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TEORIA

Classe e consciência na obra do historiador marxista E.P. Thompson

Joallan Cardim Rocha

“A obra de Thompson aliou paixão e intelecto, os dons do poeta, do narrador, do analista. Ele foi o único historiador que conheci dono não só de talento, brilhantismo e erudição e da dadiva da escrita, como também capaz de produzir algo de qualitativamente diverso de tudo aquilo que o resto de nós produziu, implausível de ser medido pela mesma escala. Deixe-nos simplesmente chamar de genial, no sentido tradicional da palavra. Nenhum trabalho de sua maturidade poderia ter sido escrito por qualquer outra  pessoa”.

Eric Hobsbawm

O objetivo deste artigo é discutir as noções de classe e consciência de classe presentes na obra do historiador inglês E.P. Thompson (1924-1993). A obra de Thompson suscitou inúmeras polémicas, discussões, debates e controvérsias, não só no interior da “tradição marxista”, como também nas ciências sociais de maneira geral. Os debates mais acalorados se iniciaram a partir da publicação do seu mais conhecido livro, A Formação da Classe Operária Inglesa, em 1963. O centro da polêmica se deu em torno ao seu conceito de classe social como um fenômeno histórico e não como efeito mecânico do processo de industrialização. Esta concepção foi acusada por marxistas e não marxistas de essencialmente voluntarista, subjetivista e culturalista.

O resgate da concepção de classe presente na obra de Thompson tem na atualidade uma enorme importância. Sobretudo porque nos últimos 30 anos presenciamos ao abandono das discussões sobre o conceito de classe e luta de classes.  A obra de Thompson nos ministra elementos importantes para a retomada deste debate teórico-metodológico ao fornecer uma concepção dinâmica das classes sociais, através das noções de processo, relação, experiência, formação e consciência de classe. Sua obra esteve marcada por uma dura polémica com a tradição estruturalista do marxismo que entendia as classes como um resultado mecânico de sua relação com os meios de produção.

Consideramos que a particular leitura de Thompson da obra marxiana nos fornece um ponto de partida fundamental para o resgate e a atualização no debate sobre as classes sociais e a centralidade do mundo do trabalho. Sobretudo em um contexto marcado por uma profunda crise econômica e a retomada das lutas protagonizadas pelos setores mais precarizados da classe trabalhadora, o novo “precariado”. Em distintos países a classe-que-vive-do-trabalho vem resistindo e enfrentando as consequências e os efeitos perversos da crise econômica mundial.

E.P.Thompson: Breve itinerário de um intelectual militante

Edward Palmer Thompson nasceu em 1924 em Oxford na Inglaterra, estudou História na Universidade de Cambridge, onde interrompeu o curso para servir ao exército durante a II Guerra Mundial, na luta contra o nazi-fascismo. Formado em 1946, Thompson alistou-se como voluntário em uma brigada de solidariedade à Iugoslávia. Aos 24 anos foi contratado pela Universidade de Leeds para lecionar para trabalhadores e pessoas comuns. Sua experiência como professor foi fundamental na redação do seu livro, A formação da classe trabalhadora inglesa, como ele mesmo ressaltou no prefácio da obra.

Thompson aderiu ao Partido Comunista da Grã-Bretanha (PCGB) no começo da II Guerra Mundial, quando ainda era estudante de História. No partido foi parte ativa na formação de um grupo de historiadores, do qual pertenceram Eric Hobsbawm, Christhopher Hill, Doroty Thompson, entre outros. A militância nesse grupo, que se tornou o principal núcleo de elaboração do marxismo na Inglaterra, entre 1946 e 1956, foi fundamental na formação intelectual de Thompson.

O historiador Eric Hobsbawm cita como legado desse grupo para investigação histórica, o estabelecimento das ideias de “história social e história de baixo para cima, com a incorporação dos movimentos e expressões populares como parte ativa do processo histórico”. Outra importante contribuição desse grupo de intelectuais foi a “necessidade de uma compreensão histórica do desenvolvimento do capitalismo inglês numa perspectiva marxista” (FORTES; NEGRO, 2012, p.31).

Em 1956, Thompson e a maioria do grupo de historiadores e outros sete mil membros romperam com o Partido Comunista da Grã Bretanha. Neste ano se deu a revelação do Informe Secreto sobre os crimes de Stalin no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética e a invasão da Hungria pela URSS. Os dissidentes do partido comunista constituíram em 1956 o principal núcleo do movimento político que passou a ser reconhecido como Nova Esquerda e fundam a revista New Reasoner Review. Deste grupo faziam parte grandes nomes da intelectualidade marxista inglesa, como Raymond Willians, John Saville, Doroty Thompson, Ralph Miliband.

Em 1959, a New Reasoner fundiu-se com a Universities and Left Review (da qual fazia parte o jovem intelectual Perry Anderson) para formar a New Left Review, revista que se tornou o principal instrumento do debate teórico e político na Inglaterra e uma das principais revistas de inspiração marxista no mundo.

Além da publicação de uma vasta obra historiográfica que inclui uma biografia de Willian Morris (1955), A formação da classe operária inglesa (1963), As peculiaridades dos ingleses (1965), Senhores e Caçadores (1975), A miséria da teoria (1978) e Costumes em comum (1991), Thompson se envolveu em inúmeras campanhas políticas, em especial na luta pelo desarmamento nuclear no auge da Guerra Fria.

[…] A particularidade de Thompson é de ter sido mais do que um acadêmico erudito preocupado em aplicar o marxismo em sua área do saber. Foi um militante cuja produção escrita, mesmo seus textos mais acadêmicos, não pode ser separada de seu engajamento político radical e que sempre manteve uma relação bastante conflituosa com a vida acadêmica (BATALHA, 2000, p. 191).

Segundo o historiador inglês, Christopher Hill, “o marxismo de Thompson era inteiramente alheio a dogmas preconcebidos […] A tradição marxista abraçada pelo historiador inglês considerava o materialismo histórico como simples e indispensável orientação teórica à pesquisa dos processos históricos. Desde essa perspectiva, Thompson faz a opção por uma História vista a partir de baixo, ao mesmo tempo em que considera a classe e a consciência de classe como conceitos históricos” (FORTES, NEGRO, FONTES, 2012, p.31).

Podemos afirmar que Thompson revolucionou os estudos sobre a classe operária, ao propor uma abordagem teórica distinta da tradição marxista hegemônica na época, representada pelo estruturalismo, cujo maior expoente foi o intelectual francês Louis Althusser. A tradição marxista abraçada por Thompson propõe uma interpretação aberta de Marx, avessa ao dogmatismo, à ideia do marxismo como uma doutrina autossuficiente e fechada. Segundo Thompson, o estalinismo e o marxismo oficial transformaram os textos de Marx em obras canônicas. Para Cláudio Batalha,

O marxismo de Thompson, particularmente nos seus textos históricos, aparece não tanto através de citações diretas, mas indiretamente em discussões como as que giram em torno da metáfora base-superestrutura, das classes; da consciência de classe etc.; ou seja, no uso de conceitos de origem marxista. Em parte, essa ausência de citações se deve à recusa expressa na Miséria da Teoria de recorrer a Marx como argumento de autoridade. Por outro lado, a relação que mantêm com o marxismo é complexa e marcada por outras influências. O que permanece é uma interpretação aberta de Marx, que se torna um ponto de partida, não um modelo fechado (BATALHA, 2000, p.193).

A relação entre a obra de Thompson e os estudos marxianos motivou inúmeras polêmicas, debates e controvérsias. O historiador inglês foi reprochado de ter uma concepção subjetivista, voluntarista e culturalista das classes sociais, e até mesmo, antagônica e oposta à concepção de Marx. Alguns intelectuais influenciados pelo enfoque althusseriano, como Perry Anderson e Tom Nair, criticaram duramente Thompson por menosprezar o papel das determinações estruturais e das relações de produção como condicionantes da ação humana (ANDERSON, 1985). Nos debates e polêmicas que travou, Thompson se dedicou a esclarecer que sua abordagem teórica não era contraditória e antagônica aos estudos empreendidos por Marx e Engels:

Gostaria de afirmar que classe como categoria histórica pertence ao preciso e dominante uso marxista. Acredito poder demonstrar que muitas vezes, no próprio Marx e especialmente em O Capital, é essa a acepção dominante, mas este não é o lugar para fornecer provas segundo uma autoridade filológica (THOMPSON, 2012, p.271).

Nesse sentido Thompson se recusava a ver nos textos de Marx um conjunto de leis que deveriam ser aplicadas à realidade. Sua leitura aberta e não dogmática de Marx permitiu-lhe ser crítico inclusive do próprio Marx. Para Thompson, muitas vezes, o autor do Capital, caiu “na armadilha da economia política” (THOMPSON, 1981, p.196).

No conjunto da sua obra e de suas intervenções públicas, Thompson levou adiante uma luta intelectual, em termos muitas vezes bem pouco cordiais, contra manifestações do marxismo que considera marcada pelo determinismo econômico e pela negação da ação humana. Contrário aos modelos estáticos de análise, como a interpretação da metáfora base-superestrutura que limita a possibilidade de perceber as determinações estruturais e os processos sociais como uma relação dinâmica, ou seja, que tende a ver a relação entre ser social e consciência social não como uma interação dialética, mas como uma determinação mecânica, Thompson procurou aplicar à sua análise da história essa perspectiva crítica (BATALHA, 2000, p.194-195).

Na visão de Sérgio Silva, importante estudioso da obra de Thompson no Brasil, o historiador inglês representa o resgate não do “verdadeiro Marx” presente na tradição estruturalista, mas o resgate da “história como história de seres reais e pensantes” e da crítica ao fetichismo e à alienação, que reduz os seres humanos à seres obedientes e passivos, diante das “leis naturais” da economia política. Thompson representa na sua visão,

Uma tradição que não pode viver só de Marx, que precisa escarafunchar eternamente a história real, os modos de dominação e as formas de resistência; não apenas a resistência presente no cenário político oficial, mas também aquela diária, incansável […]. Essa tradição certamente constitui um instrumento indispensável na luta contra um pensamento que, na ciência e na mídia, serve de fundamento à ideologia do progresso, da modernização, do desenvolvimento, do capital (SILVA, 2012, p. 69).

 

A formação da classe operária inglesa

“Se creio que, de fato, um certo dado histórico não está de acordo com as costumeiras categorias de classe, então, em vez de golpear a história para salvar as categorias, devemos instigá-las com novas análises” (THOMPSON, 2012, p.276-277).

O livro, A formação da classe operária inglesa, foi imediatamente reconhecido como uma obra clássica e tornou-se em pouco tempo o mais influente livro de história entre as décadas de 60 e 80, “esta é sem dúvida a obra mais importante de história social escrita desde a segunda guerra mundial” (KAYE, 1989, p.161). Thompson passou de um ilustre desconhecido na academia ao historiador mais citado no mundo, estando entre os 250 autores mais citados nos anos 80.

O objetivo central de Thompson com este livro era resgatar o papel das pessoas comuns no processo histórico. Ele via o processo histórico a partir do papel e da ação dos sujeitos conscientes e ativos, e não como um processo mecânico, automático, independente das vontades e da ação humana consciente. Esta visão particular do desenvolvimento histórico foi exposta no prefácio desta obra que na visão de Thompson, buscava,

Resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro ludita, o tecelão do obsoleto tear manual, o artesão utópico e mesmo o iludido seguidor de Joana Southcott, dos imensos ares de condescendência da posteridade. Seus ofícios e tradições podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo industrialismo podia ser retrógrada. Seus ideais comunitários podiam ser fantasiosos. Suas conspirações insurrecionais podiam ser temerárias. Mas eles viveram nesses tempos de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações eram validas nos termos de sua própria experiência; se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser condenados em vida, vítimas acidentais (THOMPSON, 2004, p.13).

Thomson iniciou o prefácio explicando o título do seu livro, The making of the english working class, traduzido no Brasil como, A formação da classe operária inglesa.  O termo “making” significa “fazer-se” e demarca o papel ativo da ação humana, o “auto fazer-se” das classes sociais ao longo da história. Para ele a “classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se” (THOMPSON, 2004, p.9). No final do prefácio, Thompson explicita o seu maior interesse com o livro:

Espero que este livro seja tomado como uma contribuição para a compreensão da classe. Pois estou convencido de que não podemos entender a classe a menos que a vejamos como uma formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estudados quando eles mesmos operam durante um considerável período histórico (THOMPSON, 2004, p.12).

Este foi o problema central enfrentado por Thompson ao escrever o livro A formação da classe operária inglesa. O seu objetivo era livrar o conceito marxista de classe das amarras do determinismo economicista e do reducionismo vulgar. Tratava-se de um embate direto com os estudos sobre estratificação social que considerava as classes sociais como uma “estrutura ou uma categoria estática”. O historiador brasileiro Marcelo Badaró Mattos (2012) levanta a hipótese de que as contribuições teóricas de Thompson e sua singular concepção de classe já estavam presentes nos debates teóricos e políticos travados por este autor na virada da década de 50 e início da década de 60, um pouco antes de escrever sua obra mais importante em 1963:

Muitas das contribuições conceituais do consagrado historiador para o debate sobre classes sociais e luta de classes, especialmente aquelas que vieram à tona com a publicação de sua obra mais conhecida (A formação da classe operária inglesa), como a valorização da noção de experiência, ou a ênfase na “agência” dos sujeitos históricos, foram formuladas anteriormente à publicação daquela obra, em meio ao debate político militante sobre as questões contemporâneas dos anos 1950-1960, ou em inextrincável dialogo com ele (MATTOS, 2012).

 

A classe social como processo e relação

A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é a única definição (THOMPSON, 2004, p.12)

Em A formação da classe operária inglesa, Thompson questiona a ideia de que o proletariado seria uma mera consequência e resultado do processo de industrialização, ou seja, do desenvolvimento das forças produtivas e da produção fabril. Esta visão, segundo Thompson, está contaminada pelo reducionismo economicista e exclui o papel dos sujeitos e das relações sociais nas transformações históricas. Thompson opera uma verdadeira inversão da explicação do surgimento e formação da classe operária. Esta é sem dúvida “uma das contribuições mais ricas de Thompson à tradição historiográfica marxista” (BATALHA, 2000, p.195).

Não seria a industrialização que se teria imposto a capitalistas e trabalhadores, com a força de uma lei que regeria suas relações: a busca da mais valia relativa, como lei da acumulação do capital. Ao contrário, a industrialização seria o resultado de um processo histórico real, como todo processo histórico, único, pouco importando o fato de que, depois, por sua importância e características, ele se tornaria um modelo universal. Para Thompson, a grande indústria moderna é um resultado da luta de classes […] o auto reconhecimento dos trabalhadores como classe, que conduz à formação das organizações operárias e ao estabelecimento, por meio da luta de classes, das novas relações entre capitalistas e operários, encontra-se na base da grande indústria moderna. Ao mesmo tempo em que submete a relação social ao processo histórico, ele apresenta a formação da classe operária como condição e não simplesmente resultado da industrialização (SILVA, 2012, p.64).

Esta perspectiva está presente no início do prefácio, em que Thompson define a “classe” como um fenômeno histórico, um processo e uma relação encarnada em pessoas e contextos reais: “por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico” (THOMPSON, 2004, p.9).

Nessa obra, Thompson inicia uma dura polêmica com as correntes intelectuais em voga, como o positivismo e o estruturalismo althusseriano, que viam a classe como uma estrutura ou uma categoria estática. Thompson estabeleceu uma permanente luta intelectual contra o determinismo econômico e a negação da ação humana, presente no interior destas correntes teóricas. Partindo de uma concepção de que a classe é um conceito histórico, e não uma mera construção teórica e sociológica, Thompson concebe a classe “como algo que ocorre efetivamente e cuja ocorrência pode ser demonstrada nas relações humanas” (THOMPSON, 2004, p.9).

Diferente da interpretação estruturalista e economicista que concebe a classe simplesmente a partir da relação com os meios de produção, ou seja, como uma categoria estática e a-histórica, Thompson busca apreender a relação dialética entre o ser social e a consciência social. Esta visão particular foi alvo de inúmeras críticas. Muitos o acusaram de aderir ao culturalismo. Esta crítica foi rebatida pelo próprio Thompson “[…] suponho que ninguém possa pensar por tudo isso que eu corrobore a ideia de a formação da classe ser independente de determinações objetivas, nem que eu sustente que classe possa ser definida como simples fenômeno cultural ou coisa semelhante” (THOMPSON, 2012, p. 277). Ao polemizar diretamente com aqueles que supõe a classe como uma coisa, uma estrutura ou a mera relação dos indivíduos com os meios de produção, Thompson não despreza a economia, as relações de produção ou os condicionantes objetivos.

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram, ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe (THOMPSON, 2004, p.10).

Antes de entramos na concepção de Thompson sobre consciência de classe, consideramos importante sublinhar a centralidade que o conceito de experiência, assume no conjunto da sua obra. Este é sem dúvida o mais polêmico e criticado na obra de Thompson, “o termo experiência aparece várias vezes nas páginas de The Making e em outros estudos históricos de Thompson, e é fundamental para entender sua concepção de classe. Porque a experiência denota tempo, a matéria da história e, por cima de tudo, as classes são fenômenos históricos” (KAYE, 1989, p.161).

Se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições (THOMSPON, 2004, p.11-12).

A noção de experiência “foi apontada como demasiadamente vaga e imprecisa” (BATALHA, p.197, 2000). Ao invés de funcionar como uma espécie de elemento mediador entre o ser social (as relações de produção) e a consciência social, acabava confundindo ambos. O termo acaba englobando ambas as noções (consciência social e ser social) ao invés de mediar. O próprio Thompson reconheceu a confusão. Em sua obra, A miséria da Teoria, onde polemiza duramente com as concepções teórico-filosóficas de Althusser, Thompson diferencia dois tipos de experiência: a vivida e a percebida. Para Batalha (2000),

O próprio Thompson admitiu em parte essas críticas ao propor, no início dos anos 80, dois tipos distintos de experiência, que fariam a junção entre o ser social e a consciência social. Um tipo seria o da experiência vivida e o outro da experiência percebida. O primeiro remete ao ser social, ao vivido resultante de causas materiais, que não reflete automaticamente no segundo tipo de experiência, o da consciência social, mas que determina, no sentido de exercer pressão, a consciência social existente (…). A dualidade dessa perspectiva, a exemplo das duas formas de consciência presentes em Lenin e em Lukacs, é apenas aparente, uma vez que os dois tipos de experiências são inseparáveis, não existe o segundo sem o primeiro.  (BATALHA, p.197, 2000)

 

Sobre consciência de classe, falsa consciência e consciência verdadeira 

“Os Intelectuais sonham amiúde com uma classe que seja como uma motocicleta cujo assento esteja vazio. Saltando sobre ele, assumem a direção, pois tem a verdadeira teoria” (Thompson, 2012, p.281).

A visão reducionista e economicista presente na grande maioria dos estudos sobre a classe operaria deduz a consciência de classe a partir da posição dos indivíduos em relação aos meios e relações de produção. Para Thompson, a consciência de classe é constituída a partir da articulação entre experiência (vivida e percebida) e a cultura de um determinado grupo social.

Todavia, em primeiro lugar, nenhum exame das determinações objetivas e, mais do que nunca, nenhum modelo eventualmente teorizado pode levar a equação simples de uma classe com consciência de classe. A classe se delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior do conjunto de suas relações sociais, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural (THOMPSON, 2012, p. 277).

A classe só se constitui enquanto sujeito político e social no processo da luta de classes onde criam-se laços de solidariedade e identidade entre os trabalhadores e se enfrenta um inimigo comum, seja ele os patrões ou o estado. Os valores, discursos e referências culturais que articulam tal consciência, entretanto, não surgem do nada, desenvolvem-se a partir da experiência da exploração e das lutas (MATTOS, 2009):

A recusa do determinismo econômico e, particularmente, da ideia de classe como efeito do modo de produção tem, entre mil e uma consequências, a de implicar uma reconsideração da noção de consciência de classe, numa linha muito próxima daquela também seguida por Hobsbawm: a consciência de classe é aquela que a classe efetivamente produziu, no processo (histórico) de seu auto reconhecimento e construção, e não aquela que deduzimos do modo de produção (SILVA, 2012, p.66).

Para Thompson, “na história, nenhuma formação de classe específica é mais autêntica ou mais real que outra. As classes se definem de acordo com o modo como tal formação acontece efetivamente” (THOMPSON, 2012, p.277-278). Isso implica uma ruptura com a noção de falsa consciência e consciência verdadeira, presente na tradição estruturalista que considera que a “classe em si” não conhece seus próprios e verdadeiros interesses.

Resultara claro que o conceito de falsa consciência se referido a uma classe, não o vejo com simpatia. No melhor dos casos, é uma afirmação destituída de significado e no pior deles, é uma construção teórica absurda, em torno da qual, partidários das elites, que sabem bem, muito melhor que os protagonistas, como a história deve ser, insinuam-se continuadamente por ocasião de discussões e seminários universitários. Uma classe não pode existir sem um tipo qualquer de consciência de si mesma […]. Mas dizer que uma classe em seu conjunto tem uma consciência verdadeira ou falsa é historicamente sem sentido […]. Ela não pode ser nem verdadeira nem falsa. É simplesmente o que é (THOMPSON, 2012, p.279).

Segundo Thompson a tradição do marxismo estruturalista, “fornece uma boa justificativa para uma política de substitutivos, como aquele de uma vanguarda que saberia mais que a própria classe quais seriam tanto o interesse verdadeiro quanto a consciência mais conveniente a essa mesma classe” (THOMPSON, 2012, p. 272).  Além disso, esta noção implica a existência de um desenvolvimento por etapas da formação da consciência de classe.

Para dizê-lo com todas as letras: as classes não existem como entidades separadas que olham ao redor, acham um inimigo de classe e partem para a batalha. Ao contrário, para mim, as pessoas se veem numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e no curso de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta de sua consciência de classe. Classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real (THOMPSON, 2012, p.274).

Considerações finais

A trajetória intelectual de Thompson como historiador da classe operaria está diretamente vinculada a sua trajetória como militante e ativista político. Suas preocupações teóricas e metodológicas eram avessas ao dogmatismo e ao economicismo. Sua visão aberta e crítica do marxismo se contrapõe à tradição hegemônica na sua época, cujo principal expoente foi o intelectual francês Louis Althusser.

A concepção de classe social do historiador inglês E. P. Thompson representa uma ruptura com a tradição do estruturalismo althusseriano, cuja preocupação central era entender o papel das estruturas e relações de produção como elementos determinantes. Nessa perspectiva estavam ausentes os sujeitos políticos e sociais, conscientes e ativos. Ao se apoiar em Marx, o historiador inglês atualiza e aprofunda a noção de classe social como processo, relação e fenômeno histórico, resgatando os homens comuns como agentes e transformadores do processo histórico, “conhecemos as classes por que, repetidamente, as pessoas se comportaram de modo classista” (THOMPSON, 2012, p. 270).

Outro aspecto importante é a crítica de Thompson às noções de falsa consciência/consciência verdadeira, e classe em si/para si. Para Thompson uma classe não pode existir sem um tipo qualquer de consciência de si mesma, a consciência não pode ser nem verdadeira nem falsa, ela é simplesmente o que ocorre efetivamente, “atribuir o termo classe a um grupo privado de consciência de classe, ou de cultura de classe, e que não age nessa direção é uma afirmação destituída de significado” (THOMPSON, 2012, p.276).

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