e organizado, a debilidade do imperialismo em responder coerentemente a tal levante. Tais foram as condições altamente excepcionais que conduziram à vitória de inúmeras revoluções socialistas no pós-guerra, revoluções essas que apenas parcialmente se pareciam com a Revolução de Outubro.

Nahuel Moreno e as revoluções do século 20

Em muitos aspectos, a realidade enfrentada pelo movimento revolucionário na segunda metade do século 20 foi completamente diferente daquela vivida entre 1917 e o fim da II Guerra Mundial. Em 1939, Trotski havia previsto que o stalinismo seria rapidamente destruído pelo inevitável ascenso revolucionário da guerra e que a IV Internacional chegaria ao final do confronto mundial tendo adquirido influência de massas. De fato, o ascenso previsto por Trotski se deu, mas beneficiou o stalinismo. O trotskismo chegou ao fim da guerra na completa marginalidade, e assim permaneceu por muito tempo. Apenas em alguns países como Argentina, Bolívia e França, o trotskismo chegou a construir organizações importantes na segunda metade do século 20.

Além disso, as revoluções que ocorreram, como dito anteriormente, foram dirigidas por partidos-exércitos pequeno-burgueses e monolíticos, sobre uma base social camponesa ou popular. O esquema de Outubro tinha dificuldade em se aplicar. Aquelas organizações trotskistas que o seguiram mecanicamente, cometeram erros gravíssimos, de signos opostos, mas complementares: ou negaram completamente o caráter revolucionário e socialista das transformações ocorridas simplesmente porque não se encaixavam no esquema da Revolução Russa; ou, ao contrário, capitularam às novas direções pequeno-burguesas pelo simples fato de que estas se colocaram, ainda que contra sua própria vontade, à frente de revoluções triunfantes.

Uma outra via percorreu o dirigente trotskista argentino Nahuel Moreno. Contra a maioria da IV Internacional, ele começou a elaborar uma visão própria sobre o enorme processo revolucionário que tinha marcado o pós-guerra. Olhando a realidade concreta, Moreno chegou à conclusão de que as condições altamente peculiares daquele período haviam provocado um inflexão histórica na lei geral das revoluções. Havia se dado um tipo de “substitucionismo social” não previsto por Trotski ou Lenin. As condições objetivas empurraram uma outra classe social (a pequena burguesia) a cumprir o papel que, lógica e historicamente, cabia ao proletariado e suas organizações. Trotski havia sido o pioneiro em afirmar que uma classe social poderia cumprir o papel que caberia a outra classe. Mas previu isso em relação ao proletariado e à burguesia. Segundo a teoria da revolução permanente, o proletariado “substituiria” a burguesia em sua tarefa de fazer a revolução democrática (daí o termo “substitucionismo social”), já que esta teria se tornado incapaz de qualquer ação revolucionária na época imperialista. Moreno percebeu que algo similar havia acontecido na relação entre a pequena burguesia e o proletariado: uma série de condições históricas haviam impedido o proletariado de realizar uma nova revolução similar à de Outubro, e a pequena burguesia, pressionada pela necessidade histórica, havia assumido esse papel. Naturalmente, Moreno não acreditava que o proletariado tivesse se tornado organicamente incapaz de fazer uma nova Revolução de Outubro. Para Moreno, tratava-se de um período histórico específico, que poderia e deveria ser superado. Moreno apenas constatava um fato, e dava uma explicação marxista para ele, mantendo sua aposta inabalável na revolução socialista como processo de auto-emancipação do proletariado. Tratava-se, para Moreno, de superar as debilidades subjetivas do proletariado, fundamentalmente: superar a crise de direção revolucionária, que havia se aprofundado com a vitória do stalinismo sobre o fascismo e a destruição da IV Internacional no pós-guerra. Moreno tratava de identificar, em cada revolução, aqueles traços que a aproximavam do modelo de Outubro e aqueles que a afastavam desse modelo. Era ousado na política. Mas era realista quando se tratava de análises. Em 1980 escrevia:

Passados 63 anos de sua vitória, devemos reconhecer que a Revolução de Outubro foi uma exceção neste século, até agora; que não houve processo revolucionário parecido, nem entre os vitoriosos, nem entre os derrotados. Até agora, a Revolução de Outubro é uma exceção. O mesmo vale para seu resultado, a Terceira Internacional. (MORENO, 1992, p. 18)

Para Moreno, a excepcionalidade da Revolução de Outubro e o aprofundamento da crise de direção revolucionária não conduziam à conclusão de que era necessária uma “nova estratégia”, distinta da estratégia clássica do marxismo, ou muito menos um “novo paradigma” etc. Ao contrário. Para ele, tratava-se de encontrar, nos marcos do marxismo e de sua estratégia, uma explicação própria, específica, para os fenômenos revolucionários que ocorreram na segunda metade do século 20.

Além disso, Moreno não se contentou em constatar o fato de que as revoluções do pós-guerra não se encaixavam no modelo de Outubro. Em uma demonstração de grande ousadia intelectual, tentou elaborar sua própria teoria da revolução, uma teoria que fosse capaz de explicar os fenômenos revolucionários daquele período histórico. Em busca de tal explicação, Moreno reviu importantes definições e critérios clássicos estabelecidos firmemente por Lenin e Trotski, criou conceitos, esquemas, levantou hipóteses, propôs periodizações, arriscou prognósticos. O dirigente trotskista argentino não se preocupava em parecer herético ou mesmo ser acusado de revisionismo. Moreno pensava livremente, sempre orientado por uma única estratégia: a construção do partido revolucionário e a conquista da direção do movimento de massas para fazer a revolução proletária.

Em 1984, durante um curso dado à direção do Movimento al Socialismo, naquela época seção argentina da Liga Internacional do Trabalhadores, disse:

Nós achamos que os fatos demonstraram [que há um grande erro no texto] escrito da teoria da revolução permanente, [ou seja, nas Teses]. Porque isso da classe operária organizada e do partido revolucionário que nós vimos antes não aconteceu neste pós-guerra. Sustentar que aconteceu na realidade seria ser um cego, um fanático de Trotski, um religioso de Trotski, e Trotski seria o primeiro a ficar contra nós. Mas nós continuamos sendo fanáticos da teoria da revolução permanente. Por que? Porque achamos que é a única teoria que, apesar deste erro tremendo, se ajustou [à realidade]. Houve processos de revolução permanente que expropriaram a burguesia, fizeram a revolução operária e socialista, sem serem dirigidos pela classe operária e sem serem dirigidos pelo partido comunista revolucionário. Quer dizer, os dois sujeitos de Trotski, o social e o político, faltaram ao encontro histórico, não chegaram na hora. E no entanto, apesar de terem faltado ao encontro histórico, nós seguimos acreditando que a teoria da revolução permanente é o maior achado do século, do ponto de vista teórico. (MORENO, 1992-2, p. 23)

E mais adiante:

Infelizmente, por causa deste esquema dos sujeitos, Trotski, se não via a classe operária lutando com seus sindicatos e seus soviets e com um partido marxista revolucionário, sempre se negava a ver a possibilidade de uma revolução. Quanto mais rápido superarmos isso, melhor;  porque nós estivemos décadas como cachorros atrás do próprio rabo: “é revolução?”, “não é revolução?”. E sim, são revoluções. Acabemos de vez com esse problema. (MORENO, 1992-2, pp. 36-37)

Este atualização da teoria da revolução permanente feita por Moreno permitiu à organização por ele impulsionada não apenas entender a especificidade daquele período histórico, mas inclusive crescer e construir-se como uma importante corrente principista do movimento trotskista internacional. Aqueles puristas que permaneceram agarrados aos textos sagrados das teses da revolução permanente (sem atentar-se ao seu verdadeiro conteúdo) caíram invariavelmente no oportunismo e no ultra-esquerdismo perante uma realidade que estava muito distante do previsto.

Uma teoria da revolução para o século 21

O século 21 coloca para os marxistas revolucionários desafios tão grandiosos quanto aqueles colocados para os marxistas da segunda metade do século 20. A restauração capitalista em absolutamente todos os antigos Estados operários, combinada com a ofensiva ideológica e política do imperialismo sobre a “morte do socialismo”, o “fim da história” e outras bobagens criam condições específicas para o triunfo de novas revoluções socialistas. Que condições são essas? Quais são as características essenciais da atual etapa histórica e como elas se articulam com as revoluções e levantes que já estão acontecendo neste início de século?  As particularidades da segunda metade do século 20 foram completamente superadas? Ocorreu uma “normalização” do processo histórico, com um retorno ao modelo de revolução socialista anterior à II Guerra Mundial? Ou, ao contrário, o século 21 cria condições absolutamente novas e as revoluções que veremos em nada se parecerão com o que vimos até aqui? Ou há uma combinação destas diferentes hipóteses? Seria difícil dizer. Ou, pelo menos, seria difícil dizer nos marcos deste artigo.

Ao discutir com os quadros do MAS argentino, em meados dos anos 1980, Moreno dizia:

Nós achamos que nestes últimos quarenta anos aconteceram fenômenos diferentes do que Trotski viu e que nos obrigam a elaborar entre todos – ou o farão alguns de vocês dentro de alguns anos – uma nova formulação, uma nova forma de escrever a teoria da revolução permanente, pegando todos estes problemas. (MORENO, 1992-2, pp. 38-39)

Acreditamos que esta é uma afirmação correta. Novas etapas históricas exigem novas explicações, novas teorias. Será muita pretensão acreditar que as palavras de Moreno “ou o farão alguns de vocês dentro de alguns anos” possam se aplicar a nós, à atual geração de revolucionários? Como mínimo, é preciso admitir que a realidade assim o exige. Se conseguiremos ou não dar as respostas necessárias – essa é justamente a grande incógnita.

Em qualquer dos casos, uma nova teoria da revolução, que explique as revoluções do século 21, deve partir, obrigatoriamente, da grande experiência da Revolução Russa de 1917. Seus elementos fundamentais: a ditadura do proletariado, o partido de tipo bolchevique, a democracia operária dos soviets – tudo isso é uma base indispensável que não pode, sob hipótese alguma, ser descartada. Todos aqueles que o fizeram degeneraram. À jovem geração de revolucionários cabe conhecer essa experiência à exaustão, dominar todos os seus conceitos, todas as suas lições. E a partir daí, analisar o tempo presente. Saudar e lembrar a Revolução Russa é um dever de todo revolucionário. Mas é um dever secundário. O primeiro é trabalhar com todas as forças físicas e intelectuais para trazê-la à vida novamente, o que só poderá ocorrer com a vitória de novas revoluções socialistas. Elas não serão idênticas a Outubro, mas estarão impregnadas de seu espírito, embebidas de sua essência. O verdadeiro valor dos revolucionários residirá então em saber distinguir forma de conteúdo, tal como fez Moreno. Esse será o melhor tributo que poderemos pagar à honra daqueles milhares de operários e intelectuais revolucionários que jazem nos muros do Kremlin e nos campos gelados da Sibéria, para onde foram mandados por Stalin para morrerem na tundra. A Revolução Russa viverá para sempre em nossa memória. E ainda que não admitam, ela habita também os pesadelos mais profundos de nossos inimigos. Quase um século depois de seu triunfo, ela é uma fonte inesgotável de inspiração, coragem e esperança. Mas é também muito mais que isso: é um guia preciso e um porto seguro em uma época de tempestades.

Viva Outubro!

Referências bibliográficas:

LENIN, V. I., O esquerdismo: doença infantil do comunismo. São Paulo: Expressão Popular, 2014.

__________, Polnoe sobranie sochinenia (Obras completas, em russo). Moscou, Izdatelstvo Politicheskoi Literaturi, Tomo 45, 1982.

TROTSKI, Leon, Programa de Transição. São Paulo: Editora Sundermann, 2004.

MORENO, Nahuel, Teses para a atualização do Programa de Transição. São Paulo: CS Editora, 1992.

_________, Nahuel, Escuela de Quadros: Argentina, 1984. Buenos Aires: Ediciones Crux, 1992