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TEORIA

“Para onde elas foram?” – Um comentário sobre o filme “Que horas ela volta?”

Daniel Romero

O filme de Anna Muylaert, “Que horas ela volta?”, é uma das melhores produções do cinema brasileiro dos últimos tempos. Está à altura de outros excelentes filmes lançados recentemente, como “Casa Grande” (2014, direção de Fellipe Barbosa) e “O Som ao Redor” (2012, direção de Kleber Mendonça Filho), fechando uma espécie de trilogia sobre as relações de classe no Brasil.

No entanto, o filme estrelado por Regina Casé tem um descompasso com o tempo: chegou muito tarde nas salas de cinema. O sorriso confiante e orgulhoso da protagonista no final do filme não condiz com o Brasil de hoje e muito menos com o do futuro próximo.

Tivesse o filme estrelado três anos antes, estaria ainda sintonizado com o clima que pairava no país. A falta de sintonia com o presente tem explicação: o roteiro do filme, também de Anna Muylaert, foi escrito em 2011, uma época em que a promessa do lulismo ainda estava de pé.

Assim que o espectador sai da sala de cinema, talvez não sinta este precoce envelhecimento. Afinal, não há sensação melhor do que assistir a porção mais profunda do Brasil, mulher-negra-nordestina, pela primeira vez confiante de que poderá assumir os caminhos da sua vida, ter uma profissão que não seja humilhada diariamente, criar seus próprios filhos (e netos), esquecer de vez a figura do ex/pai ausente e, principalmente, realizar um dos maiores sonhos de uma mãe: ver sua filha entrar em uma universidade pública, ainda mais em um curso altamente concorrido.

Contudo, antes mesmo do espectador chegar em casa, fatalmente estas perguntas irão aparecer: e para onde foram Val e Jéssica? Afinal, Jéssica passou na segunda fase do vestibular? E Val, o que está fazendo da vida?

Sobre a Jéssica, é claro que passou no vestibular, mas não em 2015. Ela ingressou em arquitetura na USP, na turma de 2012, condizente com o período em que o roteiro foi escrito. Depois de um início difícil, conseguiu se ambientar com a universidade e desde então tenta uma bolsa de pesquisa para reduzir sua tripla jornada de estudante-mãe-trabalhadora.

Ninguém perguntou sobre ele, mas é bom lembrar que Fabinho, o filho dos antigos patrões de Val, claro que também passou no vestibular. Voltou da Austrália e entrou na USP em 2013, como ocorreu com praticamente todos os seus amigos. Rapidamente se ambientou na universidade, impressiona os professores com seu inglês fluente e consegue conciliar os estudos com os momentos de lazer.

Como o mundo dá voltas, eles se encontraram ainda uma vez: ambos estiveram presentes nas manifestações de Junho de 2013. Gritaram juntos, pularam juntos e correram juntos da PM. Foram as primeiras manifestações populares que participaram em suas vidas. Trocaram o número do zapzap e nunca mais se falaram. Não são sequer amigos no face, as eleições de 2014 não permitiram isso.

“Que horas ela volta?” é o filme que melhor expressou o espírito do lulismo. Por isso ele é tão bom e, ao mesmo tempo, envelheceu tão rápido. As promessas que o filme aponta, de tão superficiais, estão andando para trás.

A USP é apenas para a filha da Val, não para as outras Jéssicas. A preocupação das amigas da Jéssica que terminaram o ensino médio é se conseguirão financiamento do FIES. A Val também está preocupada. Claro que não se arrepende de ter largado o emprego na casa de Bárbara (ou será que ela ainda fala dona Bárbara?). Para lá, não volta nunca mais, mas pensa como seria bom conseguir um emprego fixo. Com carteira assinada? Seria um sonho!

O Fabinho tem participado das manifestações de domingo, mas a Jéssica ainda não foi convencida por ninguém. Nunca confiou no lado de lá, mas também se sente traída pelo outro lado e não está disposta a mover um dedo em sua defesa. Ela está à procura de uma alternativa, diferente de tudo isso.

Para onde ela vai?